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    Intervenção de Paula Cardoso sobre foto de arquivo pessoal

pandemia na quebrada

“Álcool em gel? Minha casa alaga pelo ralo”

Luana Almeida relata como a epidemia de coronavírus está chegando para os moradores da comunidade do Pantanal, na extrema periferia de São Paulo

Luana Almeida | 19 mar 2020_16h32
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A produtora cultural Luana Almeida, de 24 anos, mora na União de Vila Nova, bairro no distrito da Vila Jacuí, no extremo leste de São Paulo. Está a quase 30 quilômetros do centro da capital paulista. A distância é menor para Guarulhos e o aeroporto de Cumbica – quase 15 quilômetros. Por isso, o bairro pertencia ao município vizinho à capital. Na década de 1970, as obras que alteraram o curso do rio Tietê mudaram também o limite entre as cidades e, a partir daí, a região ficou em uma espécie de limbo da administração pública. Passou a pertencer a São Paulo, mas a população não tinha na prática a quem recorrer. Em 2009, a região foi incluída na jurisdição da Subprefeitura de São Miguel, mas o abandono é reiterado todos os anos, com enchentes que inundam o bairro inteiro. Não à toa, a área é conhecida como Pantanal. 

Da casa dela até a avenida Faria Lima, zona nobre de São Paulo, o trajeto leva uma hora e vinte minutos. Mas a distância social é muito maior. A taxa de mortalidade infantil na Vila Jacuí é décima mais alta da cidade, entre 96 distritos, segundo dados de 2018 da prefeitura. Naquele ano, Vila Jacuí teve seis vezes mais mortes de crianças menores de um ano por mil nascidos vivos que na Consolação, na região central: 14,8 contra 2,5. A pandemia do novo coronavírus evidencia o cordão que separa o Pantanal do centro expandido, mas não isola seus moradores dos riscos de contaminação e mostra como o combate à doença em áreas assim enfrenta dificuldades extras. Luana conta como as notícias do Covid-19 chegaram à Vila Jacuí na última sexta-feira, 13 de março. Até ali, havia 107 casos confirmados no Brasil e 130 mil no mundo. A pedido da piauí, Luana vai acompanhar a rotina de sua comunidade durante a pandemia. E descrever se percepções, temores e prioridades mudarão ao longo do tempo.

Em depoimento a Thais Bilenky

*

“Aqui na quebrada, as coisas chegam atrasadas ou não chegam. Na sexta-feira à tarde, eu estava na perua da Vila, perua lotada, porque só tem uma perua aqui, que vai pra Itaquera. E um ônibus que vai para o Parque Dom Pedro. Só. São os únicos meios de transporte público que temos. Até sexta-feira (13 de março) à tarde, estava tudo normal. Não era um assunto falado aqui na Vila. Tenho certeza de que não começou a se falar do corona na sexta-feira [em outros lugares]. Mas aqui, sim, sexta-feira à noite. Como é que chega? Sempre quem traz a informação é o jornal televisionado. Não tem outra forma. Na internet, se eu for ver minha timeline, as pessoas estão lidando com isso com meme, está tudo muito engraçado. São raros os textões informativos. E as pessoas que eu vejo compartilhando informação não são pessoas da Vila. Até o que as pessoas daqui compartilham nas redes é diferente. A rede social não é um lugar seguro como fonte de informação. 

Aí, na sexta-feira, quando passou o primeiro jornal, o SPTV [da Rede Globo], só se falava nisso. Mas na minha bolha, porque eu trabalho com cultura, tenho um corre independente, uma rede que é outra, mesmo morando na quebrada. Eu vou na quitanda da Zélia, vou no mercadinho da Andressa. Não era uma coisa que estava sendo falada. 

Sexta-feira à noite, o primeiro evento [em que ela atuaria na produção] foi cancelado. Segundo evento cancelado. Eu recebi cinco mensagens: evento XYZ foi cancelado. Comecei a ficar pistola: meu Deus, isso é real, está acontecendo. Se eu estivesse no centro, a notícia chegaria muito mais rapidamente até mim. Mas como eu já estava na quebrada… A gente passa por um túnel para chegar aqui [um túnel sem nome, na entrada do bairro]. Parece que, quando você passa do túnel, a realidade é outra. E é mesmo. As pessoas estão falando sobre outra coisa aqui. A gente está com cerca de 60 mil habitantes. Tem cinco ou seis saídas aqui. As pessoas estão falando: a polícia matou um não-sei-onde, na casa de fulano entrou água. Ué, mas como assim, entrou água? Porque perto da casa dele tem um córrego, que encheu. Os problemas aqui são outros. 

Fui falar com tia, mãe, vizinha, amiga: ‘Caraca, já tive até agora cinco eventos cancelados’. Elas respondem: ‘Nossa, mas por quê? Nossa, Lu, foda é que, para os eventos acontecerem, não depende só de você’. Digo que deu ruim por conta do coronavírus. Aí a galera: ‘Sério? Sério mesmo que isso está afetando a ponto de cancelar eventos e afins? Mas não é só em aeroportos?’ Guarulhos é aqui do lado. As pessoas pensam: ‘A gente não está em risco porque aqui ninguém chegou da Europa’. Tudo isso nos distancia. Acham que nos distancia. O que tem aqui é o centro de São Miguel, onde as pessoas estão sempre aglomeradas e sempre foi assim. Tinha a gripe aviária, as pessoas tinham que deixar de comer frango. Nada mudou, ninguém deixou de comer frango por isso. Gripe suína, zika, dengue, da qual existem casos confirmados aqui na Vila… [os moradores não estão bem informados]. As agentes de saúde, as poucas que são distribuídas, passavam nas portas falando: ‘Gente, a dengue é real.’ E mesmo assim não teve grande impacto na Vila como deveria ter. E tenho certeza absoluta que é por conta dos problemas que já existem aqui.

Estou de quarentena dentro do meu ‘apertamento’, mas, se eu trabalhasse para uma empresa, como a maioria aqui, estaria indo trabalhar. Se você visse como estão os ônibus aqui… estão muito mais cheios. As empresas colocaram menos ônibus para rodar. Se fosse proporcional, se menos pessoas fossem trabalhar, ia dar certo, a conta ia fechar. Mas não fecha, as pessoas não deixaram de trabalhar. Eu me sinto diferente. Minha mãe acordou cedo hoje, me ajudou a limpar o apartamento, porque o condomínio encheu de água, e foi trabalhar. E vai amanhã. Ela trabalha como auxiliar de limpeza no hospital Pérola Byington, em uma empresa terceirizada. E por lá nem foi falado que parariam.

Sábado falou-se um pouquinho mais do corona na quebrada, domingo também. Por aqui a galera não tem grana para comprar produtos básicos de higiene, que dirá álcool em gel. Tenho na minha casa porque sempre tive, mas não é todo mundo. As pessoas ainda não sabem da importância do álcool em gel. Perto dos problemas que a gente ainda enfrenta… A Vila tem 32 anos e enche todos os anos. A gente está preocupada com outra coisa. Na segunda-feira (16) eu estava em casa, ouvi os vizinhos chamando, porque um vai avisando o outro. ‘Fulano, vai tirar o carro da rua.’ Uma amiga mandou uma mensagem: ‘Luana, começa a subir suas coisas porque o rio transbordou.’ Tem um rio paralelo à minha rua. Olhei pra minha casa e pensei: mentira. De novo, velho? Comecei a pensar o que eu podia levantar, porque eu estava sozinha, aí falei, meu, vou deixar encher… Minha mãe me ligando, meu pai me ligando. Não tem o que fazer. Mesmo isso acontecendo há trinta anos a gente nunca está preparado. Não enche pela porta. Alaga é pelo ralo. A gente não consegue resolver. Muita gente colocou comporta, a água passou da comporta. Isso é muito louco. Quando eu fui olhar para a rua, a água tinha coberto dois carros, levou um, entrou em outro, e o vizinho está lá limpando na rua. E o condomínio alagado. Eu moro no térreo. Se a gente desiste dos problemas que passa aqui e vai se preocupar só com problema que está matando gente rica recém-chegada da Europa, desculpa, a gente vai morrer afogada. A polícia vai continuar matando aqui. 

Ouvi muita gente falando: ‘Fica em casa, o corona é muito sério.’ É muito sério. A gente está falando de uma pandemia. O que me preocupa é a quebrada não ter noção da dimensão que é tudo isso. Considerando o serviço de saúde que a gente tem aqui, como a saúde para conosco é tratada de forma não tão importante, a gente também acaba se preocupando menos, sabe?

Agora mesmo estou orientando a galera a ligar para a Defesa Civil, por mais que seja uma canseira terrível. Alagou? Firmeza, agora vamos ver o que a gente faz, porque a gente está abandonada aqui. Eles passam para tantos ramais que a galera desiste. A gente está preocupado com a rua sempre cheia de lama, o estrago que o sol faz, a química que pode ser liberada. A gente está preocupada com isso, pessoas idosas que estavam dentro da água. Elas também não têm prioridade nos postos de saúde, e não é porque o posto não quer, é porque não comporta. 

Os problemas aqui são muitos, e agora temos também a preocupação com o coronavírus. As minhas tias são empregadas domésticas, nenhum patrão liberou. Patrões recém-chegados da Europa, que vão e voltam com frequência. Se meu patrão, elas dizem, que é o mais consciente, não me liberou, e ele quer o meu bem porque eu trabalho para ele, e ele sabe o risco que eu corro, não é tão grave assim. E elas continuam indo trabalhar no Pacaembu, na Vila Madalena, cada uma trabalha em um lugar. Torço para um dia as informações chegarem para além da televisão. É um trabalho de formiguinha, não vai acontecer amanhã. Vou continuar acompanhando para ver o que a galera vai fazer.”  

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