Um marujo francês no Rio imperial
Cartas escritas por Édouard Manet quando tinha 17 anos traçam um retrato mordaz do Brasil dos anos 1840
Comprei o livro de presente para minha namorada e, mal-educado, comecei a ler antes dela. Eu não tinha particular interesse pela obra de Édouard Manet ou pela pintura francesa do século XIX, mas, fora o prefácio e o posfácio, o livro não trata disso. É um compilado de cartas que Manet escreveu para a família quando viajou ao Rio de Janeiro a bordo de um navio-escola. Tinha 17 anos, ainda não pintava, queria ser marinheiro – por isso a viagem. A bordo do navio, tinha aulas de matemática, jogava damas e aprendia sobre a vida de marujo. O trajeto até o Brasil dura cerca de quarenta dias, ao longo dos quais Manet faz observações banais, divertidas e frequentemente mal-humoradas sobre a vida no mar.
As cartas foram compiladas em um livro pela primeira vez em 1928, e agora ganharam uma reedição pela editora Ercolano. O projeto gráfico, em tons marítimos, é muito bonito. Para o leitor, pouco importa que Manet seja Manet. O diário causa certo fascínio porque serve de janela para uma época que, embora não esteja tão distante assim, parecia ainda ser regulada por forças da tradição e do misticismo. O tempo é lento. As figuras do navio – o capitão, sr. Besson, “sempre bem educado e amável”; o imediato, “uma verdadeira besta, um lobo do mar”; os grumetes “encardidos” –, têm um ar romântico, fantasioso. A vida é permeada por todo tipo de formalidade: barcos pequenos devem, por cortesia, saudar os barcos maiores ao passar por eles (Manet recrimina um brigue espanhol que ignora essa etiqueta); os marujos se preocupam em pintar o navio antes de entrar na Baía de Guanabara, para que ele cause boa impressão; quando cruzam a linha do Equador, dão início a uma cerimônia de batismo fantástica, que envolve um astrólogo, um padre, um barbeiro, um camponês bretão e marujos interpretando o papel de Netuno e do diabo.
A viagem se inicia em dezembro de 1848, dez meses depois da revolução que destronou a monarquia francesa e pôs os burgueses no poder. O assunto aparece de vez em quando nas cartas de Manet, que, preocupado com a figura de Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho de Napoleão, escreve para seu primo Jules: “Por favor, só não vá me dizer que ele será nomeado imperador, isso seria bizarro demais.” Eu conto ou vocês contam?
O registro histórico de maior interesse, no entanto, trata do Rio. Manet, um adolescente de família rica, enfastiado com a rotina repetitiva da Marinha e cansado da viagem longuíssima, é pouco generoso ao descrever a cidade que encontra. Disso resulta um retrato caricato, engraçado para nós brasileiros. Os homens são descritos como “indolentes” e sem “muita energia”; e, segundo ele, “ninguém pode ser mais pudica e tola do que uma brasileira”.
Mas, em sua má vontade, Manet conseguiu captar o ar inegavelmente patético do Brasil imperial. Ele descreve as mulheres ricas que passam o dia escondidas em casa, invisíveis, sempre arrumadas, enquanto uma multidão de escravos vaga pelas ruas. Quando não está fazendo elogios protocolares às montanhas e à floresta, Manet é impiedoso. Sobre as igrejas, comenta que “tudo é dourado, tudo é iluminado, mas de mau gosto”; o palácio do imperador é “uma verdadeira biboca, uma coisa mesquinha”; e o exército brasileiro “não passa de algo cômico”. Por mais que possam conter pitadas de arrogância europeia, as espinafradas do jovem francês, distribuídas em frases curtas, resultam numa leitura prazerosa.
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