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    Policiais militares na Comunidade da Varginha, em Manguinhos: os "tempos de paz" alardeados com a instalação da UPP, em 2012, nunca se concretizaram Foto: Felipe Dana/AP Photo/Imageplus

questões de segurança pública

Uma tragédia que dura dez anos

O julgamento do policial que matou Johnatha Oliveira no Complexo de Manguinhos, em 2014, serve de epílogo para a era das UPPs

Amanda Prado, do Rio de Janeiro | 26 abr 2024_10h57
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Ainda estava escuro quando um grupo de policiais começou a entoar: “Lealdade, destemor, integridade serão os primeiros lemas.” Os versos fazem parte do hino do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da Polícia Militar do Rio de Janeiro. “Desta equipe sempre pronta a combater toda a criminalidade. A qualquer hora, a qualquer preço.” O gaúcho José Mariano Benincá Beltrame vestia calça jeans e camisa polo, destacando-se à frente da tropa de quepes, coldres e coletes. Os policiais se preparavam para entrar antes do amanhecer na favela de Manguinhos, Zona Norte do Rio, e permanecer por lá mesmo, num modelo de policiamento até então inédito. Concluído o hino, ouviu-se a voz de Beltrame, secretário de Segurança Pública do estado na época: “Boa sorte a todos.” Por volta das 4h50, aproximadamente 2 mil agentes infiltraram os becos da favela. Era domingo, 14 de outubro de 2012.

O fim de semana estava nublado. Era um feriadão prolongado, mas não deu praia. No noticiário, só se falava de uma coisa: a pacificação. A operação supervisionada por Beltrame marcava a expansão do modelo das UPPs, as Unidades de Polícia Pacificadora. A PM comemorou nas redes sociais a ocupação, largamente incensada pela imprensa naquele momento. O então governador, Sérgio Cabral, celebrou numa entrevista: “O efeito prático disso é a valorização da vida. Valorizou a vida, valoriza tudo.”

Repórteres, fotógrafos e cinegrafistas também se espalharam pelas ruas de Manguinhos. Jornais brasileiros e estrangeiros. Usuários de crack que se aglomeravam em alguns pontos, formando uma das maiores cracolândias da cidade, foram levados para abrigos da prefeitura. Por volta das dez da manhã, as bandeiras do Brasil e do Rio foram hasteadas pelos policiais na praça principal da favela. O gesto simbolizava a chegada do Estado e anunciava que aqueles seriam, enfim, “tempos de paz”.

Foi em Manguinhos que a pedagoga Ana Paula Gomes de Oliveira cresceu e teve dois filhos. O primeiro nasceu em dezembro de 1994, quando ela tinha 18 anos. Grávida, lembra de ter se emocionado quando Bebeto, ao marcar um dos gols do Brasil contra a Holanda nas quartas de final da Copa do Mundo, comemorou balançando um bebê invisível. O centroavante homenageava o próprio filho, que acabara de nascer. Oliveira se sentiu contemplada. Cogitou batizar seu bebê com o nome do filho de Bebeto, Matheus, mas acabou desistindo da ideia. Fã da boy band New Kids on the Block, preferiu homenagear um dos vocalistas do grupo, dando à criança o nome de Johnatha. Entre os familiares, Johninha.

O menino foi o primeiro neto da família. Cresceu soltando pipa, jogando bola no campo de futebol da favela – único opção de lazer por ali – e passeando na garupa da moto de sua tia Patrícia. Quando veio a UPP, tinha acabado de fazer 18 anos. Por causa de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, a família mudou de casa, em Manguinhos, em outubro de 2013. O novo endereço era maior e mais confortável, com um quarto só para Johnatha, paredes pintadas de azul – como ele pediu – e cama de casal. Em dezembro, ele fez 19 anos, já pensando na festa que daria aos 20.

 

Manguinhos, o bairro, passou a existir no papel somente nos anos 1980, mas já era habitado muito antes disso. É um complexo de favelas que, como indica o nome, foram se erguendo sobre uma região de mangues, próxima à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Muitos dos primeiros moradores eram funcionários da instituição, que se instalaram na região a partir da década de 1950. O bairro é margeado pela Avenida Brasil e fica a poucos quilômetros do Aeroporto do Galeão. Abriga aproximadamente 40 mil pessoas e tem um dos piores índices de desenvolvimento humano (IDH) da cidade do Rio.

A presença do Estado, ali, sempre se deu na forma de polícia. A repressão ao tráfico de drogas causava, e ainda causa, tiroteios frequentes. Com a UPP, o objetivo era, finalmente, abrir um leque de soluções que não se resumisse apenas à bala. Policiais armados convivendo com os moradores 24 horas por dia exerciam o que se chamou de “polícia de proximidade”. A UPP funcionava como um batalhão com sede fixa e permanente, em torno do qual o governo pretendia desenvolver programas sociais de longo prazo.

A primeira unidade foi instalada em 2008, na favela Santa Marta, na Zona Sul do Rio. Os resultados, num primeiro momento, foram animadores. A presença intensiva da polícia reduziu os índices de violência e os tiroteios. Mas a boa fase durou pouco. A pesquisadora Palloma Valle Menezes, estudiosa do assunto e autora do livro Entre o fogo cruzado e o campo minado: a “pacificação” das favelas cariocas (2023), argumenta que o projeto das UPPs começou a entrar em crise quatro anos depois, em 2012. 

Olhando em retrospecto, o desfecho não chega a ser surpreendente. A presença permanente da polícia, por mais que fosse uma novidade nas favelas, nunca ameaçou romper a lógica da guerra às drogas. Os traficantes, depois de um revés momentâneo, encontraram formas de se manter próximos ao seu mercado consumidor. Para os moradores das áreas ocupadas, diz Menezes, o regime do fogo cruzado – com incursões esporádicas da polícia – deu lugar ao regime do “campo minado”, em que a tensão não era mais ocasional, e sim permanente. “A ‘pacificação’”, explica a pesquisadora, sempre usando o termo entre aspas, “não significou o fim da experiência de vida sob cerco. Criou apenas uma nova modalidade.”

Depois do sucesso inicial, o governo do estado empreendeu esforços mais ambiciosos. Ocupou, em 2010, o Complexo do Alemão, um dos maiores conjuntos de favelas do Rio. Um ano mais tarde, ocupou a Rocinha, a maior de todas. A grandiosidade dessas operações marcou a consolidação do modelo das UPPs, mas também o começo de sua derrocada. Os problemas que já vinham acontecendo em menor escala em outras favelas – recrudescimento das mortes violentas, relatos de abuso policial – se ampliaram. O desaparecimento de Amarildo, pedreiro que morava na Rocinha e foi morto e torturado por policiais da UPP em 2013, simbolizou o momento de virada da opinião pública. Em 2014, ano de Copa do Mundo e de eleição, a desconfiança em relação ao projeto já começava a despontar nos debates políticos.

Numa tarde de maio daquele ano, Ana Paula Gomes de Oliveira terminou de preparar um pavê e pediu que o filho, Johnatha, levasse o doce até a casa de sua avó, na própria favela de Manguinhos. O rapaz topou, mas pediu que, em retribuição, a mãe lavasse a louça que ele havia deixado no almoço. “Dá essa moral aí”, disse, abraçando Oliveira pelas costas. Em seguida, levou o pavê até a casa da avó, acompanhado da namorada. Chegando lá, brincou com o cachorro, ficou por alguns poucos minutos e logo saiu, conduzindo a namorada até onde ela morava, ali perto. Depois rumou de volta para casa.

Ele não sabia, mas pairava um clima de tensão na favela. Um grupo de moradores protestava contra abordagens violentas da polícia. Uma vizinha, ciente da confusão que se armava, recomendou a Johnatha: era melhor sair dali ou escolher outro caminho, porque havia um grupo de policiais mais à frente atirando para o alto. Johnatha obedeceu. Virou-se para o lado e, de repente, foi atingido por um tiro nas costas.

Era fim de tarde. Baleado, Johnatha caminhou aproximadamente 100 metros na direção oposta à origem do tiro, gritando por socorro, e desabou na calçada da Igreja São Daniel – uma construção antiga, projetada por Oscar Niemeyer. Moradores do entorno ofereceram primeiros socorros e carregaram o corpo do rapaz até a avenida mais próxima, onde pediram ajuda ao motorista de uma van escolar. Ele conduziu Johnatha até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Manguinhos, a cerca de 2 km dali.

Um primo de Johnatha, informado sobre o que tinha acontecido, correu para avisar sua tia Patrícia, irmã de Oliveira. “O Johnatha tomou um tiro, o Johnatha tomou um tiro.” A família toda foi para a UPA. A tia, a primeira a chegar, se espantou com a quantidade de viaturas do lado de fora do posto de saúde. A mãe de Johnatha apareceu em seguida. Pensava, até então, que o filho tinha se envolvido num acidente.

A sede da UPP foi depredada naquela noite, em protesto. A assessoria de imprensa da PM soltou uma nota sobre o caso, reproduzida prontamente por jornais e emissoras de tevê: “Policiais reagiram à injusta agressão de traficantes.” Oliveira lembra de ter ouvido na televisão, no dia seguinte: “Mais um jovem morto em Manguinhos. A polícia alega que ele morreu em uma troca de tiros.”

 

Na manhã de 5 de março de 2024, terça-feira, uma van da Defensoria Pública estaciona próximo à Avenida Dom Hélder Câmara, em Manguinhos. Os parentes de Johnatha aos poucos lotam o carro, que segue então para o Tribunal de Justiça do Estado do Rio, no Centro da cidade. Um grupo de pessoas os aguarda. Sob a sombra das árvores, na calçada do tribunal, faixas e cartazes homenageiam Johnatha e outros jovens mortos em operações nas favelas. Familiares das vítimas vestem camisetas brancas estampadas com o rosto delas. Ana Paula Oliveira dá abraços demorados e escuta palavras de conforto.

Dez anos atrás, Oliveira nunca tinha falado com um defensor público nem pisado num tribunal, coisas que desde então passaram a fazer parte de sua rotina. O ponto de partida foi uma ligação que recebeu horas depois da morte de Johnatha. “Oi, Ana Paula, aqui é a Marielle Franco. Tô te ligando porque soube o que aconteceu com o seu filho. Você não me conhece, trabalho na Comissão de Direitos Humanos da Alerj. Mas, primeiramente, como mãe: tenho uma filha e nem consigo imaginar sua dor neste momento.”

Oliveira e Marielle mantiveram contato até março de 2018, quando a vereadora foi assassinada. Conversavam esporadicamente, e sobretudo nos feriados de Dia das Mães. Marielle ajudou a tirar o policial Alessandro Marcelino de Souza da UPP de Manguinhos. Ele foi, desde o começo, o principal suspeito de ter matado Johnatha. Para a mãe do rapaz, era revoltante vê-lo trabalhando perto de casa.

Depois da morte do filho, Oliveira criou em Manguinhos uma organização que reúne e acolhe familiares de vítimas da violência policial. Tornou-se uma referência no Rio. “As pessoas falam isso pra mim, mas me considero apenas uma mãe que luta incansavelmente. E essa luta ultrapassou a história do meu filho, porque hoje consigo pensar em políticas públicas”, diz Oliveira. “Já que a polícia não para de matar, quem nos ampara? Assim surgiu o movimento Mães de Manguinhos. Gosto muito da palavra movimento.”

Nos encontros do grupo, há mães que gritam e outras que falam pouco, mas que estão sempre presentes. Como a Justiça é lenta e nem sempre justa, elas dizem lutar também por memória e reparação. Pela imagem e pela história de seus filhos. Reparação, mesmo, quase não há. O Estado não oferece apoio psicológico e raramente indeniza as famílias, que têm que se virar por conta própria. Falar sobre esse sofrimento é o que dá sentido à vida de muitas delas. Poucos pais aparecem. É um movimento de mães.

Oliveira é procurada com frequência por outras mulheres que precisam de orientação ou colo. “Foi o desabrochar de uma mulher tímida”, conta a irmã, Patrícia Oliveira. “Teve gente que achou que ela ia morrer. Ela precisava de acompanhamento psicológico desde o início, mas nunca teve. A irmã do Johnatha tem dificuldades para falar sobre o assunto até hoje. Isso mudou a nossa família para sempre. E a Ana Paula se transformou nesse processo. Ela é a única pessoa que pode defender o filho até o fim.”

Demorou dez anos para que Marcelino, o PM, fosse a julgamento. O assunto mobilizou redes de apoio de mães e familiares de vítimas da violência, que compareceram em peso ao tribunal, no Rio – entre eles, Edna Souza Cavalcante, mãe de Álef, jovem assassinado em uma chacina policial na periferia de Fortaleza (CE), em 2015. Cem quentinhas foram doadas pela Ação da Cidadania, ONG fundada pelo sociólogo Betinho, para garantir o almoço dos amigos e parentes de Oliveira durante as sessões. A Anistia Internacional providenciou o lanche da tarde. A organização Justiça Global produziu cinquenta camisetas estampadas com uma foto de Johnatha. Outras cem foram confeccionadas pelo Instituto Marielle Franco.

A reunião do lado de fora do tribunal se transforma num protesto. Minutos antes do início do julgamento, Oliveira pega o microfone e discursa. “A condenação do policial é o mínimo. Que a verdade seja esclarecida e que eu possa absolver o meu filho dessa criminalização. Meu filho não tinha arma, não havia confronto nem troca de tiros. Essa é a verdade. Foram dois assassinatos naquele dia, do corpo e da dignidade do Johnatha. Hoje não é só o assassino que está no banco dos réus. [É] meu filho também.”

Fátima Silva, moradora da Rocinha, escuta a amiga falar, mas não se aproxima do microfone. Diz que não pretende assistir ao julgamento. Veio só para dar apoio. “Peguei trauma desse lugar depois do caso do meu filho. Eu e minha filha ficamos perdidas nesses corredores. Nunca tive a assistência adequada. A Ana Paula fala por nós. Eu fico aqui do lado concordando, mas não consigo dizer nada. Ela fala sem medo.”

Terminado o ato, todos se dirigem ao nono andar do tribunal. Uma fila se forma do lado de fora da sala, que está lotada. Cerca de setenta pessoas ocupam as cadeiras da plateia, isolada do plenário por uma vidraça. No decorrer da tarde, a fila anda lentamente. As pessoas logo ocupam a vaga de quem sai.

A plateia durante uma das sessões do julgamento do policial Alessandro Marcelino de Souza, em março (Foto: Amanda Prado)

 

Uma pesquisa publicada no ano passado pela ONG Fórum Justiça mostrou que, dos inquéritos sobre mortes causadas por policiais abertos entre 2011 e 2021 pelo Ministério Público do Rio, 91% foram arquivados. Em números absolutos: de 1.491 casos, só 130 resultaram em denúncia formal à Justiça. Entre eles está o de Johnatha. Pela morte do rapaz, o Ministério Público denunciou ainda em 2014 o policial Alessandro Marcelino de Souza por homicídio doloso – isto é, quando há intenção de matar. 

Na madrugada de 15 de maio, cerca de oito horas depois do assassinato em Manguinhos, o PM Marcelino depôs na 21ª Delegacia de Polícia, no bairro de Bonsucesso. “Não, eu não atirei”, garantiu ao delegado. Disse ainda que não viu nenhum colega atirando durante a manifestação dos moradores. Mais: alegou que sequer estava no local onde Johnatha foi baleado. Não sabia de onde poderia ter saído aquele tiro. 

O exame de confronto de balística, no entanto, contrariou o policial. Segundo o resultado da perícia, divulgado um mês depois da morte, o projétil encontrado no corpo de Johnatha tinha, sim, saído da arma de Marcelino. Confrontado com essa contradição, o PM saiu pela tangente: disse que, no primeiro depoimento, só negou ter disparado a arma porque lhe perguntaram se tinha atirado com o fuzil. E ele, no caso, estava portando uma pistola Taurus .40. De todo modo, Marcelino admitiu que tinha mesmo atirado naquele dia. Justificou a mentira inicial alegando que, na época, estava desorientado e sem apoio de um advogado. Nessa nova versão, que levou para o tribunal, o PM afirmou que atirou no rapaz para defender uma colega de farda que, segundo ele, estava sob ataque de jovens armados – entre eles, Johnatha.

O julgamento começou à tarde e se estendeu até o dia seguinte. A sessão foi marcada por outras contradições da defesa. A PM Larissa Elaine Silva da Rocha, que depôs em favor de Marcelino, disse que Johnatha estava armado e atirando contra os policiais. Além disso, afirmou que já o conhecia pelo apelido de “Doquinha”. Em seus primeiros depoimentos sobre o caso, no entanto, Rocha havia relatado que deixou o local antes do crime acontecer, sem saber que Johnatha havia sido baleado. Disse, na ocasião, que ouviu tiros, mas não tinha certeza de onde tinham saído. E admitiu ter, ela própria, feito um disparo de arma de fogo naquele dia, em outro momento da confusão, mirando um traficante chamado Rael.

A Defensoria Pública apresentou uma reconstituição em 3D do dia do crime. No momento da exibição, a avó de Johnatha, mãe de Ana Paula, teve um mal-estar e foi retirada da sala para receber atendimento médico. O vídeo remonta o passo a passo do assassinato, baseando-se no relato do policial acusado e das testemunhas, nas provas técnicas e demais perícias, além de imagens de satélite da época e fotos in loco, tiradas a nível do chão. O material foi anexado ao processo de 1.379 páginas analisado no tribunal.

Uma testemunha ocular relatou que, ao ouvir tiros naquela tarde de maio, saiu de casa acompanhada do filho para buscar as crianças que brincavam numa quadra ali perto, alheias ao que acontecia. Quando ela passou por Johnatha, no caminho, sugeriu que o jovem desse meia-volta, já que mais à frente, para onde ele estava indo, havia policiais atirando e intimidando moradores. Em seguida, ao perceber que um dos PMs se agachou e apontou a arma na direção deles, ela puxou o filho e o protegeu próximo a uma parede. Poucos segundos depois, um tiro atingiu Johnatha nas costas. A testemunha negou que o rapaz estivesse armado ou envolvido num confronto naquele momento. Segundo ela, só os policiais dispararam.

“Na hora que eu puxei meu filho, o Johnatha foi baleado, em frente à minha casa. Pegou uma bala no chão e outra nas costas dele – abaixo da cintura. Se não fosse o Johnatha, seria meu filho”, relatou a testemunha. Durante os dois dias de julgamento, a defesa insistiu na tese de que Johnatha era um criminoso e que pôs em risco a vida dos policiais. Quando isso era dito, Oliveira saía da sala.

 

Na tarde de quarta-feira, 6 de março, encerradas as réplicas e tréplicas, a juíza Tula Correa de Mello pediu que o tribunal fosse esvaziado para a votação. A decisão coube ao Tribunal do Júri, como em todo processo por homicídio doloso. Depois de duas horas e vinte minutos, todos retornaram para ouvir a leitura da sentença acordada pelos sete jurados. Mãos no queixo, mãos entrelaçadas, olhares atentos.

Nos primeiros segundos, a voz pausada e gaguejante de Mello já parecia antecipar uma notícia desagradável. Marinete Silva, mãe de Marielle Franco, acariciava e abraçava Oliveira, que mantinha os olhos fechados e as mãos sobre o rosto. “Na presente data, um passo já se avançou, que foi a retirada da pecha de traficante; da mácula que pairava sobre a vítima Johnatha, apesar do resultado que eu passarei a ler aqui para vossas excelências.” Nesse momento, os ombros tensos da plateia se desarmam e ouve-se um sonoro ruído de surpresa e lamento. “Nesse ponto eu posso compartilhar do sentimento na frase de Ruy Barbosa: Justiça atrasada não é Justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”, prosseguiu a juíza.

Os jurados reconheceram a responsabilidade de Marcelino como autor do disparo que tirou a vida de Johnatha. Reconheceram também que o jovem não tinha envolvimento com atividades criminosas e que não estava armado ou em confronto com os policiais. Acataram, porém, a tese de que o PM não teve intenção de matá-lo. O crime de homicídio doloso, com isso, transformou-se em culposo.

A juíza continuou: “Acredito que já perceberam que o acusado não sai daqui hoje com a pena definida. Eu peço licença, não sei se cabe, mas eu tinha separado um poema para as mães aqui presentes. Fiquei na dúvida se deveria ler, mas…” Ninguém mais ouviu o que ela tinha a dizer. O som de Oliveira chorando já tomava a sala. Algumas pessoas gritaram, da plateia: “Poema não! Chega de poema!”; “Assassino!”

O público deu as costas para o júri. Oliveira gritou: “Essa é a resposta que a sociedade dá pra mim! Estou aqui com a dor de ter meu filho assassinado. Meu filho foi assassinado com um tiro nas costas. Essa luta não pode ser só minha. Por que fizeram isso com o meu filho?” Amigos e familiares também choravam.

O Ministério Público e a Defensoria recorreram da decisão, pedindo a nulidade do júri, sob o argumento de que a sentença contraria as provas dos autos. Para eles, há indícios suficientes de que Marcelino agiu com intenção de matar. Alegam ainda que a defesa pediu a desclassificação do crime – isto é, a mudança de homicídio doloso para culposo durante a tréplica, quando faltava apenas um minuto para o fim dos debates, o que impediu que houvesse discussão dos termos perante o júri. Outro motivo para a nulidade, dizem os defensores e promotores, é o fato de o advogado de defesa ter comentado, durante o julgamento, que a imprensa estava difamando o réu. Essa atitude, eles argumentam, fere o princípio da “incomunicabilidade com o mundo externo” – regra que proíbe os jurados de se informarem sobre o que está acontecendo fora do tribunal, para que não sejam influenciados na hora de analisar o caso.

“O júri é uma loteria. São pessoas comuns que vão tomar uma decisão a partir daquela história que elas estão ouvindo pela primeira vez. Foi uma estratégia da defesa mencionar o [homicídio] culposo só no final da tréplica. O problema, com isso, é que não deu tempo de debater o conceito e explicar o dolo eventual”, lamentou Alexandra Montgomery, diretora de programas da Anistia Internacional Brasil, advogada e mestre em direito internacional dos direitos humanos. Ela acompanhou o julgamento.

Se a sentença for mantida, o processo sairá da Justiça comum para a Justiça Militar, uma vez que o Tribunal do Júri só pode julgar PMs envolvidos em crimes dolosos. Qualquer outro tipo de infração cometida por eles no exercício da função ou em razão dela é encaminhada para a jurisdição militar. 

À piauí, a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informou que Marcelino “está submetido a um procedimento apuratório interno instaurado pela Corregedoria, que avaliará sua permanência nos quadros da Corporação”. Atualmente, o PM está afastado do trabalho nas ruas. Procurada pela piauí, a defesa de Marcelino afirmou que não vai se manifestar enquanto o processo estiver em curso.

No dia seguinte ao julgamento, Oliveira e um grupo de ativistas protestaram em frente ao tribunal. Ela leu uma carta que escreveu sobre o filho morto. “Uma despedida minha com o Johnatha seria se eu não pudesse mais lutar. Eu tenho certeza que ele consegue sentir o meu amor por ele, assim como eu consigo sentir o dele por mim. É isso que me faz continuar”, diz uma passagem do texto. Se estivesse vivo, Jhonatha completaria 30 anos em dezembro. Costumava dizer à mãe que queria ter uma fazenda e morar no campo, em um lugar mais tranquilo que o Rio. Namorava havia um ano e estava apaixonado. Oliveira se faz perguntas que nunca saberá responder: como estaria meu filho hoje? Teria barba? Seria pai?

A última UPP foi inaugurada no bairro de Vila Kennedy, Zona Oeste do Rio, no mês em que Johnatha foi assassinado maio de 2014. Já era a 38ª no estado. Hoje, de acordo com a PM, 28 unidades continuam em funcionamento, incluindo a de Manguinhos. As mortes violentas no estado do Rio caíram de um patamar de 7 mil por ano para 5 mil entre 2008 e 2012. Depois disso, voltaram a crescer. Em 2016, pouco depois da Olimpíada, Beltrame – secretário que mais tempo ficou à frente da segurança pública do Rio – renunciou ao cargo. No ano seguinte, o estado do Rio contabilizou 6,7 mil mortes violentas (homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte), das quais 1,1 mil foram causadas pela polícia – maior nível de letalidade policial desde 2008. O número total de mortes violentas está em queda no Rio desde 2019, tendência que se reflete no restante do país. A violência policial, no entanto, continua no patamar dos anos pré-UPP. No ano passado, 869 pessoas foram mortas pela polícia no Rio.

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