Lourenço (atrás da mesa) conversa com os visitantes Imagem: Matheus de Moura
Entre armas e bocas de fumo
Um favela-tour e um boteco dedicados a turistas israelenses na Pavão-Pavãozinho
Sob a égide das árvores que refrescam o cruzamento da Rua Sá Ferreira com a Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no bairro homônimo do Rio de Janeiro, um grupo de oito israelenses, trajando bermudas jeans e camisetas básicas e surradas, se reúne ao redor de Luiz Fernando de Souza Lourenço, um senhor retinto de 62 anos de idade. São nove da manhã de 13 de maio e ele ostenta um black power com poucos fios grisalhos e inúmeras correntes de ouro no pescoço. Compenetrados na explicação em hebraico de Lourenço sobre como a rotina em uma favela do Rio de Janeiro, os estrangeiros, todos aparentando ter entre 22 e 25 anos de idade, se juntam ainda mais quando ele retira do bolso o celular.
A tela mostra o vídeo chocante, de um homem branco gordo completamente nu, deitado no chão de concreto, com os braços amarrados para trás, as pernas forçosamente abertas e uma poça de sangue na altura do pênis, que parece ter sido amputado. Os jovens observam com atenção a cena macabra. Alguns riem.
Segundo Lourenço, trata-se da punição a um estuprador pelo Comando Vermelho (CV), facção carioca que domina a favela do Pavão-Pavãozinho, cuja entrada fica a 20 metros de distância de onde ele se encontrava com o grupo. “Estou explicando para eles como é a vida na favela, que [estupro] é proibido”, conta à piauí. Em hebraico, ele é mais específico: diz que a vítima de tortura no vídeo abusou de uma garota de 12 anos.
Após uma breve explanação das regras mais básicas – como “não tirar foto de boca de fumo nem fazer vídeo” –, Lourenço chama os jovens para acompanhá-lo por um favela-tour que inclui passagens por bocas de fumo do Comando Vermelho no Pavão-Pavãozinho, situada na divisa entre Copacabana e Ipanema, e que junto a outra, do Cantagalo, forma o complexo PPG, com extensão de quase 130 mil m² e população estimada de 10 mil pessoas, segundo o IBGE.
O grupo sobe poucos metros, passando pelas barracas de fruta e o ponto de mototáxi na esquina da Rua Saint Roman, a principal do pé do Pavão-Pavãozinho, e cruzam uma porta de metal aberta, que é um dos acessos ao interior da favela, onde não passam carro nem moto, devido à compressão asfixiante dos becos e das vielas que formam esse labirinto com vista para o mar.
Num largo de azulejos a céu aberto, um rapaz negro, magro e jovem, de camisa preta de manga comprida, tira uma pistola Glock da linha da cintura, presa então somente pelos elásticos do short preto e da cueca. Taciturno, entrega a arma na mão de Lourenço, que a empunha para o alto, com o dedo longe do gatilho. Ele explica, em hebraico, que se trata de uma arma israelense: “a Glock G19” – trata-se, na verdade, de uma arma austríaca. Ele conta ainda que tem outras duas armas israelenses em sua posse: a Tavor e a Micro Tavor, fuzis produzidos pela Israel Weapon Industries (IWI). A mera pronúncia das armas motiva algumas risadas.
Cento e cinquenta reais. Esse é o valor que cada turista que quiser fazer o tour de Lourenço deve desembolsar. Ele afirma que parte dos seus clientes são ou foram soldados das Forças de Defesa de Israel. Durante a alta temporada, ou seja, no nosso verão, a grande maioria dos turistas israelenses que passam pelo seu favela-tour são homens e mulheres jovens, com menos de 25 anos de idade. Em Israel, o serviço militar é obrigatório para qualquer pessoa que complete 18 anos de idade – três anos para homens e dois para mulheres. Pelo menos 50% dessa demografia acaba tendo que se alistar, embora apenas 35% acabe parando nas forças armadas do país.
Assine nossa newsletter
E-mail inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí
Quando o verão passa e o Rio perde parte de seus turistas, Lourenço afirma que seu público muda de faixa etária. Chegam os mais velhos para curtir a capital fluminense com a família, fazendo uma pequena pausa da programação tradicional, com visitas ao Pão de Açúcar e ao Cristo Redentor, para a imersão no tour de bocas de fumo do Pavão-Pavãozinho.
Os turistas israelenses costumam descobrir a programação em grupos de WhatsApp e Facebook quando estão de passagem pelo Rio ou em dois grandes sites hebraicos de viagem, o gringo.co.il e o muchiler.co.il. Neste último, há uma propaganda explícita e de fácil acesso para o tour de Lourenço: “Guia fluente em hebraico para um tour autêntico e focado na favela, explorando a máfia local, diferente dos tours mais tranquilos e longos. O tour inclui um açaí e uma partida de futebol local, além de exposição ao estilo de vida na favela e armas/drogas comuns em cada esquina”.
O Muchiler oferece descontos em passeios de parceiros para quem tiver o cartão deles, o Muchi Card. Para o passeio de Lourenço, o cartão possibilita um desconto de 10 reais, mas o valor pode subir para 30 reais a depender do humor do guia no dia do passeio. O site oferta um drive com prints de recomendações do tour pelas bocas de fumo. Numa delas, o turista Roie Schwartzberg descreve: “Visitei uma favela do Rio de Janeiro com o Lourenço (Brasil). Uma história fantástica e fascinante de um chefe de cartel e sobre como a vida o levou até ali. [O tour] mostra os abismos entre os tipos de cidadãos no Brasil, é de abrir os olhos. Sem querer dar spoilers… não esconde o que realmente está acontecendo lá.”
As cenas impressionam os frequentadores. Com 23 anos de idade, Nadal, um jovem pálido e louro, acha engraçado como as pessoas vivem no dia a dia com armas, chegando a brincar com fuzis, como se fosse brinquedo. “É realmente surpreendente ver essas armas aqui, no dia a dia”, afirma.
Há outros que dizem sentir pena do que veem. “Deve ser difícil para vocês, brasileiros, verem essa miséria, né?”, disse a única garota no grupo daquela tarde, que preferiu não ser identificada. Ela e outros disseram que em Israel praticamente não existe pobreza como no Brasil, que as regiões pobres ficam onde moram os palestinos. “Lá não tem favela”, observou Nadal. “Quando queremos, por exemplo, comprar cocaína, temos que pedir para alguém por telefone e é muito caro.” Bem, há as diferenças, e há as semelhanças…
Ao longo da vida Lourenço teve muitos nomes. Para os parentes é Luiz, para os turistas Israelenses é Fernando, para os amigos do Pavão-Pavãozinho é Vagner Love, em referência às tranças que usava aos 50 e poucos anos e que eram iguais às do jogador de futebol que atuou por Flamengo e pelo Palmeiras.
No meio do samba, ficou conhecido como Mangueira, uma homenagem à escola homônima pela qual é apaixonado. Esse amor, aliás, virava motivo de piada pelos envolvidos com os desfiles do Carnaval carioca, uma vez que Lourenço não escondia tal amor mesmo quando trabalhava como mestre-sala na Estácio ou aderecista da Beija-Flor durante sua juventude.
Filho da relação entre uma empregada doméstica, Maria da Glória de Souza, e Luiz Carlos Gonçalves Lourenço, um protético, viveu a primeira infância quase toda junto à mãe e à avó materna, que trabalhavam e moravam na casa de uma família judia no bairro de Laranjeiras, no quartinho de empregada. “Eu era muito mimado, sabe? Elas me davam de tudo!”, conta Lourenço, saudosista.
Maria da Glória e a avó largaram o emprego e, sem condições para continuar a criar Lourenço, o entregaram ainda criança a Luiz Carlos e seus respectivos pais. Ele, então, saiu de Laranjeiras para a Rua Benjamin Constant, no bairro da Glória, na virada da década de 1960 para 1970. Longe da escola e flertando com a criminalidade, mudou-se com os avós para Nova Iguaçu onde os grupos de extermínio impunham temor, forçando-o a evitar confusão na rua (“a gente se mudou para que eu não me perdesse na vida”). Nunca se alfabetizou completamente, sendo assim uma pessoa capaz de ler, mas incapaz de escrever. Relata que em sua adolescência na Baixada Fluminense conheceu duas coisas que o acompanharam por boa parte da vida: as artes e a cocaína. Lourenço dançava e tocava samba com o mesmo afinco com que consumia a droga.
Certo dia, enquanto trabalhava em um carro alegórico, um colega do Carnaval apareceu perguntando se não queria fazer um teste para um grupo de músicos brasileiros que um empresário espanhol estava montando para se apresentar na Europa. Passou e, por volta de 1994, foi viver na Espanha por cerca de cinco anos, período em que ganhou fluência na língua espanhola. Já contando meia década na Espanha, ali pelos anos 2000, Lourenço recebeu uma ligação de uma ex-namorada brasileira com quem mantinha uma relação de idas e vindas sempre que visitava o Brasil. Ela disse que um empresário israelense procurava um dançarino para o grupo de música e dança brasileiro estava organizando em Israel. “Seduzido pela proposta, mudou-se para lá por volta de 2005. Incapaz de se comunicar com a maioria das pessoas, aprendeu hebraico após um desentendimento com o tradutor durante uma negociação de condições de trabalho com seu chefe. “Demorei quase dois anos para aprender hebraico. Hoje em dia falo perfeitamente, mas eu não leio.” Viveu em Israel como dançarino até 2012, quando retornou ao Brasil com medo dos conflitos entre os israelenses e os imigrantes do Sudão. Sem dinheiro, foi morar com o pai, na Penha, na Zona Norte do Rio, enquanto trabalhava num hostel com muitos clientes israelenses, pondo o conhecimento do hebraico à prova.
A estadia e o trabalho duraram pouco. Lourenço foi morar na favela do Pavão-Pavãozinho, onde já circulara como músico em festas de samba. Ali decidiu montar o tour focado em israelenses, em 2014.
“Não pode tirar foto”, avisa Lourenço em hebraico e depois em português minutos antes de o grupo passar pela primeira boca de fumo ao fundo do corredor aberto onde pegou a Glock na mão. É um estande de drogas na curva de uma escadaria estreita por onde passam moradores a todo momento. Sentado sob a proteção da telha assegurada por finas pernas de pau, o gerente da boca de fumo comanda as vendas de drogas como cocaína, maconha e sintéticos (MDMA, por exemplo); ele aparenta ser o homem mais velho dentre os quatro traficantes presentes, com mais de 30 anos de idade.
Os turistas israelenses observam silenciosamente o ir e vir de usuários. Entreolham-se quando um homem magríssimo com uma perna amputada sobe de muletas o começo da escadaria a fim de comprar alguns pinos de cocaína. O silêncio é breve, mas tenso, e sua interrupção vem na voz arranhada de Lourenço que fala em hebraico e repete em português que ali é uma boca de fumo e que vendem todo tipo de droga, mas que o inimigo mesmo é a polícia. “Tô falando para eles: estão tranquilos que a polícia tá ali fora, foda-se eles, Copacabana é nossa”, diz. O gerente concorda, pergunta se somos brasileiros e, após a confirmação, explica: “Aqui nós não gostamos de polícia e de políticos”.
A cena se repete numa segunda boca de fumo, com mais armas e mais vendedores. Novamente, adiante pela escadaria, Lourenço relembra: “Não pode tirar foto!” No caminho, os israelenses faziam comentários baixos entre si, evitando pegar até mesmo em suas carteiras. Os moradores, acostumados com o turismo promovido por Lourenço, cumprimentam com alguma tentativa de inglês ou com um “Shalom”, termo em hebraico equivalente a “Oi” e “Adeus”, mas que também significa “Paz”. Num corredor a céu aberto, uma senhorinha apoiada no parapeito da sua janela olhava o movimento de estrangeiros quando um traficante descamisado transitava com seu fuzil cromado a tiracolo. Vendo o grupo de turistas, falou um simpático “Shalom” seguido de um high-five, direcionado também à reportagem.
O tour faz uma breve pausa num pequeno quadrado de chão quadriculado onde cerca de dez homens armados se mesclam às sombras das casas e uma mesa com três homens centraliza a atenção dos transeuntes. Lourenço espera que o chefe dali, sentado no centro da mesa, termine de lidar com as demandas de uma moradora da comunidade, uma mulher de meia-idade, loira, que busca junto ao tráfico alguma resolução para problemas envolvendo o ex-marido. Ela repete frases como “cara, você tem que ver isso pra mim, está me tirando do sério”, enquanto ele responde com “segue tua vida” e “isso aí se resolve sozinho, anda”. Os israelenses observam a cena sem compreensão do que está acontecendo – Lourenço não explica.
O tour na comunidade do Pavão-Pavãozinho passa por cinco bocas de fumo. São poucos os pontos em que fotografias são permitidas. Dentre eles, um parapeito onde a comunidade se encontra com o Cantagalo, onde os jovens turistas disparam fotos da paisagem em que os prédios de Copacabana contrastam com o azul do mar e a moldura dos morros ao redor.
Lourenço aproveita a situação, pega o celular e avisa à piauí: “Vou chocar eles agora.” Os israelenses rodeiam o guia enquanto ele mostra áudios de WhatsApp em hebraico. “É uma mulher israelense que quer comprar uma criança brasileira, bebê, de pele clarinha, por 50 mil dólares. Eu já falei pra ela que eu não mexo com isso, mas ela não para de me mandar mensagem”, afirma, em português. Lourenço não tem passagem pela polícia. Nadal ouve a história e os áudios e diz: “Nunca ouvi falar de algo assim na minha vida, é horrível.”
O ponto final do turismo é o bar de Lourenço, chamado Laje do Love. Ele fica no topo da comunidade, próximo ao local que moradores apontam como QG do Comando Vermelho. As paredes vermelhas são repletas de grafite, há três bandeiras de tamanho considerável ao fundo (duas do Brasil e uma de Israel) e uma porta de metal com incontáveis adesivos em homenagem a soldados israelenses mortos em ação contra palestinos. O chão de ladrilhos emula as ondas das calçadas de Copacabana.
Ali, com a vista mais alta do morro, os israelenses chegam ao fim do tour enquanto, sentados em cadeiras de praia, ouvem o guia contar sua história de vida. É comum que, quando o passeio impressiona muito, o grupo de turistas busque alugar o espaço para fazer uma festa privada sem se preocupar com o aporrinhamento de traficantes que controlam o trânsito de turistas e visitantes a partir do cair da noite. O negócio é lucrativo. “Hoje tenho três casas na comunidade. Conquistei com o dinheiro desse trabalho”, afirma Lourenço. Ele diz que, num único dia de alta temporada, já chegou a guiar 167 pessoas, resultando num ganho de 25 mil reais.
Lourenço conta orgulhoso que largou o vício em cocaína graças à adoção informal de um garoto cujo rosto está estampado em um grafite na parede do bar. Ele é filho de uma mulher com quem teve um relacionamento e ficou órfão do pai, traficante, na primeira infância. Após a separação do casal, relata, o menino pediu para morar com ele. “A mãe dele mora aqui do lado da nossa casa. E quem cria ele sou eu.”
No fim do dia, Lourenço se sente em paz com o trabalho que executa exibindo armas e drogas aos turistas. Paradoxalmente, se irrita com a ignorância dos turistas quanto ao Brasil: “Já teve gente me perguntando se nós, da favela, íamos à praia; se a gente descia o morro, como se a gente fosse bicho.”
Preparado para descer o morro pela escadaria principal, Lourenço explica que não tem receio quanto à segurança do passeio. “Explico tudo para eles antes de subirmos”, diz. “Esses caras [israelenses] são soldados de guerra, o Bope [Batalhão de Operações Especiais] treina com eles, então se acontecer alguma coisa, eles vão saber se virar muito melhor do que eu e você”, conclui, sorridente, enquanto conduz os jovens de volta às ruas de Copacabana.
Jornalista e sociólogo. Colaborou com Agência Pública, UOL, Folha de S.Paulo e Ponte Jornalismo. Autor de O coronel que raptava infâncias (Intrínseca).
Jornalista freelancer baseado no Rio de Janeiro. Tem textos publicados no The New York Times, Ponte Jornalismo, Núcleo Jornalismo, Bellingcat e em outros veículos