"Me sinto feliz de reencontrá-los mais de vinte anos depois, de cara limpa e com toda a experiência acumulada", afirma Nando Reis sobre os Titãs Foto: Carol Siqueira
“Sou alcoólatra, mas recuperei minha sobriedade”
O cantor e compositor Nando Reis descreve a dependência do álcool e da cocaína, lembra o mergulho ao fundo do poço e conta como conseguiu ficar limpo para voltar aos palcos com os Titãs
Nando Reis | 28 jul 2023_08h48
Em abril deste ano, o cantor e compositor Nando Reis voltou a se apresentar com os Titãs 21 anos após deixar a banda de rock que criou com os amigos em 1982. O lançamento da turnê Titãs Encontro – Pra Dizer Adeus marcou o reencontro de sete integrantes da formação mais famosa do grupo paulistano, com shows agendados no Brasil e no exterior até dezembro. Parte da trajetória é contada no podcast Lugar de Sonho, disponível no Spotify. Aos 60 anos, Nando Reis vive a volta aos palcos após seis anos sem beber. Neste depoimento, ele descreve a luta contra a dependência do álcool e da cocaína.
Em depoimento a Lia Hama
Minha jornada com o álcool começou na adolescência e gradativamente foi se tornando um uso abusivo e uma dependência. Comecei a beber aos 13 anos de idade e só parei aos 53. Foram décadas de consumo pesado e, com o passar do tempo, associado à cocaína. Estou há quase sete anos sóbrio, mas não deixei de ser alcoólatra: consigo sentir a compulsão dentro de mim.
Durante muito tempo acreditei no mito de que o álcool traz espontaneidade às pessoas. Hoje vejo que não é espontaneidade, é artificialidade e distorção. O álcool era um escudo entre mim e a realidade. Era como uma catarata que vai criando uma opacidade no cristalino. No dia em que passei por uma cirurgia para catarata, voltei a ver as cores. Eu comparo o alcoolismo a uma barreira que se impôs entre mim e o resto do mundo, entre mim e os meus próprios sentimentos e a minha própria razão.
Fundamos os Titãs em 1982 e deixei a banda vinte anos depois, num momento em que eu estava bebendo muito. Hoje percebo o quanto o uso abusivo de álcool e cocaína foi um elemento crucial para o desgaste da minha relação com o grupo. Eu era um cara inseguro e muitas vezes não me sentia à vontade no meio artístico. Tinha dificuldade de lidar com a hostilidade, a competitividade e a inveja no ambiente em que atuo. Esses sentimentos faziam com que eu me visse ameaçado – e o álcool atenuava essa angústia.
Parei de beber no dia 6 de outubro de 2016. Portanto, reencontrar meus amigos para uma turnê agora, após quase sete anos limpo, é uma experiência inédita e significativa. Esse processo da recuperação da sobriedade e, consequentemente, da lucidez é uma espécie de despertar para mim.
Minhas memórias mais antigas com álcool são no ambiente familiar. Tenho a lembrança de ver meu pai tomando uísque, um cowboyzinho, antes de sair para jantar com a minha mãe. Eu achava aquilo bonito e elegante. Morávamos no Butantã e, aos 13 anos, ia com minha mãe comprar pão, queijo camembert e uma garrafa de vinho na Praça Panamericana. Tomávamos um aperitivo no fim da tarde com a minha avó. Até então, o álcool estava vinculado apenas a momentos de comunhão, prazer e alegria.
Minha família possui uma casa em Ubatuba, onde passávamos os verões. Adolescente, eu ia com meus irmãos e amigos à praia, onde nadávamos e depois tomávamos caipirinha num bar com vista para o mar. Lembro-me de ficar bêbado, ser levado para casa e colocado debaixo do chuveiro. Hoje, aos 60 anos, percebo que sempre bebi muito. Gostava de ficar bêbado, a embriaguez era um estado que me agradava.
Eu tinha 19 anos quando criamos os Titãs e já gostava de beber nessa época. Havia um bar no Largo de Pinheiros que se chamava Cu do Padre. Eles vendiam batidas de frutas com vodca e leite condensado. Eu nunca gostei desse tipo de mistura, sempre fui um bebedor roots: meu lance era vodca pura ou uísque puro. Maconha eu experimentei aos 11 anos. Fumei dos 15 aos 19 até que comecei a ficar paranoico e tive que parar.
O que distinguia a minha relação com a bebida da do meu pai é que eu não conseguia beber apenas socialmente. Eu bebia compulsivamente, inclusive no ambiente de trabalho. Cometi o erro primário de vincular a bebida ao meu processo de criação artística. Na minha cabeça, o álcool estava associado à minha atuação como músico e compositor, então era indistinto para mim beber durante a semana ou no final de semana. Eu bebia sempre.
A cocaína entrou na minha vida aos 27 anos. Era uma droga presente nos ambientes que eu frequentava nos anos 1980 e 1990. Logo desenvolvi uma dependência cruzada de álcool e cocaína. Eu não me importava de ficar bêbado e cheirado, ao contrário: achava graça nisso. Me divertia sendo o mais doido, o que cheirava a maior carreira, o que bebia todas. Me tornei a figura folclórica, o cara que virava cinco noites sem dormir e fazia shows nesse estado. Fiz dezenas de apresentações completamente embriagado. Pensava: “Olha como eu sou doido, olha como eu sou foda.” Achava que ir a uma sessão do AA (Alcóolicos Anônimos) colaborava para a minha biografia de excêntrico.
Eu sempre gostei de beber sozinho, especialmente nos quartos de hotel após os shows. Num primeiro momento, essa alteração da consciência me levava a um estado contemplativo e de elucubração, que eu associei à criatividade. Eu me considerava um bebedor funcional: compus muitas músicas embriagado e isso funcionou durante muito tempo. Sou extremamente autocrítico e perseguido pela neurose de me sentir incapaz, então a bebida atuava como um agente desinibidor.
O estímulo advindo da ingestão de álcool e do consumo de drogas me levava a pegar o violão e compor. Virava a noite com o violão, uma garrafa de vodca ou de uísque, papel, caneta e cocaína. Eu bebia, cheirava, me sentia culpado por isso e falava: “Tudo bem, eu cheirei, mas agora, para compensar, tenho que fazer uma música.”
Eu me casei e tive filhos muito cedo com a Vânia, minha mulher com quem, entre idas e vindas, estou até hoje. Eu a conheci com 15 anos de idade no primeiro dia de aula no Colégio Equipe. Acho que intimamente eu sabia que bebia muito e que isso incomodava a Vânia. Ao mesmo tempo, eu sentia culpa por gerar incômodo. Então, para mim, era uma delícia ter uma profissão que me permitia passar muito tempo fora de casa, viajando, quando podia beber livremente. Em casa, me sentia cerceado porque as pessoas que estavam ali davam essa medida de que eu tinha um problema com álcool.
Fiquei deslumbrado com a fama. Quando os Titãs estouraram, me lembro de uma cena no Rio de Janeiro a caminho de um show no Maracanãzinho. No nosso ônibus estavam muitos atores da Globo, eu me sentia vivendo num mundo de fama e notoriedade. Hoje vejo como tudo isso é uma bobagem, mas eu era jovem e fui seduzido por aquele universo.
Ao mesmo tempo, eu estava casado, tinha filhos pequenos e sentia o peso da responsabilidade. Me separei da Vânia em três ocasiões desde que nos casamos pela primeira vez em 1985. Uma delas foi aos 40 anos, quando já tínhamos nossos quatro filhos: Theodoro, Sophia, Sebastião e Zoé. Meu quinto filho, Ismael, é fruto de outro relacionamento quando estávamos separados.
A separação ocorreu após um período de profunda dor e tristeza. Eu havia sofrido dois golpes duríssimos: a morte do Marcelo Fromer em junho de 2001 e a da Cássia Eller, seis meses depois. A forma como a minha vida estava estruturada do ponto de vista profissional sofreu uma alteração drástica com esses acontecimentos.
Marcelo era meu grande amigo dentro dos Titãs e a minha relação com a banda sem a presença dele ficou estranha. Já a Cássia era a pessoa com quem eu estava trabalhando fora da banda. Quando ela morreu, perdi precocemente uma grande parceira. Éramos uma dupla, tínhamos uma relação de trabalho maravilhosa, com ela fiz coisas com que sempre havia sonhado profissionalmente.
Em 2002, prestes a completar 40 anos, saí da banda e logo depois me separei. Achava que essas atitudes iriam resolver o meu problema de me sentir eternamente cindido, sempre com os pés em duas canoas: um na banda e outro na carreira solo; um em casa, sóbrio, e outro bêbado e louco rodando pelo mundo. Aparentemente, com as separações, meus problemas de cisão estavam resolvidos e eu estava livre para viver outras experiências.
De fato, tive momentos de muito prazer e mergulhei em trabalhos solo e parcerias com outros artistas maravilhosos. Criei músicas de muito sucesso. Vivi uma espécie de ilusão de que tinha encontrado um mundo perfeito. No entanto, não existe perfeição – nem sóbrio, muito menos bêbado.
Morando sozinho, passei por períodos limpo, mas também por fases em que bebia e cheirava todos os dias. Fui perdendo o freio do consumo do álcool e da cocaína e aquilo foi comprometendo a minha vida pessoal e profissional. Na carreira que escolhi, não adianta só fazer composições bacanas no quarto de hotel, eu me propus a me apresentar em público. Fiz coisas horrorosas, como cantar completamente embriagado e cair no palco. Cheguei a tocar duas vezes a mesma música num show porque não lembrava que tinha tocado antes. Se tivesse feito o que fiz na era dos celulares e das redes sociais, eu seria aniquilado.
Do ponto de vista familiar, as coisas foram ficando muito ruins. Me tornei uma pessoa inconveniente e desagradável e naturalmente meus filhos foram se afastando de mim. Quando seus filhos são crianças, eles não se dão conta de que você está bêbado, mas quando crescem, aquilo incomoda. Minha filha ligava para mãe e dizia: “Vem me buscar porque o papai está um saco.” Em determinado momento, a Vânia proibiu nossos filhos de irem à minha casa. Eu os machuquei muito – nunca fisicamente, mas emocionalmente.
Não era apenas aquele clichê do pai ausente, que combina de fazer um programa e fura. Muitas vezes eu estava fisicamente com eles, mas completamente distante ao mesmo tempo. Eles iam para a minha casa e eu os deixava vendo televisão com a babá enquanto ficava no quarto cheirando. Fui irresponsável e os expus a riscos. Tenho a sorte de não ter matado ninguém nem sofrido nenhum acidente grave porque eu dirigia bêbado com eles no banco de trás.
O fundo do poço foi uma viagem para Seattle em 2016. Ali não havia cocaína, então mergulhei de cabeça no álcool. Eu simplesmente não conseguia parar de beber. Foi a primeira vez que acordei no meio da noite sentindo a necessidade de ingerir álcool. Percebi que estava ficando louco, desesperado e não enxergava saída para aquela situação. A Vânia já não falava mais comigo, meus filhos não queriam mais saber de mim, eu havia afastado as pessoas mais queridas e mais importantes da minha vida. Precisava retornar para o Brasil porque estava no meio de uma turnê importante, mas não tinha a menor condição de subir no palco e cumprir meus compromissos. Pensei: “Fudeu, vou me matar.”
Só que eu estava hospedado num hotel de dois andares, não adiantava pular da janela. Eu não tinha revólver, não havia fogão ali, então pensei: “Vou cortar meus pulsos.” Fui à farmácia, comprei uma pomada de xilocaína e passei, na esperança de não sentir dor. Cheguei a quebrar uma garrafa de vidro para ter um objeto cortante, mas não tive coragem de ir até o fim. Aquela não era a primeira vez que eu tentava me matar. Já tinha feito uma tentativa anterior com remédios e outra no vigésimo terceiro andar de um prédio. Subi no parapeito, olhei para baixo, mas não tive forças para me jogar.
De Seattle, liguei para o meu psiquiatra e falei: “Pelo amor de Deus, me interna, preciso parar de beber.” Cheguei ao Brasil no início de maio de 2016, consegui ficar dois dias limpo, a Vânia viajou comigo para o show em Fortaleza e consegui me apresentar. Depois comecei a frequentar um grupo do AA no bairro onde eu moro em São Paulo.
Sou fã do trabalho do AA e ali conheci pessoas fascinantes. Ao mesmo tempo em que é possível ver o drama humano em toda sua crueza, existe uma beleza na solidariedade entre os que compartilham da mesma dor. Eu já havia ido a sessões do AA em outras ocasiões, a primeira no início dos anos 1990. Também fui mandado para um spa pelo meu psiquiatra para que eu pudesse ter uma vigilância – revistaram a minha bagagem quando dei entrada – e fiz tratamento com um medicamento chamado antietanol. Ficava alguns períodos sóbrio, mas depois recaía. Meu último ingresso no AA foi em maio de 2016 e continuo frequentando o mesmo grupo até hoje. Desde então, fiquei cinco meses sóbrio, tive uma recaída de três semanas e estou sóbrio há quase sete anos.
Credito parte do “milagre” da minha sobriedade ao Gilberto Gil, meu ídolo ao lado do Caetano Veloso. Fui convidado para me apresentar com ele e a Gal Costa num show no dia 7 de outubro de 2016, em Brasília. O evento comemoraria o centenário de nascimento do Ulysses Guimarães, figura que é um símbolo da democracia brasileira. Um pouco antes, eu tinha voltado a beber e teria que participar de um ensaio para essa apresentação. Lembro que fui para lá alcoolizado. Consegui fazer o ensaio razoavelmente bem, mas percebi que não poderia continuar daquele jeito. Se eu me apresentasse bêbado ao lado do Gil, eu simplesmente ia arruinar a minha carreira.
Não sei dizer o que aconteceu na minha cabeça, mas desde então parei de beber e não tive nenhuma recaída. As pessoas do meu grupo do AA ficam horrorizadas quando conto que vou participar de uma turnê. Elas dizem: “Mas você vai viajar? Olha lá, tem que tirar as bebidas do frigobar.” Eu respondo: “Gente, se eu quiser beber, eu bebo. Se eu quiser cheirar, eu cheiro. Bebida e cocaína tem aos montes por aí, não é por falta de oferta que eu parei.”
Gosto de beber. Se eu pudesse, eu bebia. Acontece que eu não posso porque sou alcoólatra. Não pretendo recair porque conheço as consequências do primeiro gole. Se eu tomar uma dose de vodca, vou precisar de outra e de mais outra e de mais outra, num desejo sem fim. É algo desesperador porque não há nada que o sacie. Não vou voltar a beber porque sei que o álcool só traz dor para mim e para os que estão ao meu redor.
Me entristeço pensando nos estragos que o meu alcoolismo e o meu abuso de drogas causaram na minha relação com os Titãs. Nos meus últimos cinco anos com a banda, eu era uma figura patética, atrapalhei muito e fiz coisas horríveis. A bebida alimentou o rancor, a inveja, a hostilidade, a insegurança e a paranoia dentro de mim. Hoje sei que eles são meus amigos e me amavam, mesmo quando estavam com ódio de mim.
Me sinto feliz de reencontrá-los mais de vinte anos depois, de cara limpa e com toda a experiência acumulada. Está sendo incrível me reaproximar nesses moldes, revisitar a nossa obra e perceber que são pessoas que admiro, amo e com quem tenho uma relação muito forte.
Há muitas camadas de emoções: reunir a banda com quem comecei a minha carreira, reencontrar o público que cresceu ouvindo as nossas músicas e ver a minha mulher, os meus filhos e netos reunidos na plateia – boa parte deles nem eram nascidos quando saí dos Titãs. Se fosse oito anos atrás, esse encontro não teria sido possível. A sobriedade me permitiu isso.
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