Lutadores treinando na Garrido Boxe, em 2007 Foto: Itaci Batista
Briga de rua: uma academia instalada em viaduto luta contra o risco de despejo
Projeto criado há vinte anos por Nilson Garrido, que ensina boxe a moradores de rua e ex-presidiários, pode ser desalojado em São Paulo
A academia Garrido Boxe vive, como alguns de seus frequentadores, em situação de rua. Localizada debaixo de um viaduto que liga os bairros do Brás e da Mooca, na Zona Leste de São Paulo, é povoada por equipamentos de musculação e dezenas de halteres. Há um ringue e um octógono construídos com materiais improvisados. Há também sacos de pancada, uma estante de livros, vestiários e alojamento, tudo cercado por um alambrado, que separa os lutadores dos pedestres. O barulho de carros e caminhões, que trafegam acima da academia, é constante, assim como a fuligem no ar. Já passaram por ali nomes de peso do pugilismo, como Fernando Bolacha, Jack Welson e o nigeriano Kossi Choken.
Mas, como acontece com muitos moradores de rua, a Garrido Boxe tem sido assombrada pelo fantasma do despejo. A academia, criada pelo pernambucano Nilson Garrido em 2004, já passou por diferentes cantos da cidade. Seu primeiro endereço foi uma passarela no Vale do Anhangabaú, Centro de São Paulo. Depois, foi parar debaixo do Viaduto Júlio de Mesquita Filho, no Bixiga. Até que, em 2007, se mudou por decisão do então prefeito Gilberto Kassab (PSD). No Viaduto Alcântara Machado, encontrou sua morada definitiva.
Agora, corre risco de perdê-la também. Seis meses atrás, em março, uma empresa de reciclagem de lixo chamada Cooperativa Recicla Planet registrou, na prefeitura, um Termo de Permissão de Uso (TPU) pedindo para ocupar o espaço onde hoje fica a academia de boxe. E a academia, por descuido de seus administradores, se viu em apuros: não estava com seu TPU em dia. Em julho, correndo atrás do prejuízo, a Garrido Boxe entrou com um pedido junto à prefeitura para permanecer no espaço. O desfecho da briga é incerto.
“A gente está lutando pra manter vivo o projeto e a memória do mestre Garrido”, diz Eliel Garrido, sobrinho de Nilson. Desde que seu tio morreu, em junho do ano passado, por complicações de uma cirurgia no estômago, Eliel tem tomado conta da academia, que hoje tem aproximadamente trezentos alunos. O projeto se mantém fiel ao seu propósito social: acolhe pessoas em situação de rua, albergados, usuários de drogas, ex-presidiários e menores infratores. Ensina o pugilismo e oferece uma possibilidade de inserção social.
Numa manhã de setembro, ao receber a piauí, Eliel mostrou páginas antigas do Diário Oficial de São Paulo que atestam a concessão do espaço para seu tio. Na época, tudo foi feito conforme manda a lei. Além da academia de boxe, Kassab inaugurou ali uma academia para a terceira idade, duas quadras poliesportivas, um campo de futebol society e uma cancha de bocha. O prefeito pretendia, com isso, renovar uma área degradada da cidade e impedir a ocupação irregular do espaço, que já tinha passado por maus bocados. Em 1999, quando havia uma pequena favela debaixo do viaduto, um incêndio se alastrou e causou a interdição das pistas, uma das mais movimentadas no acesso à Zona Leste. O problema habitacional é grave na região da Subprefeitura da Mooca, que engloba os bairros da Mooca e do Brás. É a segunda subprefeitura com mais moradores de rua em São Paulo, concentrando 20% do total, atrás apenas da Sé, que responde por cerca de 45%.
O problema é que, aos olhos da burocracia, a papelada do Diário Oficial não substitui um TPU devidamente atualizado. Eliel e os lutadores da academia vêm tentando, por isso, conquistar o apoio de moradores da região para impedir a mudança. Agora, como diria Nilson Garrido, a luta vai ser entre recicladores de materiais e recicladores de pessoas.
Nilson Garrido nasceu em Olinda (PE) e chegou em São Paulo ainda criança. Desembarcou na antiga Estação do Norte, hoje Estação Brás da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), que fica a poucos metros do endereço atual da academia de boxe. Trabalhou em feiras de rua, fez coleta de recicláveis e, por um tempo, foi segurança. Conheceu o boxe aos 10 anos de idade, quando, vendendo limões numa feira, esbarrou em Erotildes Baltazar, lenda do pugilismo brasileiro. Baltazar convidou Garrido para treinar, e a vida do menino mudou. Dali em diante, até morrer, Garrido citou Baltazar como seu grande mestre no boxe e na vida. Aprendeu com ele a procurar lutadores por todos os cantos.
Com Baltazar, Garrido também aprendeu que, mais do que vontade de treinar boxe, era preciso condições materiais. O jovem pernambucano se dedicou então a construir, no tempo livre, uma academia à altura do esporte. Coletou pneus de caminhão, geladeiras velhas e peças de carros abandonados para montar seus sacos de pancada. Com o mesmo esforço e engenhosidade, construiu seu próprio ringue. Usou latas, molas de caminhão, pedaços de ferro e cimento para construir equipamentos improvisados de musculação.
Quando estava em seu segundo endereço, no Bixiga, a Garrido Boxe começou a ganhar notoriedade. Virou assunto de reportagens na imprensa paulistana e, em 2006, a cantora Negra Li gravou na academia o clipe da música Você vai estar na minha. Em homenagem a Nilson Garrido, o grupo musical Bixiga 70 compôs Balboa da Silva, canção que faz alusão ao personagem Rocky Balboa, boxeador interpretado no cinema por Sylvester Stallone.
A estrutura da academia melhorou bastante depois da mudança para a Mooca. Não só porque o espaço é maior do que os anteriores, mas porque, ao se instalar ali, debaixo do viaduto, a Garrido Boxe passou a ter patrocinadores de peso. A prefeitura providenciou o abastecimento regular de água e luz – que a academia paga em boletos mensais, como qualquer cidadão –, enquanto empresas como Smart Fit e Spank doaram equipamentos de ginástica e luta. Garrido passou a promover lutas abertas ao público, recebeu prêmios como o Trip Transformadores (oferecido pela revista Trip), foi entrevistado no programa Provocações, da TV Cultura, pelo diretor teatral Antônio Abujamra, e virou tema de um curta-metragem, O Mago dos Viadutos, de Eliane Caffé (o documentário pode ser assistido no player abaixo). A mesma diretora lançou, mais tarde, a série ficcional O Louco dos Viadutos, que trazia Garrido como um dos protagonistas.
A fama não mudou o estilo de vida de Garrido. Ele e parte dos alunos continuaram morando debaixo do viaduto, num alojamento governado com regras rígidas. “Ele exigia que as refeições fossem feitas por todos juntos”, relembra Eliel, seu sobrinho. A regra valia mesmo para os que trabalhavam e estudavam em outros lugares. Garrido também nunca mudou seu jeito de improvisar: quando, cerca de dez anos atrás, se popularizaram no Brasil as lutas de vale-tudo, como o MMA (sigla em inglês para Artes Marciais Mistas), o velho boxeador não descansou até construir um octógono com materiais recolhidos na rua.
Garrido não era de fácil trato. Um de seus alunos, o professor de jiu-jítsu Ronielson Conceição do Nascimento, lembra de ter passado apertos ao chegar na academia. Ele trazia na bagagem uma experiência com boxe em Salvador, onde participou do projeto de Edelson Coração Valente, que, por sua vez, tivera aulas com o Luiz Dórea – referência do esporte, treinador do campeão Mundial Acelino Freitas, o Popó. Quando se mudou para São Paulo, onde trabalha como ator e modelo, Conceição passou a se dedicar mais ao jiu-jítsu. Propôs levar a arte marcial para a academia de boxe. “Eu topo, mas você precisa vir morar aqui, debaixo do viaduto”, ouviu de Garrido. O aluno aceitou. Hoje dá aulas para crianças e adultos na Garrido Boxe e mantém uma academia próxima dali, na Rua Alegria.
Assim como Conceição, outros alunos abriram seus próprios projetos depois de conhecer Garrido. Um deles é o boxeador Fernando Menoncello, o Bolacha. Ex-usuário de crack e outras drogas, ele morava no Arsenal da Esperança, uma casa de acolhimento na Mooca. Quando conheceu a academia, localizada a poucos metros dali, se reencontrou com o boxe, que já havia treinado, e passou a ser treinado por Garrido. Mais tarde, fundou o projeto social “Das Ruas para os Ringues”, que coordena até hoje em duas unidades, uma na Freguesia do Ó, Zona Norte da cidade, e outra em Pirituba, na região Noroeste.
Caminho semelhante foi percorrido por Marcelo Zalika, que também passou algum tempo morando no Arsenal da Esperança. Era dependente químico, chegou a viver nas ruas. Hoje trabalha na Garrido Boxe, embora não seja lutador. “Sou da corrida. Corro 10 km por dia e estou fazendo treinos específicos para participar da São Silvestre este ano”, afirma. Essa diferença não o impediu de ter Garrido como mestre. “Graças a ele, voltei a ter uma casa.”
Zalika atesta que Garrido era, por vezes, ríspido. “Uma vez, falei para ele que eu tinha uma coisa de trabalho para resolver na Penha [bairro da Zona Leste a cerca de 10 km dali], certo de que ele me daria o dinheiro para a condução. Ele me mandou ir e voltar a pé, e eu fui.” Por outro lado, muita gente só soube depois de sua morte o quanto ele era solidário. “Uma senhora que veio aqui me contou que o mestre deu dinheiro para uma cirurgia urgente de um dos filhos dela. Falou também que ele comprava botijão de gás e levava para ela quando precisava”, diz Eliel. Garrido chegava a andar durante 40 minutos com o botijão nas costas, em plena madrugada, para que ela pudesse fazer o café da manhã dos filhos.
O temor de Eliel Garrido é que, apesar da fama e simpatia conquistadas pela academia, a Cooperativa Recicla Planet consiga angariar apoio político para tirá-los de lá. A empresa conta com o lobby do vereador Isac Félix (PL), que acompanha de perto o assunto, e já informa em seu site oficial que está localizada no Viaduto Alcântara Machado. Além disso, a cooperativa se apresenta como parceira da prefeitura, da SPRegula – agência reguladora de serviços públicos da cidade – e de duas empresas de coleta, a Ecourbis e a Loga.
O presidente da cooperativa de reciclagem, Edemir Feitosa Arrais, foi procurado pela piauí no número de telefone que consta no site da empresa, mas não respondeu as mensagens nem atendeu as ligações. Ele também foi procurado, sem sucesso, por meio dos contatos de duas empresas registradas em seu nome, a Planet Negócios e a Link Assessoria.
O vereador Isac Félix diz que a ideia não é despejar a academia dos Garrido, mas dividir o vão do viaduto entre ela e a cooperativa, o que, segundo ele, geraria empregos na região. Ele afirma que foi selado um acordo na Subprefeitura da Mooca para que se compartilhasse o espaço, e que a Garrido Boxe recuou depois do acerto. A academia nega essa versão. A subprefeitura, procurada pela piauí, também disse não ter informações sobre um acordo.
Félix argumenta que a instalação da empresa geraria trabalho para moradores de rua da região e mulheres vítimas de violência doméstica. Mas, ao ser questionado, não explicou por que a cooperativa precisa ser instalada naquele viaduto específico, e não em outro canto da cidade. O vereador tem atuação principalmente na Zona Sul de São Paulo. Ocupou cargo comissionado na Subprefeitura do Campo Limpo e foi secretário-adjunto de Cultura em Embu das Artes, município da Grande São Paulo que faz divisa com a Zona Sul.
Questionada pela piauí, a prefeitura reconheceu que há uma disputa pela área e que os dois projetos estão sob análise. “Os processos estão em fase de instrução, e a permanência das entidades dependerá do cumprimento da legislação municipal”, afirmou, em nota, sem esclarecer se a legislação, no caso, favorece recicladores ou pugilistas. “A conclusão sobre o uso só poderá ser estabelecida após a tramitação completa do processo.”
A academia tem feito o que pode. Fábio Garrido, filho de Nilson, passou a se dedicar mais ao projeto nos últimos tempos. Ele conta que o pai tomou coragem de abrir a academia depois que ele, Fábio, sofreu uma lesão cerebral durante uma luta, em 2004. O jovem atleta chegou a ficar três dias internado na UTI, em coma induzido. Apesar do susto, não guardou sequelas. Voltou aos ringues em pouco tempo, dedicando-se a treinar e formar pugilistas.
Dirigindo a academia junto a Eliel, Fábio tenta angariar apoio popular para evitar o despejo. Lutadores e moradores da região da Mooca estão organizando um abaixo-assinado que defende a permanência da academia. Uma das cabeças da resistência é Francisca Oliveira Rodrigues, uma senhora aposentada de 64 anos, que há mais de quatro décadas mora num prédio próximo ao viaduto e admira o trabalho dos Garrido. “Você precisava ver o abandono que era antes de a academia chegar”, ela diz. “Eles conseguiram reorganizar tudo.” A academia para idosos construída por Kassab se deteriorou por falta de manutenção com o passar dos anos, enquanto a academia manteve-se nos trincos, argumenta Rodrigues.
A moradora se preocupa com a possibilidade de que, com a chegada de uma cooperativa de reciclagem, aumentem os riscos de incêndio e pragas nas proximidades, como ratos e baratas. Junto de outros moradores, Rodrigues tem comparecido a reuniões do Conselho Comunitário de Segurança (Conseg) para tentar barrar a mudança. O esforço ainda não deu frutos. Ela reclama da dificuldade de falar com qualquer representante da cooperativa.
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