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    Alberto Youssef, em depoimento por vídeo durante uma audiência, em 2023 Reprodução JF/PR

vultos da corrupção

As canelas livres de Alberto Youssef

Preso no primeiro dia da Lava Jato, o ex-doleiro enfim se despediu da tornozeleira eletrônica e agora cumpre pena em regime aberto sem monitoramento

Felippe Aníbal, de Curitiba | 16 ago 2024_20h30
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Eram pouco mais de 8 horas de 14 de agosto, uma quarta-feira, quando um Corolla estacionou em frente à unidade da Polícia Penal do Paraná, localizada no bairro Atuba, em Curitiba. Do carro, desceu o ex-doleiro Alberto Youssef, de 56 anos, aparentando serenidade. Naquela manhã de sol e frio em que os termômetros marcavam 3ºC, ele vestia uma combinação discreta e monocromática: sapatênis, calça jeans, camisa e jaqueta pesada, tudo em tons de azul-marinho. Foi cumprimentado cordialmente pela advogada Giovana Menegolo, que já o esperava em frente ao prédio destinado a atender presos monitorados eletronicamente.

Depois de ambos se apresentarem na recepção da unidade em que já tinham hora marcada para serem atendidos, Youssef assinou um termo e, em seguida, foi conduzido a uma sala adjacente. Lá, um policial penal removeu a tornozeleira com a qual o ex-doleiro cumpria pena havia mais de sete anos, desde que progrediu ao regime domiciliar – após firmar um acordo de colaboração premiada. Era um modelo da Spacecom, que entre outros atributos tem “bateria superior a 30 horas”, “detecção de impactos” e “bluetooth integrado”. 

A decisão de retirar o dispositivo de monitoramento foi concedida de ofício pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) uma semana antes, em 6 de agosto. Sem a tornozeleira, o cumprimento da prisão domiciliar será fiscalizado por meio de ao menos duas “visitas surpresas de oficiais de Justiça” por mês. Pelo acordo de colaboração, a pena de 122 anos foi reduzida para 30 (falta cumprir 20).

Preso no primeiro dia da Operação Lava Jato – em 17 de março de 2014 –, Youssef é considerado o pivô do principal escândalo de corrupção da história recente. Ele foi o segundo investigado a firmar um acordo de colaboração premiada no âmbito da Lava Jato e sua delação, pelo teor das revelações e pelos executivos e agentes públicos que envolveu, garantiu a continuidade da operação. Na saída da unidade da Polícia Penal, em poucas palavras, Youssef comentou com a advogada o que sentia por, enfim, se ver livre da tornozeleira: “Eu sei que não é fácil pra ninguém. Tem muita gente na situação em que eu estava ou em situação pior. Não posso reclamar”, disse, segundo ela.

Para Menegolo, a declaração de seu cliente é uma novidade. Até então, Youssef se ressentia pelo fato de ainda estar sob monitoramento eletrônico. Queixava-se de que outros figurões implicados na Lava Jato já estavam sem tornozeleira ou tiveram suas penas anuladas – inclusive Lula (PT), que se reelegeu para o seu terceiro mandato na presidência da República. Agora, no entanto, o doleiro parecia, enfim, ter virado a página. “Foi a primeira vez que vi o Alberto [Youssef] reconhecer que não era o único a sofrer. Senti ele muito mais leve. Algo que eu não via há muito tempo”, diz a advogada.

Dali, Youssef e a advogada seguiram para um café, onde discutiram sobretudo processos do ex-doleiro que tramitam na esfera fiscal. Segundo Menegolo, seu cliente tem dívidas “insolúveis” com a Receita Federal, decorrentes de operações financeiras de antigas empresas de Youssef e não declaradas ao fisco, além de multas. Os débitos passam da casa de 1 bilhão de reais, estima ela. “É impossível arcar com isso”, argumenta. Depois de duas horas de conversa, o doleiro se despediu e, ao volante de seu Corolla, partiu para Itapoá, no litoral de Santa Catarina. 

Em terras catarinenses, Youssef leva uma vida longe dos holofotes, mas com certo conforto. Durante o dia, cumpre expediente como gerente da CDI Terminais, uma empresa de contêineres que opera no Porto Itapoá. No início, o setor de compliance da empresa chegou a recomendar o afastamento do ex-doleiro, em razão de sua vida pregressa, mas a direção optou por mantê-lo no quadro. Ele mora sozinho, em uma casa de dois pavimentos e com varanda, em um condomínio residencial à beira-mar, com saída exclusiva para a faixa de areia. 

 

Youssef estava em um hotel de luxo em São Luís, Maranhão, quando foi preso na primeira fase da Lava Jato, no início da manhã de 17 de março de 2014. Naquele mesmo dia, foi transferido à carceragem da Superintendência Regional da Polícia Federal (PF) do Paraná, localizada no bairro Santa Cândida, em Curitiba. A partir da prisão, o então doleiro passou a responder a sete processos e se tornou alvo de uma série de investigações na 13ª Vara Federal Criminal, em Curitiba. Era acusado de crimes contra o sistema financeiro, de corrupção passiva, de peculato e de lavagem de dinheiro, além de organização criminosa, entre outros delitos. 

O doleiro já era, então, um velho conhecido das autoridades paranaenses. Entre o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000, ele tinha ganhado evidência em outro esquema de corrupção, conhecido como caso Banestado. Em decorrência dessas investigações, Youssef assinou, em 2003, o primeiro acordo de colaboração premiada do país – bem antes da Lei de Organizações Criminosas, de 2013. Com a prisão na Lava Jato, Youssef perdeu os benefícios da delação. Logo, no entanto, passou a tentar firmar um novo acordo. Após negociações turbulentas, a nova colaboração foi firmada em 24 de setembro de 2014 – quase um mês depois da delação de Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Abastecimento da Petrobras – e homologada em dezembro daquele mesmo ano pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O novo acordo estabeleceu que Youssef deveria revelar autores, coautores e partícipes dos envolvidos no esquema investigado, identificando e comprovando os crimes por eles praticados. Além disso, ele deveria expor a estrutura hierárquica e a divisão de tarefas das “organizações criminosas”. Tudo isso, fornecendo documentos e outros tipos de provas às autoridades. 

Assim, ao longo de 30 depoimentos, Youssef detalhou como funcionava o esquema de corrupção, em que atuava como um dos principais doleiros. Apontou nomes de dirigentes da Petrobras e de políticos – passando por Lula, Eduardo Cunha (até então do MDB), Aécio Neves (PSDB) e Ciro Nogueira (PP). O delator também apontou como se dava o beneficiamento de empreiteiras e esmiuçou esquemas em outras estatais. Tudo isso permitiu que a Lava Jato avançasse as investigações, a ponto de ter a repercussão que adquiriu ao longo dos anos seguintes.

Além disso, o acordo previa que o doleiro cumprisse pena de, no mínimo, 30 anos de reclusão, dos quais teriam que ser cumpridos pelo menos três anos em regime fechado. Youssef teve, ainda, uma série de bens alienados, incluindo um hotel em Porto Seguro, Bahia, 74 unidades autônomas em um condomínio-hotel em Aparecida, São Paulo, e outras seis unidades em um hotel de luxo em Londrina, Paraná, além de percentuais de hotéis em Salvador e Lauro de Freitas, na Bahia, e em Jaú, São Paulo. Segundo o acordo, no entanto, Youssef teria direito ao equivalente a 1/50 (um cinquenta avos) dos valores desviados que fossem recuperados a partir de investigações da Lava Jato.

O Ministério Público Federal (MPF), no entanto, não ficou satisfeito com essa última cláusula e propôs um aditivo ao acordo formalizado em 17 de dezembro de 2015. Após novas negociações, revogaram-se os trechos que permitiam que parte do dinheiro recuperado voltasse para Youssef. Em contrapartida, o aditivo reduziu de três anos para dois anos e oito meses o período em que o colaborador deveria permanecer preso em regime fechado. Assim, o doleiro ficou detido na carceragem da PF, em Curitiba, até 17 de novembro de 2016, quando passou a cumprir pena em regime domiciliar fechado, vigiado por tornozeleira eletrônica.

Com o monitoramento, Youssef mudou-se para São Paulo. Passou a morar sozinho em um apartamento minúsculo, com o quarto conjugado com a sala e a cozinha, na Vila Nova Conceição, em uma região nobre de São Paulo. No mesmo bairro, ele estabeleceu um escritório, onde passou a trabalhar como operador do mercado financeiro. As restrições de monitoramento eram, então, mais rígidas. Em dias úteis, Youssef deveria estar em sua residência no período noturno, a partir das 20 horas. Ele também não podia sair de casa nos finais de semana e estava impedido de fazer viagens internacionais. Eventuais deslocamentos para fora de São Paulo deveriam ser autorizados previamente pela Justiça. 

A expectativa da defesa era de que Youssef usasse tornozeleira por quatro meses, até que se completassem os três anos de prisão – período previsto no acordo original a ser cumprido em regime fechado. Quando a detenção chegou aos três anos, o então juiz Sergio Moro autorizou a progressão para o regime aberto, mas manteve o uso da tornozeleira, valendo-se de uma lacuna nos termos do acordo – o documento não explicitava se o cumprimento da pena em regime aberto precisaria ou não ser monitorado eletronicamente. 

Em seu despacho, Moro observou que Youssef foi condenado por diversos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, e que “deveria permanecer preso por vários anos considerando sua elevada culpabilidade”. O então juiz ponderou, no entanto, que o doleiro “colaborou significativamente” com a Lava Jato e que renunciou seus direitos sobre “patrimônio considerável”. Moro escreveu que seria “imperativa a tornozeleira eletrônica” e que o uso do dispositivo não seria uma “sanção”. A defesa recorreu ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), mas pouco adiantou: Youssef permaneceu com a tornozeleira. 

“O aditivo [da colaboração premiada] não previu a tornozeleira. Quem colocou foi o Moro”, diz sua advogada. “Aí, foram se passando os anos e virou uma bola de neve, ficou incompreensível”, acrescenta. À advogada, Youssef sempre relatava desconforto com o dispositivo. Usava meia de cano alto por baixo da tornozeleira, para evitar queimaduras causadas pelo superaquecimento do aparelho. Além disso, o preso tinha que andar o tempo todo com um power bank, porque se a bateria da tornozeleira acabasse, ele sofreria penalidades. Para evitar o estigma, ele evitava bermudas.

Em 2022, Youssef aceitou a proposta da empresa de contêineres, Em março daquele ano, conseguiu autorização judicial para incluir como seu domicílio o tranquilo litoral catarinense – Itapoá tem pouco mais de 30 mil habitantes. (São Paulo também permanece cadastrado na Justiça como um dos endereços de Youssef) Logo conquistou a confiança da equipe e se firmou como uma liderança. Na ocasião, as condições impostas pelo monitoramento eletrônico já tinham diminuído. Youssef não tinha restrições noturnas durante a semana. Ele só precisava permanecer em casa nas noites de sexta-feira, sábado e domingo, das 23 horas às 6 horas.

Em 20 de março do ano passado, o pivô da Lava Jato voltou a ser preso preventivamente. O então juiz da 13ª Vara Criminal Federal, Eduardo Appio, apontou que Youssef não comunicou a mudança de endereço à Justiça Federal, e que “não devolveu aos cofres públicos todos os valores desviados”. Appio acrescentou que as condições de vida do ex-doleiro “são totalmente incompatíveis” com as da maioria dos brasileiros. Um dia depois, no entanto, Youssef já deixou a prisão – usando a tornozeleira. 


Detido na Lava Jato, quando deu entrada na carceragem da PF Youssef ouviu de outros presos que já estavam nas celas vizinhas que tinha havido uma movimentação incomum no local: todos tinham sido retirados dali e levados a um pátio. No dia seguinte – em 18 de março de 2014 –, desconfiados, os presos decidiram fazer uma busca. Encontraram uma escuta ambiental instalada em um vão do teto, na entrada de um bocal de lâmpada. Youssef contou o episódio aos seus advogados. Em 4 de abril de 2014, durante uma visita, o doleiro se deixou fotografar pelo advogado Luiz Gustavo Rodrigues Flores, com o grampo em mãos: o transmissor AT-160 mede 3x5cm – mais ou menos do tamanho de uma caixa de fósforo. Dias depois, a foto foi publicada em jornais e sites de notícias.

A Superintendência da PF no Paraná chegou a instaurar uma sindicância para apurar o caso, mas o procedimento foi conduzido de forma a acobertar os responsáveis pela instalação – já que o episódio poderia levar a Lava Jato por água abaixo. A sindicância concluiu que o dispositivo estava “inoperante” e tinha sido colocado na cela em outra operação, com autorização judicial. A farsa foi descoberta no ano seguinte, por uma nova sindicância, dessa vez, conduzida pela Corregedoria Geral (Coger) da PF, em Brasília. A investigação identificou 260 horas de gravação feitas pela escuta ambiental instalada na cela de Youssef. O episódio foi detalhado por uma reportagem da piauí, publicada em setembro de 2023. 

Apesar de a sindicância da Coger ter sido concluída em 2015, a defesa de Youssef só conseguiu ter acesso ao conteúdo das gravações recentemente, a partir de uma decisão da 13ª Vara Federal Criminal, datada do último 7 de julho, mas considerou o áudio ruim. A defesa contratou um perito para depurar as gravações. Paralelamente, os advogados também pediram à 13ª Vara que o material passe por perícia e degravação oficiais. 

Enquanto o acordo prevalece, Youssef retoma sua vida, distante do epicentro político e do noticiário. 

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