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    Ilustração criada pelos pesquisadores com o animal carneado por humanos

questões americanas

Tatu gigante estava no cardápio sul-americano da Era do Gelo

Cientistas argentinos encontram fósseis de um gliptodonte carneado por humanos há 21 mil anos na Grande Buenos Aires

Bernardo Esteves | 26 ago 2024_08h21
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Vêm dos pampas os mais novos indícios de que a América do Sul já estava povoada por humanos bem antes do que acreditavam os arqueólogos. O achado foi feito nas margens do Rio Reconquista, no município de Merlo, na Grande Buenos Aires. Trata-se de ossos de gliptodonte, um gigante encouraçado que foi um primo extinto do tatu. Os fósseis tinham marcas que só podiam ter sido provocadas por ferramentas de pedra de fabricação humana, conforme concluíram as análises conduzidas pelo grupo do paleoantropólogo Miguel Delgado, da Universidade Nacional de La Plata. Os resultados foram publicados em julho na revista especializada Plos One.

Como os ossos com as marcas estavam no quadril e na cauda do bicho, onde a carne era mais abundante, Delgado e seus colegas concluíram que elas foram deixadas por humanos que pretendiam comê-lo. A datação dos fósseis indica que o gliptodonte viveu cerca de 21 mil anos atrás. Se os cientistas argentinos estiverem certos, havia grupos humanos habitando os pampas no auge da última Era do Gelo, quando as altas latitudes do planeta estavam cobertas por geleiras e o nível dos mares estava mais de cem metros abaixo do atual. O planeta era povoado por mamíferos gigantes como aquele gliptodonte, que compunham a megafauna que foi extinta no final da Era do Gelo.

A grande maioria dos estudiosos acredita que os primeiros humanos a pisar no continente americano chegaram pela Sibéria, atravessando uma faixa de terra que ligava a Ásia à América do Norte. O Rio Reconquista fica nos pampas, no Sul da América do Sul, a mais de 14 mil km de distância do provável ponto de entrada dos primeiros americanos. Para estarem ali há 21 mil anos, como indica o estudo, eles teriam que ter chegado ao continente pelo menos um milênio antes disso, a julgar pelos modelos que os cientistas usam para estimar a dispersão dos grupos de caçadores e coletores.

“Essa é uma das evidências mais antigas [da presença humana] no Sul da América do Sul”, disse Miguel Delgado à piauí. Mas a data contraria o modelo de ocupação defendido pela maior parte dos estudiosos, segundo o qual o continente foi povoado entre 16 mil e 20 mil anos atrás. Essa hipótese é corroborada pelos estudos genéticos que investigaram o DNA extraído de fósseis encontrados em diferentes sítios arqueológicos. Se havia humanos comendo carne de tatu gigante nos pampas há 21 mil anos, essas pessoas não deixaram descendentes conhecidos pelos cientistas.

 

Os ossos de gliptodonte foram descobertos por acaso, conforme contou Delgado. Em 2016, operários que estavam trabalhando de escavadeira na ampliação de um canal revolveram o subsolo às margens do Rio Reconquista e trouxeram à superfície os ossos que estavam a 4 metros de profundidade. O paleontólogo Guillermo Jofré, que percorria a região havia quatro décadas em busca de fósseis, recolheu o material e o levou a pesquisadores da Universidade Nacional de La Plata.

Entre os achados, estavam ossos do quadril e da cauda do animal, que ainda estava articulada. Era um animal do gênero Neosclerocalyptus. Como o crânio do bicho não foi encontrado, não foi possível determinar a qual espécie exata ele pertencia. Alguns gliptodontes podiam ter o tamanho de um carro, mas aquele indivíduo não era dos maiores. Ainda assim tinha um porte considerável, com cerca de 1,80 metro de comprimento, 90 cm de altura e peso de 360 kg.

As marcas não estavam visíveis a olho nu, mas ficaram nítidas depois que os fósseis foram preparados e escaneados – eram 32 no total. Uma série de análises foi feita para provar que elas tinham sido de fato provocadas por ferramentas e não por outras causas. Vistas ao microscópio, marcas deixadas pelos dentes de algum animal carnívoro têm o formato de U. Já as ferramentas de pedra, que são mais duras que os dentes, deixam uma marca em forma de V, como as que havia nos fósseis de gliptodonte. A posição e a distribuição das marcas não eram aleatórias, como seria o caso se tivessem sido provocadas por causas naturais. Pelo contrário, pareciam seguir uma sequência lógica e intencional para separar a carne dos ossos.

Não se tem notícia, porém, de quais ferramentas podem ter deixado essas marcas. O grupo fez uma escavação numa pequena área, de 4 metros quadrados, e não encontrou nada. Delgado contou que está em busca de recursos para viabilizar uma escavação em maior escala. “Esperamos encontrar ferramentas de pedra, restos de fogueira ou algum tipo de evidência da interação humana com essa fauna”, afirmou.

Não é possível determinar se os donos das ferramentas mataram o gliptodonte para comê-lo ou se encontraram o bicho morto e decidiram carneá-lo. Os caçadores-coletores da Era do Gelo dominavam o fogo, como mostram muitos sítios arqueológicos daquela época com restos de fogueiras produzidas intencionalmente. Os donos daquelas ferramentas possivelmente usaram o fogo para cozinhar ou assar a carne do gliptodonte, o que faria daquele o mais antigo churrasco de megafauna no continente americano de que se tem notícia. Mas não temos como saber de que forma a carne foi preparada e consumida.

 

Os ossos do Neosclerocalyptus com marcas de cortes

 

 

Os achados dos cientistas argentinos passaram pelo processo de revisão por pares, em que os artigos são avaliados e chancelados por outros especialistas. No entanto, publicações na literatura especializada não costumam bastar para resolver as controvérsias em torno da ocupação das Américas. Os achados da equipe da arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon na Serra da Capivara, no Piauí, por exemplo – ferramentas e restos de carvão com 37 mil anos de idade –, foram publicados na Nature, um dos mais prestigiosos periódicos do mundo, mas nem por isso seus colegas se convenceram da validade dos resultados.

Os achados do Rio Reconquista se juntam a evidências que se acumulam desde os anos 1970 apontando a presença humana nas Américas no auge da Era do Gelo, um período que vai de 19 mil a 26 mil anos atrás, ou mesmo antes disso. Além dos sítios da Serra da Capivara, a lista inclui a caverna Chiquihuite, no Centro-Norte do México, onde há indícios da presença humana há 32 mil anos; o Sítio Arqueológico Santa Elina, em Mato Grosso, com uma ocupação de 26 mil anos; ou o Parque Nacional de White Sands, no Novo México, nos Estados Unidos, onde foram encontradas pegadas humanas com até 23 mil anos de idade.

“Junto com outras evidências encontradas no Brasil, no México e nos Estados Unidos, [os fósseis do Rio Reconquista] estão começando a contar uma história diferente da que os estudos arqueológicos contavam sobre a primeira entrada dos humanos no continente americano”, disse Delgado.

Não é preciso ir muito longe para encontrar outro exemplo: do outro lado do Rio da Prata, a menos de 250 km em linha reta do Rio Reconquista, fica o Arroyo del Vizcaíno, ao Norte de Montevidéu, no Uruguai. Ali também foram encontrados fósseis da megafauna com marcas de ferramenta – no caso, eram a clavícula e uma costela de uma preguiça-gigante do gênero Lestodon que tinha quase 5 metros de comprimento e pesava em torno de 4 toneladas. O sítio vem sendo escavado desde 1997 pela equipe do paleontólogo uruguaio Richard Fariña, da Universidade da República, em Montevidéu. A datação do material mostrou que aquela preguiça gigante viveu cerca de 31 mil anos atrás, dez mil anos antes do gliptodonte.

Esses sítios têm apenas evidências indiretas da passagem do Homo sapiens por aquelas localidades. Nenhum deles traz a prova definitiva da presença humana muito antiga no continente, e por isso todos são objeto de críticas por alguns arqueólogos. Um dente ou qualquer fóssil humano que pudesse ser datado com segurança resolveria a questão em definitivo, mas esse fóssil não foi encontrado até agora. Como o que está em jogo é uma mudança de paradigma sobre a data da chegada dos humanos às Américas, os indícios indiretos não bastam para convencer os estudiosos. Até aqui, os sítios arqueológicos mais antigos no continente americano que não despertam grande controvérsia têm idades de até 16 mil anos.

Richard Fariña – que não se envolveu com o estudo do gliptodonte do Rio Reconquista – disse que Delgado e sua equipe trouxeram evidências sólidas e dignas de atenção. “Eles fizeram um trabalho bom com as técnicas e ferramentas que temos hoje para estudar as marcas”, disse o uruguaio. “Provavelmente foram seres humanos que aproveitaram a carne daquele animal.” Apesar da semelhança dos estudos feitos no Arroyo del Vizcaíno e no Rio Reconquista, que apresentam evidências da mesma natureza encontrados na mesma região, o trabalho argentino não compara as marcas encontradas nos ossos de gliptodonte com o material estudado pelo grupo de Fariña.

 

O arqueólogo André Strauss, da Universidade de São Paulo (USP), um estudioso da ocupação do continente que não teve envolvimento com o trabalho recém-publicado, elogiou o estudo argentino e disse não ter dúvida de que as evidências descritas são marcas de corte feitas por ferramentas de pedra. “Na minha opinião, são as mais convincentes evidências de marcas de corte já descritas para contextos antigos, anteriores a 16 mil anos atrás”, disse Strauss à piauí.

Mas o pesquisador da USP ressaltou que a datação do material poderia ser mais detalhada. O grupo de Delgado só conseguiu datar duas amostras, o que talvez seja pouco para convencer os especialistas a abandonarem seu modelo de ocupação do continente. Além disso, os cientistas não conseguiram extrair dos fósseis o colágeno, a substância que geralmente é usada nas datações por carbono-14. Em vez disso, eles dataram a fração mineral do osso, modalidade menos precisa do que a datação do colágeno.

O ideal, continuou Strauss, seria fazer a datação do colágeno. “Ao contrário do que os autores afirmam, o método de datação da fração mineral do osso ainda está numa fase inicial, e permanecem incertezas sobre a sua precisão e os potenciais vieses.” Isso não significa que a data esteja errada, mas inspira cautela na leitura das conclusões, disse o arqueólogo. “Independentemente da idade dos fósseis, eles mostraram uma evidência robusta de humanos consumindo a megafauna, algo mais raro do que muitos imaginam.”

Miguel Delgado disse que seu grupo pretende ampliar o número de amostras datadas. “A ideia é fazer muito mais datações, mas estamos convencidos de que todo o contexto cronológico é muito confiável.”

Ainda que Delgado e seu grupo consigam mais datas, pode ser pouco para convencer os colegas. “Dificilmente esse achado vai encerrar o debate sobre a antiguidade da presença humana na América, porque mais uma vez temos uma evidência indireta datada por um método que ainda não é totalmente consolidado”, disse André Strauss. Mas o gliptodonte do Rio Reconquista é mais um argumento em favor da presença humana na América do Sul no auge da Era do Gelo. “O estudo soma-se a um amplo corpo de possíveis evidências e nos motiva a seguir na busca da descoberta que finalmente irá resolver esse debate”, completou o arqueólogo da USP.

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