Na Imperatriz, quem chegou à noite de domingo já tinha passado por todas as fases de filtragem: frequentou os ensaios, não vazou imagens das fantasias, não compartilhou informação sigilosa nas redes sociais e não estava alcoolizado acima do tolerável Foto: Tita Barros/Reuters/Folhapress
A engenharia de um desfile
“Isso aqui não é lugar de marchar, não é quartel”, gritou um dos coordenadores da escola, na boca da Sapucaí. “É Carnaval, é competição. Tiro, porrada e bomba!”
“Fecha os olhos”, ordena a maquiadora, manuseando um pincel sobre as sobrancelhas da mulher sentada à sua frente. São dez e meia da noite, e a Rua General Caldwell, na altura do número 182, está agitada. Ali funciona o Colégio Estadual Júlia Kubitschek, localizado a 650 metros da Marquês de Sapucaí, no Centro do Rio de Janeiro. Como é domingo de Carnaval, não há aulas. O prédio, em vez disso, está tomado de integrantes da Imperatriz Leopoldinense. Os maquiadores têm pressa. Embora a escola seja a última a desfilar, o que só vai acontecer nas primeiras horas da manhã, a pintura dos rostos precisa ser concluída com antecedência. Um dos coordenadores avisa em voz alta: “Os maquiadores vão estar disponíveis apenas de nove a meia-noite. É igual a prova do Enem: fechou o portão, acabou. Quem não entrou, não vai desfilar.”
Tem malandros com chapéu a tiracolo, planetas vestindo sandálias prateadas, sonhos com pálpebras azuis e roupa branca. Na ala que representa o planeta Mercúrio, a maquiagem é feita em sete etapas. Cadeiras foram dispostas em círculo dentro de uma sala de aula, com algumas mesas no meio, onde se apoiam objetos pessoais, colas, pincéis e glitter. São dez maquiadores para oitenta pessoas. Montou-se uma linha de produção: quem chega se acomoda na cadeira mais próxima à porta, recebe a primeira camada de maquiagem e pula para o assento ao lado; mais uma camada, mais um pulo para o lado, até que se complete toda a volta. Quando sai da sala, o rosto já é outro.
A responsável pela equipe de maquiadores, Edilaine Souza, trabalha com maquiagem carnavalesca desde 2008. Os produtos, ela explica, são de uma marca alemã, uma das melhores do ramo. Resistem a lágrimas, chuva e suor. “Tudo é pensado para que a maquiagem dure bastante. É um trabalho para ser visto do alto, como num espetáculo teatral. Quem está longe também tem que ver.” Do lado de fora da sala, quem já foi maquiado papeia. “Esperei o ano inteiro para aparecer na Globo, mas a maquiagem cobre o rosto todo. Acho que ninguém vai me reconhecer”, brinca uma componente. Em seguida, todos caminham para o ponto de encontro da escola, na Avenida Presidente Vargas.
Principal via de acesso ao Centro do Rio, é uma rua larga e, em alguns pontos, perigosa de se frequentar à noite. Em dias de desfile, no entanto, vira outra coisa. Há carros alegóricos estacionados na avenida e pessoas sendo erguidas até o topo deles. Foliões sem ingresso para o Sambódromo formam uma arquibancada paralela, sentados em cadeiras de praia, deitados em cangas, colchonetes. Alguns dormem, outros circulam entre barracas de churrasquinho e pipoqueiros, observando a movimentação. Centenas de integrantes das escolas de samba vão e vêm carregando suas fantasias em sacos transparentes (por causa do peso e do calor, convém vestí-las só mais perto da hora do desfile).
Na Imperatriz, quem chegou à noite de domingo já passou por todas as fases de filtragem: frequentou os ensaios, não vazou imagens das fantasias, não compartilhou qualquer informação sigilosa nas redes sociais e não está alcoolizado acima do tolerável. Aos homens, barba comprida é vetada – o excesso de pelos prejudicaria a pintura do rosto. Recomenda-se muita água, alimentação leve e uma boa noite de sono na véspera da apresentação, mas nem todos conseguem cumprir o último requisito. “Mais uma noite virado, cansadão”, ouvi de um integrante da escola.
Campeã no ano passado, a Imperatriz desfilou dessa vez com 23 alas, a maioria delas com 80 integrantes. Ao todo, 3 mil pessoas desfilaram pela escola, sendo 250 na bateria. Os nomes das alas remetem a endereços da Zona da Leopoldina, área histórica da Zona Norte do Rio, onde a escola foi fundada há mais de sessenta anos. Uma delas chama-se Piscinão de Ramos, um dos principais pontos de lazer suburbano na cidade; outra, Morro da Baiana, no Complexo do Alemão. Há também uma ala batizada em homenagem ao 484, ônibus que liga Olaria a Ipanema.
Semanas antes do desfile, num sábado, 3 de fevereiro, o grupo de WhatsApp que reúne os integrantes da ala Piscinão de Ramos estava alvoroçado. Era o dia de entrega das fantasias na Cidade do Samba, complexo carnavalesco situado no Santo Cristo, zona portuária do Rio. É onde ficam os barracões das escolas, dentro dos quais são produzidos os figurinos e os carros alegóricos do Grupo Especial. “Bom dia, famíliaaaaa! Alguém já pegou a fantasia?”, perguntou um componente da Imperatriz, às 10h35 da manhã. Todos estavam curiosos, já que até então nada havia sido revelado sobre as roupas. “Já. Linda e leve. O Leandro ganhou mais uma estrelinha”, respondeu uma das integrantes. Leandro, no caso, é o carnavalesco Leandro Vieira, responsável por dirigir o desfile da escola este ano.
Flávia Vilarinho, 41 anos, trabalha na equipe de Harmonia da Imperatriz. Isso significa que ela, ao lado de outros funcionários da escola, é responsável por supervisionar e animar os componentes ao longo do cortejo na Sapucaí, cantando e cativando o público. Vilarinho já desfilou pela Imperatriz sete vezes, mas esse é o primeiro ano em que se envolveu na organização do desfile. Naquela tarde, sentada em frente ao barracão da escola, ela recepcionava os integrantes que vinham buscar suas fantasias. Em cima da mesa de plástico vermelha, uma pilha de papéis contendo os termos de compromisso de entrega e devolução das fantasias – todas custeadas pela própria Imperatriz. O desfilante, e ninguém mais, é quem deve resgatar as roupas, numa data única, abrindo-se raríssimas exceções.
Antes que eu pudesse cumprimentá-la, ela se adiantou: “Tá com o samba na ponta da língua, né? Tem que saber. Eu já desfilei sem saber, uma vez, há muitos anos, e é uma sensação muito ruim. Você fica perdido, desintegrado.” Em seguida, explicou o que eu devia vestir por baixo dos adereços – “vai com uma blusa de alcinha, simples, branca. Não pode atrapalhar as cores da fantasia” – e recomendou que eu deixasse os pertences em casa – “não tem onde deixar bolsa, mochila, nada. Uma doleira é suficiente”. Eu deveria chegar à Sapucaí já vestindo a sandália da fantasia? Se não, onde poderia trocar de calçado? “Há quem use um chinelo velhinho que pode abandonar em qualquer canto, mas eu, Flávia, sempre saio de casa usando o sapato da própria fantasia. O cuidado precisa ser redobrado porque nada de errado pode acontecer.”
Márcio Vasconcellos entrava e saía do barracão carregando os figurinos. Ao entregá-los, advertia: é preciso conferir se todos os itens estão dentro. Eram sete, listados num papel colado à embalagem de plástico: gola de arame, malha, sapato, adereço de mão, cinto, túnica e “cabeça”. A gola, que fica presa nos ombros, é o adereço mais pomposo. Tem lantejoulas, pedacinhos de espelho e muito brilho. A malha é uma espécie de cueca padrão, branca, unissex, que deve ser vestida por baixo da túnica. O sapato precisa estar na numeração correta. E a cabeça é um capacete coberto de pontas compridas com efeitos luminosos, que se estendem por 75 centímetros. O acessório é amarrado ao queixo por uma alça de silicone. “Se faltar alguma peça, se algo rasgar, o componente não desfila. Fantasia incompleta não entra na avenida”, prosseguiu Vasconcellos. A devolução das fantasias é marcada para dias depois do desfile. Quem entrega tudo corretamente já tem o passaporte carimbado para 2025, como numa espécie de pré-inscrição.
Vasconcellos tem 48 anos e também faz parte da equipe responsável pelo setor de Harmonia. É chamado de Márcio da Imperatriz. Seu trabalho, assim como o de Vilarinho, é voluntário. Ele desfilou pela primeira vez em 2019, ano em que a escola foi rebaixada do Grupo Especial, e sentiu-se tão triste que resolveu ajudar. Nos grupos de WhatsApp, desde o começo do ano, atuou como um fiscal inclemente. “Infelizmente o chato do Márcio tem que falar e informar vocês”, escreveu, certa vez, falando de si mesmo em terceira pessoa. “Não tem jeito. Quem quer ser campeão e bicampeão tem que ter esforço extra. Tem muitos componentes no limite de faltas. Se não comparecer aos ensaios vai ser cortado. Cada um tem que dar o seu melhor.” Em seguida, amenizou a bronca com um afago: “TMJ [tamo junto] NESSE CAMINHO E TENHO CERTEZA QUE VOCÊS ESTÃO FAZENDO O MELHOR.”
Ouve-se o som agudo de um apito, e Patrick Furtado diz: “Atenção, pessoal: a escola tá quase montada.” Ele caminha entre as alas carregando um rádio comunicador e vestindo sapato branco, calça branca e camisa verde com a coroa símbolo da Imperatriz estampada nas costas. Todos os coordenadores seguem o mesmo padrão.
“Montar a escola” é resolver um longo quebra-cabeça. O desfile é dividido em cinco setores, cada um deles contando um pedaço do enredo. Furtado é o chefe de Harmonia do setor 4. Fala alto e firme: “Isso aqui não é lugar de marchar, não, gente. Não é quartel. Não façam esses movimentos com as mãos”, disse, imitando alguém com o corpo paralisado, balançando lentamente. “É carnaval. É samba. É competição. Vamos passar por cima. É tiro, porrada e bomba! Eu quero o bi[campeonato] e sei que vocês também!”
O sucesso ou não de um desfile é resultado de um minucioso trabalho em equipe. No caso da Imperatriz, que não foge à regra das grandes escolas, foram três meses de ensaio desde que se definiu o samba-enredo, em outubro do ano passado. Essa preparação é importante para determinar onde cada pessoa vai se posicionar na avenida. Eram feitos dois ensaios por semana: um na quadra da escola, situada no bairro de Ramos, e outro na Rua Euclides Faria, perto da quadra, no entorno do Complexo do Alemão. Algumas alas tinham coreografias para decorar, outras não.
No Sambódromo, diante das câmeras de tevê e dos holofotes, a ala Piscinão de Ramos adquire o nome provisório de “Sob a regência de Mercúrio”, associado ao enredo. A ala 484 vira “Sob a regência de Marte”. O desfile avança com fileiras horizontais compostas de oito ou dez pessoas (o número varia a depender de alguns fatores, como o tamanho da fantasia). A cobrança por um alinhamento perfeito é maior para quem está na primeira fileira ou nas pontas. Aconselha-se uma distância de cerca de um metro entre uma fileira e outra. É preciso ocupar toda a pista e manter o entusiasmo alto, interagindo com as arquibancadas. Regras com força de mandamento: não pode mexer no celular, não pode ter aglomeração, não pode ter desânimo e é preciso mascarar qualquer sinal de cansaço. “Evoluir” é a palavra-chave: manter a cabeça erguida, seguir em frente e não olhar para trás, para não atrapalhar o andamento.
A dança e a progressão são avaliadas pelos jurados no quesito Evolução; o ritmo e força do canto, no quesito Harmonia. Dos nove quesitos, esses são os mais imprevisíveis. O entrosamento entre todos eles (há ainda Fantasias, Comissão de Frente, Samba-Enredo…) é um mistério que se desvenda somente quando a escola já está na avenida. Antes disso, faz-se o que pode. Nos últimos minutos antes de entrar na Sapucaí, figuras como Márcio Vasconcellos circulam entre os componentes, dando orientações. Flávia Vilarinho ajuda a amarrar uma “cabeça”, posa para uma foto, segura um estandarte, ajeita o próprio cabelo e ensina os novatos a dobrar o saco da fantasia para colocá-lo dentro da roupa. Precisarão dele mais tarde, pra guardar tudo de novo.
A atmosfera esquenta quando a Imperatriz aparece diante do setor 1, a arquibancada mais popular, no início da passarela do samba. O desfile começa com um estalar de fogos. Alto-falantes anunciam a entrada da escola e reproduzem sambas-enredos históricos da agremiação. Algumas pessoas se dão as mãos e desejam boa sorte. Depois, nada mais é dito; toda palavra dali em diante é cantada. Quando se entra na avenida, o céu parece maior do que qualquer outro. É diferente da rua onde ensaiávamos, porque lá as árvores bloqueiam parte da vista. Tênis são trocados por sapatos e sandálias reluzentes, shorts dão lugar a saias em tecidos de todas as cores.
O tempo de uma escola na avenida não pode exceder setenta minutos, regra seguida à risca. Desobedecê-la custa pontos. A Imperatriz encerrou o desfile com 69 minutos. Quando as últimas alegorias chegaram à Praça da Apoteose, o dia estava claro. Uma multidão de foliões seguiu a escola nos momentos finais, cantando e dançando o samba-enredo. Segunda-feira de Carnaval, dez para as seis da manhã. Os componentes foram relaxando aos poucos, removendo parte dos adereços. Um deles sussurrou surpreso para um amigo: “Já acabou?”
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