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    Obra de Potty Lazzarotto nas cortinas corta-fogo do Guairão, pensadas como cenário para apresentações musicais compactas. A ideia foi vetada pelos bombeiros (Gilson Abreu/ Divulgação)

vultos do teatro

Os murais ocultos do Guaíra

A história das duas obras de Poty Lazzarotto pintadas em cortinas corta-fogo que ficam invisíveis ao público

Felippe Aníbal, de Curitiba | 26 jul 2024_09h10
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Sentado a uma das poltronas da plateia, o ilustrador e muralista Poty Lazzarotto acompanhava, naquele início de 1997, a finalização de um projeto ousado que havia concebido: a pintura de um mural na cortina corta-fogo do palco do Auditório Salvador de Ferrante, o Guairinha, uma das três casas do complexo Centro Cultural Teatro Guaíra. De quando em quando, o artista mudava de lugar, ora mais ao fundo ora mais à frente, para ver a obra sob diferentes perspectivas. Àquela altura, aos 73 anos, Poty era um nome consagrado e havia ilustrado livros de autores como Dalton Trevisan, Guimarães Rosa, Jorge Amado e Machado de Assis, além de ter feito uma série de murais em diferentes países.

A ilustração criada por Poty era transposta para a cortina do Guairinha e pintada por duas muralistas. Ali do auditório, um dos integrantes do corpo técnico do teatro, Cleverson Cavalheiro, parou para assistir às pinceladas finais da obra, que retrata treze cenas que remetem a peças montadas no complexo do Guaíra, como Paisagem de Meninos, O Vampiro e a Polaquinha e Mistérios de Curitiba. Aficionado à pintura, Cavalheiro se impressionou com o mural. Arriscou comentar suas impressões brevemente com Poty. Disse-lhe que o trabalho “ficou lindo”. Reconhecido por ser um homem de poucas palavras, o artista convidou o técnico para tirar uma foto em frente à obra.

“Eu tinha uma fixação por ele [Poty], porque o achava genial. Poucos meses depois [em maio de 1998], ele faleceu”, conta Cavalheiro, que hoje é diretor-presidente do Teatro Guaíra – e que mantém a foto em um porta-retrato, em sua mesa de trabalho. Apesar das dimensões da obra e de ser assinada por um dos mais renomados artistas plásticos brasileiros, o mural permanece inédito ao grande público. A cortina corta-fogo corresponde a uma espessa placa de aço de 10 x 6 metros, que fica suspensa sobre a boca de cena, oculta ao público. Em caso de incêndios, ela deve ser descerrada, com a função de isolar o palco da plateia, impedindo que as chamas se alastrem de uma parte a outra (de forma similar às portas corta-fogo de edifícios). O conjunto só “desce” raramente para manutenção do sistema de engrenagens e das canaletas laterais que garantem a vedação.

“É uma obra escondida. Está suspensa no urdimento. São duas obras do Poty [no complexo do Guaíra] que a gente não vê”, resume Áldice Lopes, diretor artístico do Guaíra. A outra obra a que ele se refere também é um mural de Poty, pintado nove anos antes na cortina corta-fogo do palco do grande auditório Bento Munhoz da Rocha, casa principal do complexo e conhecida como Guaíra ou Guairão. Além disso, o prédio ostenta na fachada outra criação do artista, essa, sim, visível ao público: um mural em concreto e em alto relevo, batizado de O Teatro no Mundo, com referências que vão dos gregos e de William Shakespeare ao teatro de variedades.

Os dois trabalhos, o do Guairão, de 1988, e o do Guairinha, de 1997, foram pensados como elemento cenográfico para apresentações mais enxutas de orquestras. Nesses momentos, as cortinas corta-fogo sairiam do escuro e se tornariam visíveis para a plateia. No primeiro caso, isso chegou a ser feito algumas vezes, mas no fim dos anos 1990 a ideia foi vetada pelos Bombeiros, para que as cortinas, que são dispositivos de segurança, não acabassem danificadas pelo uso desnecessário. A arte de Poty ficou então relegada aos bastidores das duas casas.

A pintura do Guairinha, nunca mostrada em uma apresentação, levou cerca de três meses. O artista concebeu o projeto na prancheta e em papel, em seu estúdio. Porém já não tinha agilidade nem vigor físico para subir e descer em andaimes. A execução técnica da obra coube às artistas plásticas Maria Laila Tarran e Carmen Carini, hoje com 78 e 76 anos. Elas revelam que, utilizando um retroprojetor, projetaram as ilustrações originais em uma das paredes previamente cobertas com papel, na casa de Carini. As artistas, então, passaram os desenhos de Poty, a lápis, para o papel. Posteriormente, elas recortaram os moldes e os aplicaram à cortina corta-fogo do Guairinha.

“A maior dificuldade foi pegar a espessura exata das linhas do traço do Poty. Ele tinha um traço vigoroso e, até certo ponto, tenso. Deu trabalho para fazer”, diz Tarran.

O mural não foi pintado diretamente sobre a placa de aço, mas sobre uma manta de amianto que recobre a cortina – e que tem uma textura que representou uma dificuldade extra às artistas. Tarran e Carini executaram todo o processo técnico, da mistura das tintas (para se chegar aos tons exatos previstos por Poty) às pinceladas cuidadosas, do alto de andaimes. O próprio Poty supervisionou os trabalhos, nas diferentes etapas, sempre a seu modo: muito calado, quase sempre usando boina ou chapéu.

“Poty era um homem de poucas palavras. Monossilábico. Ele foi endossando a nossa execução e a gente também respeitava esse silêncio dele”, conta Carini. “No final, ele nos convidou para almoçar, mas também com poucas palavras”, relembra a artista plástica, acrescentando: “Mas ele gostava muito de contar a história do elefante, que se sentou em cima de um Fusca.”

Retratado à esquerda do mural do Guairinha, o episódio em questão ocorreu em 1993, quando o Guaíra promoveu uma de suas montagens mais ousadas: Aída, ópera de Giuseppe Verdi. O espetáculo envolvia cerca de 400 pessoas, entre as quais cerca de 100 atores e um coro de 80 vozes, acompanhados pela Orquestra Sinfônica do Paraná. Com a exceção do figurino – que havia sido idealizado para uma montagem no Metropolitan, em Nova York, e emprestado ao Guaíra –, todos os elementos cênicos haviam sido construídos pela própria equipe do complexo.

“A marcenaria, a construção de cenografia desde as esculturas de isopor… Tudo”, enumera Cleverson Cavalheiro. “Você tinha um cenotécnico com uma makita aqui, ao mesmo tempo que o iluminador estava fazendo testes e o contrarregra, pintando”, relembra. “E os atores ensaiando no palco. Era uma indústria”, acrescenta Áldice Lopes.

Uma das cenas mais marcantes da peça, a marcha triunfal retrata o retorno de Radamés e seu exército ao Egito, após a vitória militar contra os etíopes. Além dos guerreiros, desfilam carros de guerra, homens e mulheres escravizados após combate e animais. Para compor a passagem, a produção do Guaíra emprestou um cavalo da Polícia Militar e foi além: trouxe um dromedário e uma elefanta, do parque Beto Carreiro World, de Santa Catarina. Ao longo das dez récitas da temporada, a elefanta Mila se tornou uma celebridade. Entrava em cena com figurino: unhas pintadas de branco, o dorso recoberto por uma capa preta com bordas prateadas e um elmo dourado. O animal era adestrado para parecer que saudava os aplausos, numa reverência solene.

“Ela entrava em cena e a plateia uivava. Ui-va-va”, diz Lopes, separando as sílabas para dar ênfase ao frisson provocado por Mila. “Era até difícil para a solista retomar o canto…”, acrescenta. “Ela era uma artista também”, assevera Cavalheiro.

Seguindo os planos da produção, Mila ficou “hospedada” no clube Círculo Militar, que tinha um espaço para hipismo, a duas quadras do Guaíra. Antes da apresentação de estreia, uma equipe do teatro, acompanhada do tratador, conduziu a elefanta pelas ruas do centro. Ela e os outros animais entravam pela porta dos fundos. Toda a operação exigia uma logística intrincada, da alimentação à condução dos bichos – passando pelas necessidades mais prosaicas. “O cavalo, o camelo [dromedário] e a elefanta entravam aqui e cagavam. Mas cagavam que você não tem noção! Tinha uma logística para limpar esse cocô, que era uma coisa gigantesca”, conta Lopes.

Logo na primeira noite, no entanto, Mila escapou da baia onde era mantida, no Círculo Militar. A elefanta, então, passeou pelas dependências do clube e virou uma caçamba de pedras sobre um Fiat 147, que estava estacionado nas dependências do local. Por fim, sentou-se placidamente sobre o automóvel. Logo, o telefone do Guaíra tocou, informando sobre o incidente. Produtores e técnicos chegaram a se deslocar ao clube, para ver com os próprios olhos o estrago provocado por Mila. Rapidamente, o episódio se tornou tão célebre, a ponto de Poty incluir a cena no mural do Guairinha: o traço inconfundível do ilustrador reproduziu Mila sentada sobre o carro. Só não se sabe por que optou por desenhar um Fusca.

“Eu falei pra ele [Poty]… Era um Fiat 147 azul. Eu lembro, porque nós fomos lá ver”, conta Cavalheiro. No início de julho deste ano, o diretor presidente do Guaíra recebeu a visita de um antigo diretor do Círculo Militar, que se lembrou do episódio. “Ele contou que lá no Círculo foi um rolo, foi um fervo quando aconteceu. E existia isso de: ‘Ó, [a elefanta] vai escapar. Esse troço aí, não sei não…’”, compartilhou Cavalheiro.

Depois do incidente, Mila foi transferida. A elefanta passou a ficar em uma tenda instalada em frente ao Guaíra, em pleno Centro de Curitiba. Tornou-se uma atração. Transeuntes paravam para ver de perto a simpática elefanta, o que contribuiu para que Aída lotasse o teatro em todas as récitas. O corpo técnico também chegou a estabelecer uma relação próxima com Mila, principalmente as costureiras, que provinham do circo – em uma época em que as companhias circenses tinham animais. Ainda hoje, a montagem é lembrada como uma das mais colossais da história do Guaíra. “Foi a maior, ao lado de Tosca [ópera de Giacomo Puccini]”, atesta Lopes.

A história do Teatro Guaíra começou 140 anos atrás. A casa foi inaugurada em 28 de setembro de 1884, mas com outro nome e em outro lugar: chamava-se Theatro São Theodoro e funcionava em um prédio construído no terreno onde hoje se encontra a Biblioteca Pública do Paraná. Por uma década, o espaço foi o epicentro da agitação cultural em Curitiba, mas em 1894, com a chegada da Revolução Federalista ao Paraná, as apresentações artísticas foram suspensas e o prédio foi transformado em prisão.

A casa foi reinaugurada em 1900, com o nome de Theatro Guayrá, funcionando no mesmo prédio até 1939, quando o imóvel foi demolido. Paralelamente, a Academia Paranaense de Letras deflagrou uma campanha pela construção de um novo teatro. Foi então que se definiu o novo endereço: um terreno amplo, ao lado da Praça Santos Andrade – na face oposta àquela onde está o prédio histórico da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Com projeto do engenheiro Rubens Meister – um dos precursores da arquitetura moderna no Paraná –, o complexo do Teatro Guaíra (já com a nova grafia) começou a ser construído no início da década de 1950, contemplando três casas. O primeiro anexo a ser disponibilizado foi o auditório Salvador de Ferrante, o Guairinha, inaugurado em 1955 e que tem 472 lugares. Principal e mais nobre espaço do complexo, o grande auditório Bento Munhoz da Rocha Netto, o Guairão, foi posto em funcionamento em 1974, com 2,1 mil lugares. No ano seguinte, em 1975, inaugurou-se o auditório Glauco Flores de Sá Brito, o Miniauditório, que tem capacidade para 68 espectadores.

Consolidado como um dos maiores complexos culturais da América Latina, o Teatro Guaíra é mais do que um conjunto de casas de espetáculos. O centro conta com quatro corpos artísticos: a Escola de Dança Teatro Guaíra, o Balé Teatro Guaíra, a Orquestra Sinfônica do Paraná e o G2 Cia. de Dança. Todas as produções próprias dos corpos artísticos do complexo têm ingressos a 20 reais (e 10 reais a meia-entrada). Em 2023, o Guaíra recebeu 387 mil espectadores – 102 mil em produções próprias. Neste ano, o complexo deve receber o aporte de 55 milhões de reais, para serem aplicados em demandas que vão de obras estruturais de manutenção à aquisição de instrumentos para a Orquestra Sinfônica.

Além de receber peças e apresentações musicais de todo o país e shows internacionais, os palcos do Guaíra também viram nascer estrelas locais, como o ator Luís Melo e a atriz Guta Stresser. O complexo também testemunhou o nascimento de O Grande Circo Místico, que foi criado para o Balé do Teatro Guaíra, com texto de Naum Alves de Souza e músicas de Chico Buarque e Edu Lobo. E a conclusão da peça foi um sufoco. Cleverson Cavalheiro e Áldice Lopes já faziam teatro no Guaíra e se lembram de que a entrega das músicas atrasou. Chico e Edu concluíram as composições no palco do teatro, durante os ensaios. “O coreógrafo coreografava sem música, porque a música não vinha”, conta Lopes.

 O mural na cortina corta-fogo do Guairão foi pintado em 1988, obedecendo à mesma metodologia que anos depois seria aplicada na execução da obra do Guairinha. Carmen Carini e Maria Laila Tarran, formadas em Belas Artes e já com experiência como muralistas, foram convidadas a serem as executoras técnicas da empreitada. Ao longo de dois meses, realizaram o mural concebido por Poty, que representava cenas que remetiam à história mundial do teatro. Então fotógrafo oficial do Guaíra, Marcos Pereira clicou a execução, em diferentes fases da obra, e testemunhou a relação silenciosa, mas afinada, entre Poty e as duas muralistas.

“De vez em quando, ele subia nos andaimes, dava algumas pinceladas. Mas era muito elas [que faziam o trabalho de transposição da ilustração], mesmo. Elas eram as mãos dele. Era uma extrema confiança. Cada pincelada que elas davam estava no coração dele”, define Pereira. O fotógrafo convenceu Poty a posar para uma série de fotos, em que o ilustrador aparece assinando o mural. É um dos raros materiais do artista com mãos à obra.

Nesse mural, Poty improvisou. Quando o painel estava praticamente concluído, o artista acrescentou um desenho que não estava previsto no projeto: um homem de casaca e cartola, que segura uma lanterna com a mão esquerda, enquanto abre a cortina com a direita, como se fosse um apresentador. “Ele [Poty] fez [o desenho] em um minuto, começando por baixo. Eu fiquei espantadíssima! Foi num gesto só, praticamente”, conta Tarran. Antes do veto dos Bombeiros, a obra do Guairão chegou a ser utilizada algumas poucas vezes como cenário para apresentações da Orquestra Sinfônica do Paraná. 

Apesar de permaneceram à sombra, as duas executoras técnicas dos murais não se queixam de não terem tido reconhecimento por terem dado vida aos traços de Poty. Sentem-se honradas por terem “trabalhado com um gênio”. “A gente nunca teve intenção [de serem reconhecidas]. Era um trabalho técnico”, diz Tarran. “E foi muito prazeroso. Teve o desafio de conseguir executar. E foi uma satisfação”, complementa. Desde que pintaram os dois murais, no entanto, Tarran e Carini nunca mais reviram as obras.

“Nós não temos nem fotos atualizadas. Não conseguimos até hoje… Nós gostaríamos de rever, porque nem temos muitos registros”, aponta Carini. “Seria importante até para ver as condições em que elas estão”, observa Tarran. Posteriormente, elas concluíram um projeto póstumo, deixado inacabado por Poty. A obra resultou em um painel, feito em concreto no prédio do Instituto Tecnológico Simepar, em Curitiba.

Em breve, não só Tarran e Carini, mas o público em geral terá condições de apreciar os murais – embora de forma digital, já que permanece o veto ao acionamento das cortinas sem necessidade. Nos dias 15 e 17 de julho, a direção do complexo baixou a cortina corta-fogo do Guairão e a do Guarinha. As obras foram filmadas e fotografadas, com o objetivo de fazer parte de um material multimídia, a ser apresentado durante visitas guiadas ao teatro. “Vamos contar a história desses três murais do Poty”, revela Áldice Lopes. “O público merece ter acesso a essas obras ocultas”, conclui. 

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