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    A escritora Carolina Maria de Jesus e a imagem de uma mulher japonesa entre livros: conhecimento além do superficial

questões raciais

O Japão quer saber da literatura negra brasileira

Um professor universitário carioca conta como foi acolhido com mais interesse no meio acadêmico de Tóquio do que costuma ser no do seu país

Henrique Marques Samyn | 25 out 2023_08h55
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Minha chegada ao Japão estava prevista para o dia 23 de julho, domingo. Mas houve uma sucessão de atrasos e por pouco não precisei passar uma noite em Dubai, o que acarretaria mudanças em um cronograma de atividades planejado havia meses. Quando por fim desembarquei em Tóquio, na madrugada de segunda-feira, não conseguia deixar de me perguntar o que, afinal de contas, estava fazendo ali.

Eu havia sido convidado pela professora Chika Takeda, importante pesquisadora e tradutora de literatura brasileira, para ministrar um seminário sobre temas aos quais venho me dedicando há anos como docente efetivo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Mas isso não me bastava para aplacar a inquietação. O fato é que eu ocupo e, ao que tudo indica, ocuparei até a morte, o corpo de um homem negro, criado em um bairro periférico do Rio de Janeiro (cada vez mais reduzido a um campo de batalha entre milicianos e traficantes) –, e que frequentemente fracasso na tentativa de escudar meu desconforto, à maneira do Tito Brandão, personagem apenas esboçado por Lima Barreto, em uma anotação.

Fui um moleque, que passava as manhãs e as tardes jogando bola e fliperama (nunca aprendi a soltar pipa); que cresceu em uma casa com pouquíssimos livros (mas que, por sorte, tinha acesso a uma biblioteca pública, hoje extinta, em frente à vila em que morava); que teve vários colegas de bairro presos ou assassinados; que foi parar na universidade por acaso, numa desesperada tentativa de escapar de empregos precários (e só foi entender o que estava fazendo lá dentro às vésperas de completar a graduação). Como esse moleque não apenas sobreviveu, mas foi parar do outro lado do mundo?

 

Essas questões me passavam pela cabeça enquanto eu e minha companheira de vida e de projetos seguíamos de táxi por uma autoestrada, rumo ao hotel. No caminho, avistei um anúncio luminoso que estampava o rosto de Keisuke Honda, o ex-jogador de futebol que já defendeu o Botafogo. Seria um sinal de sorte? O cansaço me ajudou a adotar a estratégia à qual sempre recorro em ocasiões semelhantes: simplesmente não pensar muito. Como eu já tinha compromissos a cumprir no dia seguinte, desabei na cama assim que entrei no quarto. Essas indagações não deixariam de me acompanhar (estão comigo o tempo todo, não diferindo muito das que afligem a maior parte das pessoas negras em espaços acadêmicos), mas elas logo cederiam lugar a outros questionamentos, por força das circunstâncias.

Desde que aceitara o convite para ministrar o seminário na Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio, eu perguntava a mim mesmo: como seria falar sobre literatura negra brasileira para um público de docentes japoneses? Qualquer pessoa que se dedica a essa área nas universidades brasileiras conhece muito bem o tratamento que nos é dispensado. Ainda que, hoje em dia, colegas se refiram com um mínimo de respeito a figuras como Carolina Maria de Jesus, Oswaldo de Camargo, Cuti e Conceição Evaristo, temos plena consciência do que se esconde sob a máscara da cordialidade.

Sabemos que o conhecimento de colegas sobre escritoras e escritores vinculados à tradição negra é mínimo (se têm algum). A pressão do politicamente correto os leva a valorizar a literatura negra pelo que encerra de “denúncia”, mas eles não têm qualquer interesse em analisá-la no âmbito de projetos estéticos; eventualmente, incorporam às suas aulas e pesquisas textos e livros de autoria negra, mas com a condescendência e o paternalismo que olhos experientes estão habituados a enxergar.

Se aqui, no Brasil, sei que muitas vezes minha presença é percebida apenas como algo útil – afinal de contas, é bom contar com um professor “militante”, capaz de dialogar com jovens estudantes que têm interesse por escritoras e escritores negros que agora estão na moda, pelo menos até que tudo isso passe, talvez daqui a cinco ou dez anos… –, como o meu trabalho seria recebido por colegas da universidade japonesa?

Felizmente, essas dúvidas não demoraram a se dissipar. Enquanto eu preparava as minhas conferências, idealizei um público japonês com pouco (ou nenhum) conhecimento sobre a literatura negra brasileira, que se inscrevera no seminário apenas pela curiosidade de me ver. Logo percebi o quanto estava equivocado. Como os participantes eram pesquisadores que estudam e entendem a língua portuguesa, e que graças à internet têm amplo acesso ao que é produzido no Brasil, havia ali pessoas que não apenas conhecem os nomes de nossos escritores negros, mas leram as suas obras – e não as percebem como produções menores, mas sim como textos literários importantes, que demandam tanta atenção quanto os nomes (brancos) que têm mais apelo midiático e penetração editorial.


Quando parti de Tóquio, uma semana depois, outra era a indagação que mais me ocupava e me motivou a escrever este texto: o que fez com que eu, professor negro, me sentisse mais acolhido naquela universidade japonesa do que nos meios acadêmicos do meu próprio país, para tratar da literatura negra? Não que não haja espaços receptivos por aqui: como em todo o território brasileiro, também nas universidades, nas instituições culturais e escolares, nós construímos aquilombamentos e nos articulamos para viabilizar ações e alianças, muito longe (felizmente) dos limites da branquitude. Contudo, o mundo acadêmico e cultural brasileiro é ainda extremamente hostil – não por causa das contradições e tensionamentos que lhe são inerentes, mas do racismo.

O racismo que, mais explicitamente, coloca obstáculos à concessão de bolsas, à publicação de textos acadêmicos, ao ingresso de pessoas negras na pós-graduação; e que, mais tacitamente, concede brechas e estreitos espaços, às custas de uma transigência e de uma obsequiosidade que não temos dificuldades para reconhecer.

Não quero dizer com isso, por óbvio, que não haja racismo na sociedade japonesa – como, aliás, uma senhora (branca) fez questão de apontar quando, em certo evento no Brasil, comentei sobre aulas que ministro para alunos japoneses. Essa é uma outra questão, que demanda a consideração de particularidades históricas, políticas e culturais. O que quero dizer é que, na posição de acadêmico brasileiro falando para o público japonês, fui recebido em Tóquio como um pesquisador que se debruça sobre obras literárias negras esteticamente relevantes (se não fossem, porque eu as pesquisaria?), cujas perspectivas críticas são legítimas (se não fossem, porque eu falaria sobre uma tradição crítica negra?) – e, por isso, não precisei recorrer a estratégias para lidar com a indulgência e as tentativas de desqualificação sempre presentes em universidades brasileiras.


Já de volta ao Brasil, em conversas com colegas de literatura e academia, pude compartilhar a satisfação ao perceber concretamente que, se por aqui o cenário é ainda adverso e desfavorável, a nossa literatura negra brasileira tem alcançado outros territórios, onde há auspiciosas condições de recepção.

Isso é resultado do trabalho de pessoas que estão por aí, há décadas, construindo aquilombamentos e ferrovias subterrâneas que lograram ultrapassar alguns dos mecanismos opressores presentes na sociedade brasileira. É o resultado de um árduo trabalho que nós herdamos: passos que vêm de longe.

Aquele moleque, cria da Praça Seca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, esteve em Tóquio e pôde perceber que, sim, nós conseguimos – e (nós por nós!) continuaremos.

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