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    Ilustração: Carvall

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A luta continua

O combate à corrupção não terminou, e a esquerda tem papel crucial nessa tarefa

Martim Della Valle | 17 maio 2022_12h07
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Um roteiro clássico do boxe talvez seja a melhor alegoria da luta anticorrupção no Brasil, nos últimos anos: o jovem audacioso domina o ringue e castiga sem dó o veterano oponente, que, entretanto, consegue manter-se de pé, e derruba o aspirante. A Lava Jato deu surras inéditas em figuras até então intocáveis, como grandes empresários, políticos de alto coturno, banqueiros e doleiros, mas foi nocauteada no último assalto. No mesmo dia em que o Ministério Público encerrou a força-tarefa de Curitiba, em 1º de fevereiro de 2021, um dos primeiros delatados da operação, o deputado Arthur Lira – membro do chamado “quadrilhão do PP” de 2014 – foi eleito presidente da Câmara dos Deputados.     

As investidas contra a Lava Jato não começaram no ano passado, e não se limitaram a essa operação. Desde 2018, pelo menos, a maioria dos políticos, em coordenação com altos funcionários dos três poderes, têm feito um sistemático ataque aos órgãos de controle e às ferramentas jurídicas de combate à corrupção. Eis outros episódios desse ataque: a domesticação da Procuradoria-Geral da República e da Polícia Federal, as ofensivas contra a autonomia do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), a desidratação do pacote anticrime proposto pelo então ministro Sergio Moro, as várias tentativas de alterar a forma de indicação aos conselhos de magistratura e ao Ministério Público.

As forças da política se dizem dedicadas a conter os “excessos” cometidos na Lava Jato. Excessos houve, com certeza. Mas o que chama a atenção é o raro congraçamento dos partidos, da direita à esquerda, para atacá-los, de forma mais ou menos ostensiva. A esquerda tem tomado a dianteira, recorrendo a argumentos similares aos que emprega na narrativa eleitoral. Ou seja, a anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem sabor de vingança contra a parcialidade adotada pelo Ministério Público e a Justiça Federal, e, mais ainda, evidencia a necessidade de controle sobre investigações como as da Lava Jato. Afinal, quis custodiet ipsos custodes? Quem vigia os vigilantes, se estes abusam de funções para fins políticos? A agenda proposta pela esquerda tem sido encampada por setores da imprensa e grupos de advogados com grande penetração midiática e no mundo político.

Não há dúvida de que o afrouxamento dos instrumentos de controle em geral favorece os políticos. Qualquer pessoa em posição de mando prefere ter menos controles sobre si. Na hipótese benigna, se ela não tiver muitos controles, terá de gastar menos energia com isso e produzirá mais. Na maligna, poderá saquear o erário à vontade. Se tiver razões nobres para justificar o ataque, diluem pressões da sociedade civil para conter o ímpeto regressivo.

No caso brasileiro, regulações desnecessariamente complexas e pouco razoáveis do ponto de vista administrativo, além de erros e excessos cometidos pelos órgãos públicos, fornecem argumentos aos que defendem menos controle. A isso, somam-se os discursos simplórios das forças anticorrupção, que não raro repetem os chavões estridentes e salvacionistas dos tempos da Revolta Tenentista (em 1924) ou da velha UDN (União Democrática Nacional). E, assim, o debate público sobre a corrupção foi ultrapassado por um tsunami de contramedidas vindas das profundezas do poder político, das quais a revisão que afrouxa a Lei de Improbidade Administrativa, criada há trinta anos, parece ser um mero aperitivo do que virá. No roteiro do boxe, a luta anticorrupção está nas cordas – e não como Muhammad Ali na “luta do século” em Kinshasa, na República Democrática do Congo, quando ele usou as cordas como tática para absorver golpes e contra-atacar George Foreman.

 

A corrupção, entendida como captura do Estado por interesses privados, é um dos pilares sobre os quais o Brasil foi fundado e ainda se assenta. Tão antiga quanto ela, é a denúncia da corrupção, que integra até o cânone da literatura nacional, desde o Sermão do Bom Ladrão (1655), de Padre Antônio Vieira, e das Cartas Chilenas, escritas no final do século XVIII pelo inconfidente Tomás Antônio Gonzaga.     

Não é por acaso que a corrupção raramente é punida. Como em tantos casos no Brasil, a lei é aplicada de maneira seletiva: alguns temas e pessoas são priorizados. Os que não foram escolhidos como prioritários têm a felicidade de ver seu processo navegar em meio a procedimentos bizantinos e circulares até alcançarem o porto seguro da prescrição ou da falta de provas. Ainda hoje, a seletividade da lei talvez seja o mais sério problema de base do direito brasileiro.

Boa parte das denúncias de corrupção ocorre em contextos eleitorais e é feita pela oposição. Uma vez no poder, a oposição vê seu apetite punitivo arrefecer. Está empiricamente demonstrado, em todo o mundo, que políticos combatem a corrupção muito menos quando estão na situação. Isso é especialmente verdadeiro no Brasil, onde rupturas institucionais costumam ser feitas em nome de moralidade: alguns líderes tenentistas tornaram-se oligarcas depois da Revolução de 1930, e a ditadura implantada em 1964 terminou mergulhada em escândalos. O Brasil é pródigo em zelotes que se tornam “garantistas” no minuto anterior de sua eleição. Ao menos três presidentes eleitos com plataforma anticorrupção – Jânio Quadros, Fernando Collor e Jair Bolsonaro – se viram cercados por suspeitas de envolvimento pessoal no crime que combatiam ou seus correlatos (como advocacia administrativa, prevaricação e peculato).

Em boa medida, o discurso anticorrupção está relacionado à denúncia das mazelas do sistema político, a uma atitude de se colocar “contra tudo que está aí” (bordão da campanha de Jair Bolsonaro em 2018). Sua utilização no contexto eleitoral é simplificadora e conduz a uma espécie de pensamento mágico com dois desdobramentos, igualmente enganosos: 1. Todos os males brasileiros são causados pela corrupção e, portanto, serão erradicados quando restaurada a moralidade pública; 2. Outsiders virtuosos e vindos de fora do sistema político podem ser agentes de tal transformação.

Trata-se, claro, de duas ilusões, pois: 1. O Brasil é uma nação de renda média, e seus problemas em grande medida advêm desse fato, e não da corrupção; 2. Basta recordar dos presidentes que foram “cruzados anticorrupção”, como os citados acima, para demonstrar os limites práticos da proposta de erradicar o “mal”.

Enquanto o pensamento mágico se espalhava outra vez no Brasil, algo bem mais promissor floresceu. Foram as “tecnologias” jurídico-institucionais de combate à corrupção que, desde os anos 1990, têm evoluído a partir de marcos institucionais como a lei que decretou o fim dos títulos ao portador nos anos 1990 (passou-se a exigir a identificação dos titulares), o caso Banestado (sobre remessas ilegais do sistema financeiro), inovações legislativas das décadas de 2000 e 2010 (como a Lei Anticorrupção e a adesão às convenções da ONU e OCDE), o avanço exponencial dos serviços de inteligência financeira, a criação do Coaf em 1998 e de outros órgãos de controle. Nem todos esses episódios e medidas implicaram em vitórias imediatas. Houve derrotas expressivas, mas todas elas trouxeram lições importantes, utilizadas com sucesso em momentos posteriores. Os erros e acertos da Operação Lava Jato também servirão de aprendizado para o futuro. O aprimoramento da tecnologia anticorrupção se conta em décadas.

Esse desenvolvimento só é possível graças aos órgãos técnicos de Estado cuja independência funcional está garantida por lei e é respeitada pelo mundo político (voluntariamente ou por pressão da opinião pública). Com avanços e retrocessos, o Brasil tem se mostrado razoavelmente eficaz nesse trabalho, ao ponto de contar hoje com um respeitável aparato administrativo de combate à corrupção, com bolsões de grande eficiência e reconhecido internacionalmente.

 

Existe uma tradição de combate à corrupção na esquerda brasileira – desde o fervor quase religioso de velhos comunistas (a aura de honestidade de Luís Carlos Prestes estimulou sua popularidade como líder desde a Revolta Tenentista) até as participações decisivas de deputados de esquerda na CPI que levou ao impedimento do presidente Collor. Houve (e há) um ethos do militante de esquerda como alguém pouco aferrado a bens materiais e mais preocupado com a justiça social, os direitos trabalhistas e a distribuição de renda.

Naturalmente, a esquerda não se absteve de fazer uso eleitoral da luta anticorrupção, por vezes no mesmo estilo simplificador de certa direita. Não por acaso, Leonel Brizola chamou o PT de “UDN de macacão”, associando a origem sindical do Partido dos Trabalhadores às práticas ruidosas da legenda de Carlos Lacerda, que nos anos 1940-50 ergueu a bandeira de anticorrupção para guerrear contra Getúlio Vargas, o PTB e o PSD. Sendo Brizola do campo da esquerda e aliado histórico de Getúlio, o comentário está longe de ser um elogio e tem como cenário a postura de “vestal” do PT nas décadas de 1980 e 1990.

Os governos Lula e Dilma (seguindo processos iniciados nas presidências de Collor e Fernando Henrique Cardoso) tomaram decisões importantes para criar um arcabouço legal de combate à corrupção. Entre elas, destacam-se a adesão do Brasil à Convenção da ONU em matéria anticorrupção (2006), a revisão da Lei de Lavagem de Dinheiro (em 2012), a Lei Anticorrupção e a Lei de Organizações Criminosas (ambas em 2013), a criação dos cadastros nacionais de empresas inidôneas, suspensas, punidas ou impedidas (Ceis, CNEP e Cepim, em 2013), da Lei de Conflito de Interesses na administração federal (em 2013) e a elevação da Controladoria-Geral da União (CGU) ao status de ministério (em 2016).

Além de promover as reformas legislativas, os governos petistas atuaram para garantir a autonomia de órgãos de repressão da corrupção (sobretudo a Polícia Federal e o Ministério Público Federal). Mesmo adversários ferrenhos do PT reconhecem que tanto a PF quanto o MPF tiveram ampla liberdade funcional entre os anos 2003 e 2016. Ironicamente, o partido pagou um preço altíssimo por isso: seus governos foram objeto de operações anticorrupção numa proporção que talvez só tenha sido vista na Itália, durante a Operação Mãos Limpas, na década de 1990.

A ironia decorre da natureza das coisas. Por ser situação, o PT foi o objeto preferencial de ações anticorrupção. Por ter respeitado a autonomia dos órgãos de investigação (por vontade própria ou falta de força política para desagradar uma opinião pública vigilante, pouco importa) foi objeto de vigorosas investigações e acabou sendo associado à corrupção. Por ter tomado posições de monopólio da virtude pública no passado, foi alvo de críticas muito mais duras quando sua conduta foi questionada. Esse processo, conduzido de forma aguerrida pela oposição, contribuiu, como se sabe, para o impedimento de Dilma em 2016 e a vitória de Bolsonaro dois anos depois.

O processo foi marcado por disparates. Políticos notoriamente controversos tornaram-se arautos da moralidade, aceitos docemente como “malvados favoritos”, para lembrar uma expressão do deputado Marco Feliciano (PL-SP) a respeito do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (então no MDB-RJ, hoje no PTB), que por sua vez foi preso e condenado por corrupção, mais tarde. Parte da imprensa engajada contra o PT ultrapassou sem pudores as barreiras editoriais do bom jornalismo durante o mesmo processo. Ilegalidades flagrantes ocorreram em alguns procedimentos judiciais. A decorrente eleição presidencial de um político com histórico de peculato e preocupante proximidade com o crime organizado em seu estado (e que recentemente teve encontros secretos com pastores-negociantes do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) com certeza está longe de ser a apoteose da moralidade.

Esses fatos têm sido usados intensamente nas campanhas eleitorais. Na inevitável disputa de narrativas a questão se coloca mais ou menos da seguinte forma para a esquerda: as ações penais da Lava Jato foram aplicadas de modo seletivo, com o propósito de derrotar o PT e impedir a candidatura de Lula em 2018. Ou seja, a persecução penal, seja a movida pelo MPF em geral, seja a conduzida pela força-tarefa de Curitiba, tinha fins exclusivamente políticos. A versão mais “conspiracionista” inclui a intromissão dos Estados Unidos no affair, com o objetivo de se apropriarem, inclusive, dos recursos naturais brasileiros – narrativa que é uma espécie de encontro do Department of Justice norte-americano com O Poço do Visconde, livro para crianças de Monteiro Lobato sobre a busca do petróleo no Brasil.

Claro que há causas mais profundas para o mal-estar da esquerda com a aplicação da lei (enforcement). Certas franjas mais radicais não escondem seu desprezo pela democracia e a legalidade burguesas, vistas como instrumentos de opressão da classe trabalhadora, como proclamam as estrofes da Internacional há mais de 150 anos. De forma mais geral, existe na esquerda certa tendência de não dissociar política e atuações jurídicas. De certo modo, o Poder Judiciário ratifica as críticas quando se mostra permeável ao contexto político e interfere ativamente no jogo, com imenso prejuízo à segurança jurídica. Com a recente anulação das condenações de Lula pelo Supremo Tribunal Federal ganhou peso essa versão de que a Lava Jato teria sido uma conspiração para atingir o ex-presidente, mas que agora a Justiça foi feita, finalmente.

Para a direita, a narrativa consiste em reduzir o PT a uma agremiação criminosa que existe apenas para pilhar os cofres públicos. A versão lisérgica e extremista dessa mesma narrativa descreve o partido como arauto de uma conspiração mundial de comunistas e bilionários, com o objetivo de destruir as bases da civilização ocidental.  

A matéria-prima dessas narrativas eleitorais que vêm sendo construídas desde 2013 não é, obviamente, a verdade factual, mas a plausibilidade em seus diversos graus. Com isso, ela produz diversos efeitos deletérios e vítimas. Uma delas é, exatamente, o combate à corrupção. É ingênuo esperar que os partidos mudem as narrativas em ano eleitoral. Entretanto, eles deveriam considerar os prejuízos para o país, no longo prazo, da manutenção de tais discursos.

 

A esquerda possui credenciais inquestionáveis no combate à corrupção, como vimos. Ao optar por um discurso em que se faz vítima da injustiça e da perseguição seletiva, ela acaba por menosprezar parte importante de sua tradição. Esse discurso deve servir bastante à campanha eleitoral de 2022, mas a atitude de abraçar medidas contrárias ao combate à corrupção pode resultar numa conta muito alta nos próximos anos.

Tudo indica que moralidade pública não será o tema central das próximas eleições, e sim a economia. Superadas as premências da crise econômica atual, contudo, é certo que o combate à corrupção voltará ao debate público no país. Trata-se de um tema importante para o desenvolvimento nacional, e tende a não desaparecer facilmente da pauta. Haja vista o que ocorre no plano internacional: a luta contra a corrupção só aumenta, não diminui. Para os que propõem o capitalismo de stakeholders (de partes interessadas, que levam em conta interesses sociais, além do lucro aos acionistas) a agenda anticorrupção do setor privado, sobretudo na forma de compliance, terá vida longa. Old habits die hard (velhos hábitos custam a morrer), diria Mick Jagger.

A mera repetição das atuais narrativas eleitorais provavelmente não bastará à esquerda, caso chegue à Presidência novamente. Subestimar o legado sólido de avanços institucionais em favor de uma narrativa eleitoral que é em parte justa (houve excessos), em parte conspiracionista (pois nem tudo foi excesso), e que já está muito esgarçada pelo uso reiterado que dela fazem os culpados de todo tipo (à direita e à esquerda, pois não há criminoso que não alegue inocência), isso não deve render muito mais que argumentos ademaro-malufistas: “Rouba, mas distribui renda” será o “rouba, mas faz” da esquerda? Esperemos que não.

Felizmente, há outros caminhos, muito mais vantajosos para a esquerda e para o Brasil. E nenhum deles passa pelo irrealista ato de contrição pública que os adversários da esquerda tanto exigem do PT. Como sabemos, muitos setores políticos exigem uma admissão pública de culpa pelo partido. Porém, poucos desses mesmos setores nem sequer ensaiaram fazer a própria contrição pelos próprios erros. Contrição com o joelho dos outros é refresco.

Hoje, o PT é um arauto da reação aos órgãos de controle. Mas é o abraço à tradição de combate à corrupção construída pela esquerda que pode levar a superar o impasse atual. Esse abraço implica em abandonar o protagonismo no ataque às instituições anticorrupção e em colocar de lado certos pactos do sistema político. A esquerda no poder não precisará mais capitanear a “reação” a esses órgãos, posição que adotou por instinto de sobrevivência, como um animal acuado. Depois do impedimento de Dilma, os seus sucessores se encarregaram de demonstrar que a corrupção, afinal, não tem lado político. Somente pessoas delirantes e alguns editorialistas de jornais podem crer que os governos Temer e Bolsonaro fizeram mais, do ponto de vista institucional, que Lula e Dilma (e FHC) na luta contra o problema (para citar apenas um dado: a nota do índice de percepção de corrupção dos brasileiros tem estado, nos últimos anos, consistentemente abaixo daquela obtida em 2016, conforme relatórios da Transparência Internacional).  

Outra tarefa, ainda mais importante, para a esquerda é levar a discussão da luta contra a corrupção a um novo patamar. É preciso retirá-la do terreno do pensamento mágico e trazê-la para o plano empírico e institucional, transmitindo de modo claro à opinião pública o passo a passo dessa mudança. Fazer a transição do debate utópico ao debate científico (parafraseando Engels), pode significar um importante ganho de qualidade no debate público.

Para tanto, será necessário dimensionar corretamente o fenômeno da corrupção no Brasil, o que trará à tona algumas verdades incômodas. A primeira é reconhecer que este não é o maior dos males brasileiros, pois, como país de renda média, continuará a ter escassez de recursos para quase todas as áreas. Além disso, diversos estudos demonstram que a ineficiência em compras públicas pode ser mais danosa do que a corrupção. Ou seja, há setores em que o erário perde mais por causa de compras malfeitas (pouca antecipação, agregação e inteligência de preços) do que por roubos. Lembrando, claro, que a má qualidade desse processo pode ser fruto de interesses escusos, como vender kits de robótica superfaturados a escolas que não têm água.

É importante evitar visões místicas sobre uma tarefa que depende, sobretudo, de vigilante carpintaria institucional. Messias mobilizam bases, mas estas se esvaem quando faltam milagres. Deve-se evitar a tentação das balas de prata e dos salvadores da pátria, e priorizar a dimensão técnica e empírica da luta contra a corrupção.

Essa luta trouxe e traz melhores resultados quando apoiada no trabalho de um corpo técnico com independência funcional – o que deve ser defendido e ampliado. O setor público dispõe de normas que dificultam a captura política dos órgãos de controle (como mandatos fixos descasados de eleições, obrigatoriedade de listas tríplices etc.) – o que se aplica em particular ao Coaf, cujo trabalho está agora sob ataque. A inteligência financeira talvez seja hoje o instrumento mais importante para detecção de corrupção em uma economia “bancarizada” como a nossa. Mas existe uma agenda gigantesca de medidas anticorrupção para serem levadas adiante. Cito algumas: aumento radical da transparência de orçamentos e contas públicas (ampliando a disponibilidade de dados e planilhas, porém organizados de forma a permitir que qualquer pessoa tenha imediata compreensão das informações); melhoria da regulamentação das ouvidorias e proteção aos informantes do bem (os que informam malfeitos sem serem criminosos); tecnologia em compras públicas, tanto para detecção de fraudes como para melhor organizar e agregar a demanda de diferentes órgãos; mais incentivos ao setor privado para iniciativas de integridade, com modelos robustos de compliance adequados à realidade brasileira (o que ainda não ocorre); fomento a ações coletivas setoriais anticorrupção; criminalização do enriquecimento sem causa; e promoção de um alinhamento técnico sobre padrões de prova, delação premiada, acordos de cooperação e leniência.

Movimentos anticorrupção surgidos desde 2013 juntaram forças para fazer oposição ao PT e, de modo mais geral, à esquerda. Não se viu a mesma contundência da parte deles com relação aos governos Temer e Bolsonaro. Ainda hoje, nota-se em muitos grupos que levantam a bandeira da anticorrupção um claro viés antipetista, embora o PT esteja fora do governo federal há quase seis anos. Ou seja, parecem mais preocupados em fiscalizar a oposição do que o governo, o que é paradoxal e desconcertante. Embora alguns desses grupos tenham tido o mérito de trazer à arena política parte da população alheia ao debate público, eles não conseguem criar mobilização social fora da chave do antipetismo.

O argumento de que a esquerda é a encarnação da corrupção no Brasil não sobrevive a uma análise histórica e não convence muita gente. Historicamente, de 30% a 50% dos brasileiros votam na esquerda. Qualquer movimento que queira levar adiante uma pauta suprapartidária como é a do combate à corrupção não pode prescindir desse percentual significativo da população. Salvo se, na verdade, a sua luta for contra a esquerda – e não contra a corrupção.

À medida que a direita assimilou a anticorrupção ao antiesquerdismo, a esquerda abandonou seu legado de luta contra a corrupção. Com isso, a própria sociedade foi colocando de lado a questão, e os esforços feitos até agora se dispersaram em uma miríade de agendas e instituições, que dissipam a energia que poderia ser canalizada em uma pauta mínima.

O atual estado das coisas tem apenas um beneficiário: a própria corrupção ou a realpolitik nela fundada. Pode parecer exagerado (mais ainda em ano eleitoral) pedir que direita e esquerda renunciem a suas narrativas recentes sobre a corrupção e comecem desde já a pensar em uma pauta mínima comum sobre o tema, desvinculada da disputa pelos votos. Mas, mesmo que não o façam agora, precisarão fazê-lo em algum momento. E, nessa nova etapa, a esquerda tem todas as condições de trazer suas credenciais nesta luta, sendo mesmo capaz de liderá-la. O ganho será não apenas dela, mas de todos.

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