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    "Nem toda a sociedade apoia os sem-terra. Mas ninguém é contra comida saudável", diz João Paulo Rodrigues, liderança nacional do MST, ao explicar a nova fase do movimento Ilustração: Caio Borges

anais da política

A revolução dos bonés

Como o MST se tornou pop e tech

Lara Machado | 04 out 2023_12h14
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João Pedro Stédile puxou o microfone para perto de si, inclinou-se para frente e pigarreou. “Boa tarde, senhores deputados.” Assim que as palavras saíram de sua boca, uma longa cadeia de comunicadores digitais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra entrou em ação. Sentados na Câmara dos Deputados, onde era realizada a CPI do MST, dois militantes do movimento se dividiram na tarefa de filmar e editar em tempo real o depoimento de Stédile; outros dois passaram a tuitar freneticamente, pinçando frases do líder dos sem-terra; um militante montava imagens mais elaboradas, com destaques da sessão; e três ficaram encarregados de apertar os botões que disparam posts em todas as redes sociais.

Naquela terça-feira, 15 de agosto, o MST fez 96 postagens no X, o antigo Twitter. Militantes espalhados pelo país ficaram de prontidão para repostar e, com isso, espalhar todo conteúdo que vinha de Brasília. A hashtag #TôComMST chegou aos trending topics. As publicações no Instagram acumularam, na semana, 560 mil curtidas, maior volume do ano até agora. Vídeos em que Stédile “lacra” para cima de deputados da oposição fizeram sucesso nas redes.

A CPI, que se encerrou no final de setembro, terminou com saldo positivo para os sem-terra. Tudo fruto de um investimento que o MST vem fazendo, nos últimos anos, para ampliar seu alcance digital e furar a bolha da esquerda, sempre focando em agendas positivas, como a produção e doação de alimentos orgânicos. Três meses antes, Stédile participou do Flow Podcast, programa muito criticado por dar palco a figuras do bolsonarismo. Falou por duas horas, acumulando 254 mil visualizações só no vídeo principal. “Eu não sabia que eu era tão ignorante sobre como o MST se organiza, foi uma boa ouvir ele falar”, escreveu um usuário, na caixa de comentários do YouTube. “Não conhecia o Stédile, que aula!”, escreveu outro.

A imagem de revolucionários barulhentos vem passando por um rebranding. Os bonés vermelhos tornaram-se item popular na cabeça de simpatizantes. O MST, enfim, é pop.

A comunicação está no cerne dessa mudança. Gustavo Marinho, um jovem alagoano de 32 anos, coordena a redação nacional do MST, situada na região de Santa Cecília, em São Paulo. Ali trabalham cinquenta comunicadores, que se dividem nas tarefas de produção de texto, redes sociais, design, fotografia, vídeos, assessoria de imprensa e tecnologia da informação. Outros vinte funcionários, também dedicados à comunicação, estão espalhados por outras cidades. A equipe quadruplicou de tamanho em menos de dez anos. No Instagram, onde o MST é mais forte, somam-se 951 mil seguidores. A média é de mil novos seguidores por dia.

“A classe trabalhadora se comunica, se forma e busca lazer nessas plataformas”, diz Janelson Ferreira, dirigente nacional de comunicação do MST. “Elas são um espaço de disputa que a gente não pode deixar vazio.” Seu colega, Marinho, estava em Brasília no dia do depoimento de João Pedro Stédile. Impedido de entrar no plenário da CPI, que estava lotado, tirou uma selfie do lado de fora e disse: “Aulas de Stédile na CPI: eu fui, eu tava! #TôComMST.”

 

Em março do ano passado, um jovem internauta tuitou, descompromissadamente: “vcs que não são do MST usando esses bonés do MST eu não me aguento não. O boné virou assessório [sic] pra ir pra balada, gente.” Numa dessas dinâmicas imprevisíveis das redes, o tuíte viralizou e o MST aproveitou para deixar claro o que pensa: é, sim, para todo mundo usar o boné. “Nós nos orgulhamos quando vemos pessoas que não são do MST utilizando os nossos símbolos, nossos bonés, camisetas e bandeira”, disse na época Kelli Mafort, da direção nacional do movimento. A foto de perfil do MST nas redes sociais é o famigerado boné.

“Eu me lembro quando a Alinne Moraes, atriz da Globo, quis um boné. Quem pediu para mim foi a Paula Lavigne”, relembra João Paulo Rodrigues, liderança nacional do MST. “O microfone da Alinne é enorme, no outro dia foi um estrondo. A partir daí passamos a ter uma relação com o mundo artístico que não tínhamos até então.” O ano era 2018. Depois de Alinne Moraes, outros famosos posaram para fotos com o boné vermelho: Chico Buarque, Gregório Duvivier, Lázaro Ramos, Wagner Moura… O MST, sempre que pode, retuita.

“Na década de 1990, quem usava o boné do MST era o militante da UNE, do PCdoB ou do PT. Hoje, não. Quem usa o boné é quem não é de nenhuma outra organização, mas por ser de esquerda quer ter algum símbolo”, pondera Rodrigues. “A pessoa pensa: ‘não dá mais pro símbolo ser a foice e o martelo, então vou usar o do MST.’”

Num mês fraco, o movimento vende entre quinhentos e mil bonés. Nos meses mais agitados, vende 3 mil. O principal canal de vendas é o Armazém do Campo, lojinha de produtos orgânicos criada pelo MST e que tem 27 filiais em diferentes cidades. Ademar Ludwig, diretor do Armazém, conta que o momento de maior demanda foi outubro de 2022, durante as eleições. “Todo dia saía pelo menos uma kombi cheia de boné para levar aos Correios.”

O Armazém, assim como o boné, é fruto da tentativa de popularizar o MST, sobretudo nas grandes cidades. A primeira loja foi inaugurada há sete anos, em São Paulo. A ideia era criar um espaço de venda de produtos orgânicos, mas também de confraternização entre pessoas de todo o espectro político. “Nas cores da marca estão o branco, o preto, o verde e o laranja que a gente pensa em, um dia, deixar vermelho”, brinca Ludwig. A escolha de criar uma nova marca para comercializar alimentos produzidos nos assentamentos ajuda o MST a conquistar novos públicos pelas beiradas. Parece uma boa aposta, já que alimentos orgânicos estão em alta. Até o relator da CPI do MST, o deputado e ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles (PL-SP), foi visto recentemente em São Paulo comprando produtos orgânicos num hortifruti. A loja não tinha relação com o MST, mas bastou para causar a zombaria.

“A gente quer que seja um espaço pro pessoal do Psol ou pros sindicalistas fazerem uma reunião, ou até como ponto de encontro para quem vai pra balada à noite”, explica Ludwig. Há espaço para todo mundo no Armazém. A tática de furar bolhas para popularizar o MST pode ser resumida naquilo que João Paulo Rodrigues chamou de “política do boné”. Diz ele: “A política do boné está vinculada a um trabalho político-pedagógico, que faz essa relação com a alimentação saudável. Aí vêm junto as feiras, os armazéns, o arroz orgânico e toda essa parte ‘gourmetizada’. O MST conseguiu, num momento difícil de sua história, ressignificar o papel da reforma agrária por meio dos alimentos. Ainda não conseguimos que toda a sociedade apoie o direito dos sem-terra à terra. Mas ninguém é contra comida saudável.”

 

Nos seus 39 anos de vida, o MST teve altos e baixos, fases de mais ou menos agitação. As oscilações ideológicas, naturais num movimento político dessa envergadura, ficam claras quando se analisa as palavras de ordem de cada época. No começo dos anos 1980, quando o movimento ainda não existia formalmente, a máxima de quem lutava pela reforma agrária no Brasil era “Terra para quem nela trabalha”. Em 1985, durante a redemocratização, o lema mudou para “Sem reforma agrária não há democracia”. No ano seguinte, vendo que a reforma não ia para frente, o MST trocou a frase para “Ocupação é a única solução”. A questão dos alimentos apareceu pouco tempo depois, no lema “Ocupar, resistir e produzir”.

A história do movimento sem terra, segundo João Paulo Rodrigues, pode ser dividida em três fases. Na primeira delas, entre os anos 1980 e 1990, a principal ação do MST era ocupar terras. “Tinha gente que dava apoio e tinha gente contra, mas essa fase comunicou muito fortemente”, ele avalia. A popularidade não era o forte do movimento. Mas o jogo virou em abril de 1996. Numa marcha em protesto contra a demora na desapropriação de terras que percorreu quase 900 km entre Curionópolis, no interior do Pará, e Belém, a Polícia Militar avançou contra cerca de 1.500 famílias sem terra, matando 21 agricultores e deixando 69 pessoas feridas. O episódio, conhecido como Massacre de Eldorado do Carajás, pôs o MST em evidência. No ano seguinte, organizou-se uma nova marcha com 1.300 sem-terra saindo de São Paulo, Governador Valadares (MG) e Rondonópolis (MT). O grupo se juntou a mais de 100 mil pessoas em Brasília, formando a “Marcha Nacional”. “Se você pegar as notícias dessa época, vai ver que o MST teve sua maior aprovação. Em 1997, a grande maioria da população defendia a reforma agrária”, lembra Rodrigues. 

Outros fatores colaboraram para isso. A novela Rei do Gado, que estreou em junho de 1996, pautou a questão dos sem-terra, criando um clima favorável ao MST. O folhetim teve audiência de 70 milhões de telespectadores diários, durante cerca de oito meses. A média foi de 52 pontos no Ibope, feito nunca repetido desde então no horário nobre da Globo.

Oxigenado pelos ventos favoráveis, o MST entrou numa nova fase de atuação. No começo dos anos 2000, realizou uma série de marchas pelo Brasil, com adesão muito maior do que jamais tinha visto. “As pessoas recebiam o MST na cidade, iam à praça ver o MST passar, batiam palmas na beira das estradas porque era uma forma de fazer luta, de comunicar”, diz Rodrigues. Foi nesse momento que o boné, usado até então por militantes sem terra com motivações práticas, começou a ser adotado por simpatizantes, entre eles Lula. A fotografia que mostra o presidente vestindo o boné vermelho acarretou uma crise política. Assim foi aberta, em 2003, a CPMI da Terra – a primeira das cinco CPIs que o MST já enfrentou.

A gritaria no Congresso bastou para o movimento se desgastar com a opinião pública. Foi preciso uma nova guinada. “De 2005 em diante, mais precisamente depois do Congresso Nacional do MST em 2007, se define que os alimentos saudáveis seriam o ponto central da nossa relação com a sociedade”, lembra Rodrigues. A mudança de discurso reflete uma mudança conceitual: ficou para trás a defesa de uma reforma agrária clássica, que priorizava dar terra aos camponeses, e entrou em cena a “reforma agrária popular”, que usa a produção sustentável de alimentos como principal bandeira. “Esse é o tom da prosa que o MST vai ter daqui em diante: mostrar que, para ter alimento saudável, tem que ter reforma agrária.”

Daí para Alinne Moraes vestindo um boné do MST foi um pulo.

 

Esvaziada graças a um acordo do governo com a oposição, a CPI do MST morreu no último dia 27 de setembro. “SEM RELATÓRIO E COM DEPUTADOS DESMORALIZADOS, CPI CONTRA O MST CHEGA AO FIM!”, publicou o movimento, em suas redes sociais. O texto foi acompanhado de fotos de deputados do Psol e do PT vestindo o boné vermelho.

Diferentemente do que alardeavam os seguidores de Jair Bolsonaro, o terceiro governo Lula não desencadeou uma fase revolucionária dos sem-terra. O rebranding veio para ficar. Segundo João Paulo Rodrigues, o MST está repensando sua ação no campo a partir da cidade. Só faz sentido ocupar terras se isso dialoga com outras pautas da sociedade: “Em determinado momento, o MST começou a ocupar terra no automático”, ele lamenta.

Carla Loop, que comanda o Coletivo de Cultura do MST, vê essa mudança como um processo de amadurecimento. “Desde o golpe e das lutas urbanas de 2013, nós fomos empurrados a participar de novos processos, porque naquele momento precisávamos defender a democracia”, ela diz. Essa nova circunstância levou o MST a estreitar laços com outros grupos de esquerda e da sociedade em geral. Exemplo disso é o trabalho solidário do movimento. Na pandemia, o MST distribuiu mais de 7 mil toneladas de alimentos. Mais recentemente, doou 10 mil marmitas para as vítimas do ciclone no Rio Grande do Sul.

O sucesso do Armazém do Campo foi tamanho que entrou no radar do antropólogo Maurício Alcântara, estudioso das populações urbanas e do fenômeno da “hipsterização” – isto é, o processo por meio do qual as coisas se tornam hipsters, descoladas. Alcântara, que tem mestrado no assunto, acha que o MST foi contaminado por essa onda. “É capaz de ficarem bravos comigo, mas eu acho que o Armazém do Campo é hipster”, brinca o pesquisador. “Não é à toa que a sede deles é nos Campos Elíseos, ali do lado da Santa Cecília, né?”

O modo hipster de ser mistura consumo com propósito político. Isso explica, segundo ele, o apelo dessa repaginação do MST. Quem compra arroz do Armazém do Campo, diz Alcântara, está comprando “do maior produtor da América Latina, que está vinculado a um movimento social, que está beneficiando a agricultura familiar. É um consumo que diz: ‘Eu acredito na reforma agrária. Eu acredito num contexto de produção agroecológica de alimentos.’” A mesma lógica se aplica aos artistas e influenciadores que aderiram ao boné vermelho.

Nada disso é, a rigor, um problema. “Não é como se alguém estivesse deixando de acessar o movimento”, diz Alcântara. A popularização do movimento tem benefícios indiscutíveis. Se isso implica um esfriamento da luta política e da briga imediata pela reforma agrária, só o tempo dirá. João Paulo Rodrigues, para quem a esquerda latinomericana vive hoje uma “crise existencial”, levanta a bola: “A questão é se o MST vai ser o último movimento a morrer do último ciclo vivido pela esquerda brasileira ou se vai ser o primeiro de um novo.”

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