Lanata foi demitido três vezes. Antes da última, foi à Casa Rosada. "O que o senhor tem contra mim, presidente?", perguntou. "Nada", respondeu Kirchner. No dia seguinte, estava na rua. FOTO: DAVID SISSO_SISSO CHOUELA PHOTOGRAPHY
Pantagruel, o pingüim e a presidente
Os atritos do casal Kirchner com Jorge Lanata e toda a imprensa argentina
Daniela Pinheiro | Edição 22, Julho 2008
O cruzamento das avenidas Santa Fe e Callao, em Buenos Aires, virou cenário, em maio, de manifestações contra a política agrícola da presidente Cristina Kirchner. Numa manhã de domingo, horas antes de os primeiros manifestantes chegarem para mais um panelaço, uma fila se formava na banca de revistas da esquina. Homens em ternos de tweed, jovens cabeludos e senhoras com os cabelos tingidos de loiro escolhiam suas leituras de fim de semana. Uma das publicações mais compradas era Crítica de la Argentina, um tablóide de 46 páginas e apenas dois meses de vida, cujo dístico é “o último jornal em papel”.
A manchete de primeira página era sobre os aumentos de preços feitos por uma rede de supermercados que recebera milhões de pesos em subsídios públicos para evitar remarcações. Havia a chamada para uma reportagem sobre o assunto por excelência da imprensa argentina, o uso político da publicidade oficial, e outra sobre mulheres que casam com bandidos. Logo abaixo do título, e com letras quase do mesmo tamanho, o nome do dono e editor do novo jornal também parecia uma manchete: “Director Jorge Lanata“.
No mesmo domingo, Jorge Lanata era citado na capa da semanal mais vendida, a Noticias, e havia fotos suas no jornal Perfil, na Caras argentina e, com ar bonachão, na capa da revista sobre publicidade InfoBrand, sob o título “O marketing do eu”. O jornal Página 12, fundado por Lanata aos 26 anos, e que dirigiu por quase uma década, encalhava em uma pilha no fundo da banca. A revista Veintitrés, criada por ele aos 38 anos, e da qual também se afastou, estava escondida atrás de uma montanha de periódicos de fofocas.
Jorge Lanata ganhou fama como radialista, apresentador de tevê, escritor, documentarista, diretor de videoclipes de rock e editor. Não necessariamente nessa ordem: faz tudo ao mesmo tempo. Para não fugir ao seu estilo, filmou durante seis meses um documentário sobre a implantação do Crítica de la Argentina, e o exibiu num canal a cabo. Aos 47 anos, pela primeira vez ele é dono de um órgão de imprensa — na rara condição de celebridade com credibilidade. Em 2005, uma pesquisa mostrou que Lanata era a terceira personalidade mais confiável da Argentina, atrás do escritor Ernesto Sabato e do então presidente Néstor Kirchner.
Num passeio por Buenos Aires, Lanata é cumprimentado várias vezes. De donos de restaurantes a atendentes de padaria, todos costumam saudá-lo com: “Hola, Gordo!” Com 1,84 de altura, 130 quilos, sobrancelhas arqueadas e hirsutas, ele é um personagem rabelaisiano. Diabético, o Pantagruel portenho se entope de refrigerantes e chocolates, fuma três maços de cigarro por dia, só veste ternos sob medida, em tecidos de tons chamativos e brilhantes, usa suspensórios e varia, conforme o humor, a cor da armação dos óculos. Enfeita-se com pulseiras, grossos colares de prata e emana um perfume suave. Fala compulsivamente, solta palavrões e quase sempre termina suas frases com “me entendes?”.
A julgar pelas capas, Crítica de la Argentina às vezes parece um jornal de humor. Em abril, em resposta a mais uma onda de críticas de Cristina Kirchner contra a imprensa, Lanata publicou na primeira página uma foto da presidente, aos 17 anos, com a legenda: “Tão jovem e bela como sempre, Cristina nos jardins da residência oficial.” As reportagens em destaque eram: “Muito oportuna a reclamação da presidente contra a imprensa”, “Os preços continuam baixando” e “Mais luz na Cidade Luz: Cristina viaja para Paris.” Até o nome Crítica foi alterado. Em seu lugar, lia-se Cristina, com a palavra rodeada por elementos da marca francesa Louis Vuitton. Mas era o mesmo jornal que publicara, em seu primeiro número, uma reportagem sobre como os negócios dos parlamentares influenciavam seus votos no plenário. O título resumia bem a conclusão da matéria: “Congresso S/A.”
Em março, três meses depois da posse, quando a presidente aumentou o imposto das matérias-primas exportadas (a tarifa da soja, por exemplo, subiu de 27% para 40%), os empresários agropecuários promoveram bloqueios em estradas, que com o tempo vieram a provocar a falta de determinadas mercadorias nas cidades. Como a grande imprensa ficasse ao lado dos empresários, Cristina Kirchner passou a hostilizar jornais e revistas. Em solenidades, dizia que a imprensa só publicava notícias “negativas” e que torcia para que todas as iniciativas do governo “dessem errado”. Repetiu que algumas publicações “escondem muitas vezes interesses econômicos profundos” e classificou uma caricatura do jornal Clarín, na qual foi retratada com um esparadrapo na boca, como um “ato quase mafioso”.
Em 1999, o então presidente Carlos Menem propôs a criação de uma Lei de Ética Pública, que logo recebeu o apelido de Lei da Mordaça, para limitar a atuação da imprensa. Não conseguiu, mas, em 2006, Néstor Kirchner inventou o Observatório contra a Discriminação na Mídia, com o objetivo de apontar abusos cometidos por jornalistas. Composto por quinze integrantes, alguns nomeados pelo governo, nos seus primeiros dois anos de vida o Observatório manifestou-se apenas três vezes — numa delas contra uma marionete que fazia piadas racistas na televisão. No início de maio, com o incremento das manifestações dos empresários rurais, e as seguidas críticas da imprensa, a presidente reformulou o Observatório. Chamou para integrá-lo um professor que havia defendido que, ao referir-se às paralisações dos produtores rurais, a imprensa deveria usar “locaute” no lugar de “greve”.
Embora não possa aplicar multas ou sanções, as denúncias do Observatório permitem que qualquer pessoa ou instituição abra processo contra um órgão de imprensa. “Num contexto em que a presidente ataca jornalistas nominalmente em discursos, a idéia de reviver o Observatório serve para pressionar e intimidar a imprensa”, opinou o jornalista Gabriel Michi, presidente do Foro de Periodismo Argentino.
A sede do jornal Crítica de la Argentina, no centro de Buenos Aires, ocupa um galpão de pé direito alto e tem um jardim com churrasqueira e mesas ao ar livre. Nas manhãs de sábado, Lanata transforma a redação em galeria de arte, para que os leitores admirem pinturas em meio às mesas dos repórteres, e serve espumante e empanadas aos visitantes. A redação é integrada por 120 jornalistas que, no final do ano passado, abandonaram seus empregos quando Lanata anunciou que lançaria um diário. O salário médio dos repórteres é de 1 400 reais.
Numa tarde de maio, na sua sala no 2º andar do jornal, ele organizava a agenda. Dali a pouco, faria ao vivo o seu comentário semanal para uma rádio da Espanha. Daria em seguida um depoimento para dois jornalistas que escrevem sua biografia. Depois teria um encontro com um lobista de uma fábrica de celulose e outro com os produtores do documentário As 100 Maiores Mentiras do Governo Kirchner, que pretendia encartar numa edição dominical. Participaria de uma reunião na escola da filha de 3 anos. Na volta, discutiria com seus editores um suplemento a ser lançado no interior.
“Faço o jornal que eu gostaria de ler”, ele disse. “Não faço pesquisa de mercado porque isso é para quem vende tomate. Como sou igual a todo mundo, se eu gosto, vai ter gente que gosta.” Crítica de la Argentina vende 40 mil exemplares nos dias de semana e 60 mil aos sábados e domingos. Ainda na madrugada, todo seu conteú-do fica disponível na internet, o que atrai diariamente 150 mil visitantes ao site. Segundo Lanata, o investimento do projeto foi de 2 milhões de reais, divididos pelos quatro sócios. O mais rico deles é dono de um laboratório farmacêutico, Marcelo Figueiras, um homem alto, magro, com uma franja grisalha, e o indefectível sorriso dos milionários. Os outros são um ex-juiz, um advogado e o dono de uma seguradora.
O ex-juiz é Gabriel Cavallo, que decidiu serem inconstitucionais as leis de obediência devida, usadas por militares de baixa patente para justificar que cumpriam ordens quando torturaram e mataram oponentes à ditadura militar. Fumando sem parar, Cavallo entrou na sala e cumprimentou Lanata com um beijo. Queria avisá-lo de que uma audiên-cia sobre o nome do jornal (reivindicado por uma publicação mensal) havia sido adiada. Dias depois, Cavallo me explicou as razões de sua guinada profissional: “Cheguei ao topo da minha carreira como juiz. Teria que esperar muitos anos ainda até o próximo passo, que seria a Suprema Corte. Então, quando Jorge me chamou para me aventurar nisso, não tive dúvidas.”
O ex-juiz (que não tem parentesco com Domingo Cavallo, ministro da Economia no governo Menem) é o administrador de Crítica. No próximo ano, a empresa deve abrir o capital na Bolsa de Valores de Nova York. Lanata pretende lançar uma revista semanal bilíngüe e publicá-la no Brasil e na Argentina. Ele diz que o jornal já se sustenta, mas o investimento inicial só será recuperado, dentro de dezoito meses, se as vendas e a arrecadação de publicidade continuarem como estão.
O filho mais velho de Cristina e Néstor Kirchner, Máximo, parece saído de um romance de Victor Hugo: é gordo, tem o cabelo escorrido e, freqüentemente, deixa crescer uma barba rala que nasce com mais força no pescoço que nas bochechas. Aos 29 anos, é tão reservado (ou tímido) que nunca se ouviu a sua voz publicamente. Como os pais, começou a estudar direito, mas abandonou a faculdade e, sem sucesso, tentou ser jornalista esportivo. Máximo Kirchner administra os bens da família e, desde o final do ano passado, é apontado como o líder de um grupo de jovens governistas que se autodenomina La Cámpora.
A princípio, a atividade do grupo resumia-se a servir de claque, em todo o país, nas solenidades presidenciais. Numa manhã de abril, porém, Buenos Aires amanheceu com cartazes pregados em postes, painéis publicitários, pontos de ônibus e paredes com os dizeres “Clarín mente”, “Clarín pressiona” e “Clarín quer inflação”. Alguns cartazes eram assinados pelo La Cámpora e outros, pela Juventude Peronista, que também apóia os Kirchner. Com o passar do tempo, chegaram a colar 65 mil cartazes num só dia. Numa comemoração oficial, o próprio Néstor Kirchner subiu em um palanque segurando um deles.
O grupo Clarín é uma potência que tem uma estação de TV aberta, dezenas de repetidoras em todo o país, canais a cabo e satélite, empresas de telefonia, jornais, revistas, rádios, agências de notícias, gráficas, operações na internet, uma grande produtora de cinema e a maior fábrica de papel (em sociedade com o governo e o grupo La Nación). É como se no Brasil houvesse uma única empresa reunindo os grupos Globo, Folha e Abril.
O motivo da hostilidade, mais uma vez, foi o conflito com os produtores rurais, apoiados pelo jornal Clarín. Segundo Gustavo Martínez Pandiani, decano da Faculdade de Comunicação Social da Universidade del Salvador, em Buenos Aires, a origem do conflito está no passado recente. “Durante toda a presidência de Néstor Kirchner, o Clarín não batia no governo, muito ao contrário”, ele disse. “E foi por isso que teve todas, repito, todas as suas licenças de rádio e televisão renovadas por mais dez anos sem qualquer discussão.”
A jornalista María O’Donnell, que deixou o emprego para se juntar à nova empreitada de Lanata, publicou o livro Propaganda K: uma Maquinaria de Promoción con el Dinero del Estado. Ela escreveu que, entre 2003 e 2006, o grupo Clarín ganhou 22 milhões de reais em propaganda oficial da Casa Rosada. O montante parece irrelevante comparado às cifras brasileiras. Só no ano passado, os jornais brasileiros arrecadaram 100 milhões de reais em publicidade do governo Lula. O Clarín, no entanto, ganhou muito mais verba oficial do que qualquer outro jornal assumidamente kirchnerista.
“Era como se as críticas estivessem proibidas”, disse Gustavo Pandiani. “Como o governo havia ajudado o grupo, Kirchner achou que o Clarín tinha uma dívida com ele.” O professor lembrou que um dos últimos atos do presidente foi autorizar a fusão entre o Multicanal e a Cablevisión, o que garantiu o monopólio da audiência a cabo ao grupo Clarín.
Enquanto trocava mensagens instantâneas pelo computador com um repórter, Jorge Lanata expôs sua versão sobre o caso: “Alberto Fernández, o secretário de Comunicação, havia pedido a algumas publicações que não dessem espaço ao panelaço. O Clarín cagou para eles e publicou a história em destaque. Foi aí que a coisa pegou.”
Dias depois, o governo começou a defender mudanças na Lei de Radiodifusão, herança da época da ditadura militar. A principal delas foi feita sob medida para atingir o grupo Clarín: limitar o número de concessões para um mesmo grupo, além de estabelecer um teto de 30% de capital estrangeiro nas empresas de comunicação. As manchetes do Clarín, que eram sóbrias, se tornaram agressivas. Do lado do governo, depois dos cartazes, dos discursos contra a imprensa, do Observatório, da Lei de Radiodifusão, das ameaças contra a fusão da Cablevisión, veio o caso do DNA.
Em 2002, a herdeira do grupo Clarín, a socialite Ernestina Herrera de Noble, teve a prisão decretada sob a acusação de irregularidades no processo de adoção de seus dois filhos — que, na verdade, seriam filhos de presos políticos assassinados e desaparecidos pelos militares. Estima-se que cerca de 400 bebês, filhos de presos políticos, tenham sido tirados de suas famílias entre 1976 e 1983. Eles teriam sido adotados por militares ou simpatizantes do governo. O processo por adoção ilegal, com um pedido de teste de DNA para a família Noble, se arrastava há anos na Suprema Corte. Com a briga do governo com o Clarín, uma das principais integrantes da Associação das Avós da Plaza de Mayo apareceu na televisão lembrando que a família se esquivava do exame.
O Página 12 surgiu no final dos anos 80 como uma revolução no jornalismo. O jornal dirigido por Jorge Lanata foi tema de reportagens do New York Times e da revista Time. Caracterizava-se pelo projeto gráfico ousado, grandes fotos, títulos sensacionalistas, bom humor e crítica ao governo, os mesmos ingredientes usados hoje pelo Crítica de la Argentina. Em 1992, o presidente Carlos Menem acusou o Página 12 de fazer parte da imprensa sensacionalista amarela (que no Brasil é chamada de imprensa marrom). No dia seguinte, o jornal foi impresso em um papel amarelo e mudou seu nome, somente naquele dia, para Amarillo 12. Em seis anos, Página 12 sofreu cinco atentados a bomba.
Depois de nove anos à frente do diário, Lanata se desentendeu com os novos donos e saiu. Levando quase todos os jornalistas, montou a revista Veintiuno, que virou Veintidos e parou no título Veintitrés, onde ficou por outros cinco anos. Também esteve à frente de uma publicação de variedades, destinada ao público masculino, chamada Ego, que durou pouco. Alguns de seus detratores costumam dizer que Lanata se cansa de seus projetos, os deixa em má situação financeira e vai embora. “Que besteira. Saí do Página porque foi vendido para o Clarín e virou porta-voz do governo”, disse. “E saí da revista quebrado, antes de quebrar a revista. O único imóvel que tive até hoje foi a leilão para pagar as dívidas.”
Lanata foi parar na televisão. Apresentava um dos programas líderes de audiência, em que entrevistava políticos, mas também homens fantasiados de ratos. Perdeu o emprego na tevê três vezes, duas a pedido de Carlos Menem e outra de Néstor Kirchner, segundo ele. Nessa última, quando cresceram os boatos de que seria despedido, Lanata foi à Casa Rosada. “O que o senhor tem contra mim, presidente?”, perguntou. “Nada”, respondeu Kirchner. No dia seguinte, seu contrato não foi mais renovado.
Até o ano passado, ele era repórter especial do jornal Perfil, que circula apenas nos fins de semana. Foi ali que publicou seu último grande furo, o do Banheirogate: a existência de uma bolsa com 60 mil dólares, de origem desconhecida, no banheiro da ministra da Economia, Felisa Miceli. A ministra renunciou e Lanata ganhou o prêmio de melhor reportagem do ano, razão pela qual foi citado naquele domingo nas capas de Notícias e Perfil.
Em 2001, ele publicou o primeiro tomo de Argentinos e vendeu 450 mil exemplares, recorde editorial dos últimos quarenta anos para livros de não-ficção. “Ganhei tanto dinheiro que o meu editor nem sabia mais o que me dar de presente e me deu uma carta original do rei da Espanha a uma autoridade bonarense, datada de 1806”, contou, rindo. No livro, ele procura analisar a formação socioeconômica da Argentina e sustenta que os negros foram exterminados de propósito nas guerras de independência, dizendo que os escravos foram colocados na linha de frente das batalhas. Cita como argumento o censo de 1810, quando os negros correspondiam a 25% da população. No de 1887, eram apenas 1,8%.
Lanata também se aventurou a escrever romances e novelas, pelas quais não costuma ser lembrado. Em seu currículo, há também dois documentários. O primeiro, chamado Dívida, sobre a crescente dívida externa, teve 100 mil espectadores e fez com que ele fosse chamado de “o Michael Moore argentino”. O filme seguia quase os mesmos passos do diretor de Fahrenheit 9/11: visitava vários lugares para tentar entender um problema e mostrar o que os políticos fazem (ou não fazem) para solucioná-lo. O outro documentário, rodado no ano passado, é sobre a vida nas ilhas Malvinas 25 anos depois da guerra com a Inglaterra. Por farra, ele disse que aceitou dirigir videoclipes de bandas de rock.
Era quase hora do almoço e Lanata interfonou para a secretária. Ela havia se afastado da mesa, mas o som no viva-voz reverberou pelo andar: “Uuuuhh, uuuhhh, alguém está vivo? O barco afundou? Estão mortas? Me atendam… Socorrooooo!!!” Ele queria misto-quente e café. Enquanto esperava o lanche, falou sobre os Kirchner: “Na época de Menem, pedia-se 30% de propina em qualquer negócio relacionado ao governo, mas os corruptos saíam de cena depois de receber o dinheiro. Agora, eles pedem 10% e ficam em todas as etapas, querem uma migalhinha de tudo. Uma empresária me contou isso chorando.”
Nas duas primeiras semanas de vida do Crítica, integrantes do governo entraram em contato com alguns editores. “Eles nos mandavam recados”, disse Lanata. “Como não sabem quanto dinheiro ou qual matéria temos, ficam sondando. Não imagino Perón preocupado com a imprensa, querendo saber o que um estava fazendo, o que o outro estava pensando. Ele não lia os jornais, ele fazia os jornais. Na verdade, este governo nos dá muito mais importância do que realmente temos.”
Uma das três televisões da sala estava ligada no canal de notícias TN, que mostrava produtores rurais em palanques, bradando contra o governo. Depois de apagar uma bituca na xícara de café, Lanata acendeu outro cigarro. “Os Kirchner acham que vão ficar no poder para sempre, que serão eternos no cargo”, comentou. Ficou em silêncio, observando a transmissão, e continuou: “Eles criam inimigos imaginários todo o tempo: primeiro eram os militares, depois o FMI, agora o campo. Enquanto isso, o país afunda. Nossa dívida externa é a mesma há dez anos! Então o que pagamos, carajo?” Antes de nos despedirmos, pedi que ele arriscasse qual seria a opinião do casal Kirchner sobre ele próprio. “Eles me respeitam, mas me odeiam, acho”, afirmou. O sanduíche havia chegado.
Quando era presidente, um repórter perguntou a Néstor Kirchner se ele tinha inimigos. Num primeiro momento, respondeu que não. “Mas aí, ele refez a frase e disse que só havia um homem que ele odiava: era eu”, contou Jorge Fontevecchia, dono da maior editora de revistas da Argentina, com um portfólio de vinte títulos, entre eles Noticias, Perfil e Caras, enfileirados em uma larga estante em frente a sua mesa de trabalho.
Aos 50 anos, falando um português impecável como seu terno e penteado, Fontevecchia comentou com naturalidade que todos os seus telefones, incluindo o de sua casa, são grampeados pelo governo. O fato chegou a ser capa de Noticias em outubro do ano passado, quando técnicos da Universidade de Buenos Aires confirmaram a escuta feita pela secretaria de Inteligência do Estado. “É até bom porque você desenvolve maneiras interessantes de se comunicar, me obriga a falar um castelhano mais correto, já que estou sendo ouvido por quem não conheço”, disse irônico. “Com isso, adotei na vida uma postura de Sêneca: comporte-se sempre como se alguém estivesse te olhando.”
Fontevecchia acha que os atuais atritos entre o governo e a imprensa revelam algo profundo: “Quando uma nação encara o que seria extraordinário como algo normal, ela está perdida. A Argentina aceita com normalidade coisas extraordinárias, como grampear telefones. Os Kirchner são o resultado de um processo de neurose progressiva do país. Quando você tem uma sociedade em que os netos são mais pobres que os avós, isso é contra a natureza, é como um filho morrer antes do pai. Os Kirchner são o reflexo dessa neurose social. Menem era megalomaníaco, De la Rúa era autista e os Kirchner são paranóicos.” Ele considera, ainda assim, que as escaramuças fizeram com que o jornalismo se aprimorasse.
Nos anos 80, Fontevecchia foi exilado nas ilhas Malvinas. Ele diz que o seu caso foi o único, na história argentina, no qual um cidadão foi colocado à disposição do Poder Executivo, para que fizesse dele o que bem entendesse. Em determinado momento, foi acusado de ser espião inglês. Como nada se provou, foi libertado. Hoje, diz: “Como não há oposição, a imprensa acabou ocupando esse papel político.”
Segundo ele, há cinco anos nenhum repórter da sua empresa é atendido por qualquer integrante do governo. Não podem participar de solenidades ou até mesmo entrar na Casa Rosada. “O governo telefona para empresários que anunciam em Perfil para tomar satisfações”, disse. Sua empresa não recebe um centavo de publicidade oficial. “Aquele que quer controlar tudo é um idiota, e o idiota sempre morre pelo próprio excesso”, disse.
Desde 2003, quando Néstor Kirchner assumiu o governo, nunca mais houve uma entrevista coletiva de um presidente argentino. A tese dos Kirchner é a de que, tudo o que eles têm a dizer à população, podem fazê-lo em seus discursos ou na tribuna da Casa Rosada. Quando falam em um programa de televisão ou recebem um jornalista, as perguntas costumam ser combinadas antecipadamente. Em viagens ao exterior, só aceitam ser entrevistados por repórteres de outros países. Numa ocasião, uma jornalista mexicana questionou à senadora e candidata Cristina Kirchner a razão pela qual ela e o marido presidente ignoravam a imprensa argentina. “Há algo muito auto-referente nos jornalistas”, respondeu ela. “O mundo não passa por eles. Preferimos ter um contato direto com as pessoas.”
Num café da manhã no suntuoso salão do hotel Park Hyatt, o colunista Carlos Pagni, do La Nación, que havia escorregado na rua e estava com o rosto com cortes e hematomas, também discorreu sobre o casal Kirchner. “Eles têm uma idéia provinciana de que podem tudo sem prestar contas a ninguém. A República de Santa Cruz dos Kirchner é o que foi a República de Alagoas dos Collor para os brasileiros”, disse, entre goles de suco de laranja. “Eles são multimilionários. Têm 22 casas só em Santa Cruz, onde Néstor foi governador por doze anos.”
Apesar de ser um dos jornalistas mais lidos da Argentina, Carlos Pagni jamais fez uma entrevista com Cristina ou Néstor. “Eles não dão entrevista porque não sabem o que dizer, não têm um plano, uma idéia de governo”, disse. “Peça para um deles explicar o que pensam sobre a economia. Não vai sair nada porque eles não pensam nada”, completou. “O maior problema é que a imprensa embarca em um mito de que eles não falam porque são autoritários, quando eles não falam porque são ignorantes”, afirmou.
O Canal 7 é a tevê pública da Argentina. Tem 800 funcionários, uma programação 24 horas que mistura entretenimento e notícias — e 1,5% da audiência. Durante quase toda a gestão de Néstor Kirchner, o canal foi dirigido por Ana Skalon, casada com o deputado Miguel Bonasso, o braço direito do presidente no Congresso. A emissora passa agora por um plano de expansão. Até o final do ano, implantará dezoito repetidoras, atingindo 8 milhões de espectadores em potencial.
Em março, numa das noites do maior panelaço em Buenos Aires, o canal 7 demorou mais de uma hora para começar a transmitir ao vivo as imagens das ruas bloqueadas por manifestantes. “A informação estava lá, mas não íamos ficar insistindo nela”, explicou Luis Laz-zaro, diretor de programação da emissora. “Mostramos tudo, mas não ficamos batendo na tecla do negativo.”
No seu escritório ao lado do parque de Palermo, Lazzaro desmentiu que o canal 7 jamais tivesse publicado uma notícia desfavorável ao governo: “Isso não é verdade. Mas, como a mídia hoje não dá espaço para o governo expor os seus pontos de vista, não há problema em a população ouvir as boas notícias nas rádios e tevês estatais.”
Em seu carro, um Peugeot antigo, fomos a uma solenidade na embaixada da França (onde foi servido espumante Chandon brasileiro). Enquanto dirigia, Lazzaro reconheceu que as empresas de comunicação foram beneficiadas pelo governo. “E o que fazem hoje esses grupos?”, indagou. “Ridicularizam a política. É preciso reconstruir a autoridade presidencial. E isso supõe impor limites. Criticar o governo é uma forma de extorsão”, disse. Escutei o mesmo argumento, uma semana depois, numa conversa com dois funcionários ligados ao gabinete do secretário de Comunicações, Alberto Fernández. Eles me pediram que não os identificassem até como fontes de informações já publicadas por jornais.
Enquanto procurava uma vaga, em uma praça no bairro da Recoleta, Lazzaro lembrou a ida do presidente Fernando de la Rúa a um programa de televisão chamado Show Match: “Colocaram o presidente numa situação ridícula. Ele saía por uma porta que não existia, ficou todo mundo rindo da cara dele. Foi um absurdo. O presidente virou motivo de chacota da mídia. Isso não pode acontecer”, disse. Dando ré no veículo, continuou: “A democracia está na existência dos partidos políticos. Quando você esculhamba os partidos ou os políticos, você está esculhambando a democracia”, afirmou.
Enquanto caminhávamos até o prédio da embaixada, perguntei se a atitude do governo era uma forma de “educar” a imprensa. “Sim, podemos dizer que é uma reeducação”, respondeu Lazzaro. “Enquanto não souberem respeitar as instituições, a democracia, vai ser assim. Isso vai durar, provavelmente, todo governo da presidente Cristina Kirchner.”
“Que vamos ser processados, o quê!? Vamos fazer, vamos fazer”, dizia Lanata, dias depois, para uma repórter loira, sentada à sua frente. “Já viu um lugar onde o repórter é mais medroso do que o chefe?”, perguntou-me, entre risadas. Na véspera, o Crítica havia recebido uma informação preciosa: 400 e-mails do computador de um integrante do primeiro escalão do governo. “É uma bomba! O ministro é o mais enrolado de todos do governo!”, disse Lanata, excitado. O caso estava sendo debatido pelos editores. A dúvida era identificar a origem dos papéis para que, se publicados, não se configurasse uma infração penal.
Sobre a mesa de Lanata havia um prato de croissants, uma xícara de chocolate quente pela metade e vários maços de cigarro. A repórter e o editor de arte esperavam que ele terminasse de fazer as manchetes da edição do dia seguinte. Uma das notícias era que Buenos Aires estava tomada pelas cinzas do vulcão chileno Chaitén. Também havia o boato de que o “corralito”, o bloqueio das contas bancárias pelo governo, poderia ser reeditado, o que provocou uma corrida desenfreada da população aos bancos. “Hahahahahahá, vamos pôr: ‘Daqui a pouco chove merda: já chegaram as cinzas do vulcão!'”, disse Lanata, digitando a frase em letras maiúsculas no computador e sacudindo o corpo de tanto rir. Entrou na sala o editor-chefe, Guillermo Alfiero. “Jorge, põe: ‘Psicose nos bancos'”, sugeriu. “Ê, boludo, o povo não entende o que é psicose, não!”, respondeu-lhe Lanata. O título ficou: “O show do boato.” A frase da chuva de merda também foi publicada.
No ano passado, a senadora Elisa Carrió, o nome mais forte da insipiente oposição ao governo, procurou Lanata com uma proposta: que ele se candidatasse a prefeito de Buenos Aires. A senadora tinha pesquisas mostrando que ele seria eleito com uma votação estupenda. O jornalista, que se considera “um liberal de esquerda” e nunca teve militância política, ficou de pensar. O convite virou manchete de quase todos os jornais. Uma semana depois, Lanata recusou. “Se ele fizesse isso, nossa vida ia acabar. Ele não ia agüentar, ia querer ser governador, presidente”, afirmou Sarah Stewart Brown, uma morena de 31 anos e sardas no rosto, casada com o jornalista há uma década. “Não foi só por isso, não”, atalhou Lanata. “O que eu pensei foi: quanto é o salário de um prefeito? É muito menor do que o meu!”
O casal mora em um apartamento alugado num prédio de 1928 que lembra os da avenida Foch, em Paris. Eles se conheceram quando Sarah, estudante, o procurou para traduzir um de seus romances para o inglês. Pouco depois, estavam morando juntos. Há três anos, tiveram uma filha, Lola. Lanata tem uma outra filha, de 18 anos, com a jornalista Andrea Rodríguez, editora-executiva do Crítica. A jovem se chama Barbara e é estagiária no jornal.
Rudy Ulloa, ex-contínuo e ex-motorista dos Kirchner, é o “Cidadão Kane” de Santa Cruz — a base eleitoral do casal. Ulloa é dono de um canal de televisão, um jornal, uma rádio e uma revista semanal. Recentemente, lançou um portal de notícias e especula-se sobre sua intenção de pagar 320 milhões de dólares pela Telefé, o segundo canal em audiência no país.
No livro Propaganda K, há um capítulo dedicado a ele: “Rudy Ulloa: O milagre da propaganda oficial.” Em seu jornal, El Periódico Austral, vê-se inesgotável exercício de criatividade. Quando o governo anunciou um aumento nas passagens de ônibus, a manchete de Ulloa foi: “Governo vai dar 600 milhões de pesos em incentivos para o transporte.” Quando os protestos populares a favor do campo tomaram as ruas de Buenos Aires, o jornal estampou como notícia principal a previsão de aumento do PIB de “9,6% no trimestre”.
“O ato de maior sinceridade do governo”, nas palavras do jornalista Carlos Pagni, é o fato de a emissora de Ulloa transmitir um programa político chamado El Ojo del Amo (O Olho do Dono). Nele, um apresentador comenta notícias e relata os fatos da semana sempre favoráveis aos Kirchner.
Há quatro anos, Jorge Marirrodriga é correspondente do jornal espanhol El País. Durante esse tempo, só conseguiu conversar uma única vez com uma autoridade do primeiro escalão do governo. “Foi tudo em off, com outros dois correspondentes estrangeiros, e o combinado era que eu jamais poderia publicar uma linha”, ele me disse.
O espanhol Marirrodriga descreveu alguns episódios que ilustram sua insistência, sem sucesso, por um encontro com os governantes argentinos. Em um deles, ele contou ter chegado a mandar uma carta para a Casa Rosada com o pedido de entrevista. “Não quiseram nem receber o envelope”, disse. “E-mails, eles não abrem ou não respondem. Telefonemas, sempre dizem que a pessoa encarregada não está lá.” O que lhe parece mais estapafúrdio é a maneira como as autoridades querem controlar a informação. “Não é que não te dão um furo jornalístico”, contou. “As autoridades não te dão dados que deveriam ser públicos, coisas bobas como quantas casas populares foram construídas no ano passado.”
Naquela semana, ocorrera um evento na Casa Rosada, no qual Cristina Kirchner aproveitou para criticar o Clarín por ter publicado que as mensalidades escolares, que são definidas pelo governo, haviam aumentado 45%. Ela negou a informação e disse que o aumento fora bem menor. Do fundo da sala, ouviu-se: “A senhora está errada, presidente. As mensalidades aumentaram 30%. A da minha filha subiu de 170 para 228 pesos.” Era um repórter da rádio Rivadavia, uma pequena emissora do interior do país. Rapidamente, dois seguranças o agarraram pelo braço e o retiraram da sala. Cristina Kirchner, nervosa, retomou o discurso sem nada comentar.
“Isso é o normal aqui”, disse o correspondente da revista inglesa The Economist, o americano Dan Rosenheck, de 25 anos, há quase quatro vivendo em Buenos Aires. Na semana anterior, ele havia recebido um e-mail informando que haveria um encontro de militantes de uma suposta facção do La Cámpora com Guillermo Moreno, secretário de Comércio Interior. Como Rosenheck tentava entrevistá-lo há meses, foi até o local, uma sala em um prédio público. Ao entrar, sentou-se em uma cadeira nos fundos. Mas, antes da chegada do secretário, foi interpelado por seguranças. O seu relato: “Eles começaram assim: ‘Quem é você?’ Falei que era jornalista e eles perguntaram: ‘De onde?’ E eu disse: ‘Da Economist.’ E eles: ‘Você não pode ficar aqui porque você é da imprensa golpista, você é inimigo.'” Rosenheck foi retirado da sala, onde permaneceu um repórter do Página 12 e outros correspondentes de rádios do interior.
Os dois jovens jornalistas que escreviam a biografia de Lanata ligaram o gravador. Ele contou que era filho único e fora criado pela tia e pela avó. Por causa de um tumor cerebral, sua mãe viveu quarenta anos muda e com um lado do corpo paralisado. Com o pai teve uma relação fria e distante, a ponto de se surpreender quando o viejo, como ele diz, apareceu em seu casamento. Falou da fuga de casa aos 12 anos, quando passou uma semana dormindo na rua. E de como entrou no jornalismo, pedindo emprego em uma rádio: tinha 14 anos. Nunca se formou em um curso superior. Mesmo quando mencionava algo dramático, como uma tentativa de suicídio, usava o mesmo tom de voz. “Nunca comemorei meu aniversário”, disse. “Até hoje é assim. Eu era um garoto solitário, não tinha amigos”, falou. Os jovens biógrafos ouviam o relato, maravilhados.
Ao final, perguntei se ele não se achava muito novo para já ser biografado. Lanata desconversou, mas pouco depois disse: “Provavelmente não vou ler esse livro. Quando saem matérias sobre mim, não leio nada. Eu cheguei a um ponto que não quero mais ficar dando explicações, me entendes? Eu podia fazer tudo certo, ganhava 99 parabéns, mas se tinha um que falava mal, aquilo me deixava maluco. Eu sentia que tinha que me explicar. Então, não quero mais ver o que falam ou deixam de falar de mim”, afirmou.
No final de maio, depois de inúmeras discussões com editores e o Departamento Jurídico de Crítica, Lanata decidiu não publicar os e-mails privados do ministro. Mas havia conseguido outra reportagem exclusiva. Uma capa do Crítica trazia um pingüim (pela semelhança com a ave Néstor costuma ser chamado de “El pingüino“) com o jornal Clarín enrolado embaixo da asa. A reportagem afirmava que o jornal e o governo tinham feito as pazes. Dava detalhes da reunião na qual o acordo teria sido selado e a frase de um editor, contando que teve que mudar o título principal, na última hora, para se adequar à nova política do jornal.
Depois de mais de dois meses de ataques, a manchete de primeira página do Clarín no dia seguinte à reunião foi: “Cristina quer dialogar: há conversa com o campo.” Nas semanas seguintes, a Suprema Corte decidiu que os filhos adotivos da herdeira do grupo estavam desobrigados de comparar seu DNA com todas as amostras do banco de sangue de familiares de desaparecidos políticos. O locaute continuou e os Kirchner reagiram, no final de junho, com uma grande manifestação na Plaza de Mayo. Também sumiram das ruas de Buenos Aires os cartazes contra o jornal. O Clarín já não mentia mais.
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