minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Ilustração: Carvall

anais do crime

Alho, alface e dólares na salada do tráfico

De laranjas a hortaliças, as artimanhas do esquema que lavou mais de 1 bilhão de reais dos maiores narcotraficantes do Brasil

Allan de Abreu | 15 fev 2022_11h03
A+ A- A

Os policiais sabiam o que buscar quando, por volta das 10 horas da noite do feriado de Finados, 2 de novembro de 2017, sinalizaram com os braços para que o pequeno caminhão-baú Mercedes Benz parasse no acostamento da BR-116 em frente à base da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em Campina Grande do Sul, região metropolitana de Curitiba. Na carroceria, com o auxílio de lanternas, os agentes da PRF se depararam com dois balcões de cozinha e várias caixas de alho e alface. Mais ao fundo do baú, aquilo que os policiais procuravam: oito caixas de papelão com 12 milhões de reais, em notas de real e dólar embaladas em papel pardo. Foi a maior apreensão de dinheiro vivo da história da PRF.

Horas antes, no início da tarde daquele 2 de novembro, policiais federais acompanharam discretamente o momento em que o caminhão foi preparado para a viagem, dentro do pátio da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), na capital paulista. Depois de carregar as verduras e o alho, o motorista parou o Mercedes próximo a um box. Minutos depois, um táxi estacionou ao lado do caminhão; o passageiro saltou do carro, abriu o porta-malas e começou a retirar as caixas com o dinheiro e colocá-las no baú do caminhão.

Após o flagrante na rodovia, em depoimento na sede da Polícia Federal em Curitiba já na madrugada do dia 3, o caminhoneiro disse que entregaria os balcões, o alho e as verduras em Foz do Iguaçu, e que desconhecia haver dinheiro no veículo. No dia seguinte à apreensão, o dono do caminhão, José Roberto Cardoso dos Santos, afirmou à PF que o dinheiro era “fruto de suas economias” e que seria utilizado para comprar um terreno em Paranaguá, litoral paranaense. Mas, para a Polícia Federal, a história real era outra: o dinheiro seria levado até Ciudad del Este, no Paraguai, vizinha a Foz, para abastecer uma grande central de lavagem de dinheiro do crime organizado brasileiro, incluindo tráfico de drogas, contrabando, comércio ilegal de ouro e assaltos.

O esquema era capitaneado pelo contador curitibano Clovis Miiller Júnior, radicado na Europa, e pelo doleiro paraguaio Julio Cesar Servian, dono de uma casa de câmbio em Ciudad del Este que servia de quartel-general do esquema (posteriormente, a central foi transferida para Pedro Juan Caballero, também no Paraguai, vizinha a Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul). O dinheiro sujo do crime era depositado em espécie em contas bancárias de dezenas de empresas fantasmas registradas em todo o país em nome de laranjas; depois de passar por várias contas dessas firmas, os valores saíam limpos na outra ponta (uma empresa em nome de um pedreiro movimentou 5,1 milhões apenas nos três primeiros meses de 2020). Um esquema semelhante ao da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo, investigado pela PF na Operação Rei do Crime. Parte do dinheiro também ia para contas no Paraguai (destino provável dos 12 milhões apreendidos em 2017) e parte era investida em criptomoedas, uma das especialidades de Miiller Júnior. Até cartórios eram utilizados para esquentar dinheiro: uma das empresas do esquema protestava no cartório uma suposta dívida por parte de outra firma do grupo, que em seguida pagava a dívida, dando lastro para aquele montante.

Entre 2015 e 2020, esse esquema movimentou ao menos 1,37 bilhão de reais: 827,8 milhões ingressaram nas contas e 827,6 milhões saíram, de acordo com estudo da PF. O fato de os créditos e débitos serem quase do mesmo valor não passou despercebido para os peritos da polícia: uma liquidez tão alta sem nenhum lastro em bens ou outro tipo de patrimônio imobilizado quebraria qualquer empresa idônea. Nesse período, houve depósitos em agências bancárias de mais de setecentas cidades de todo o Brasil.

 

A Polícia Federal topou com esse esquema no período em que investigava toda a rede de lavagem de dinheiro de Luiz Carlos da Rocha, o Cabeça Branca, preso em julho de 2017 na Operação Spectrum. Considerado o maior narcotraficante do Brasil, com patrimônio superior a 1 bilhão de reais, Cabeça Branca costumava movimentar dinheiro ilícito com doleiros conhecidos, como Alberto Youssef e Carlos Alexandre de Souza Rocha, o Ceará, que ganharam fama na Lava Jato por também lavarem dinheiro para políticos e empreiteiras. Mas, nos extratos bancários das contas de dez familiares de Cabeça Branca, incluindo três dos quatro filhos (Bruno, Rafael e Luíza) e dois irmãos (Carlos Roberto e Mara Lúcia), chamou a atenção da PF a grande frequência de depósitos em espécie e a alta movimentação financeira de alguns deles, além do recebimento frequente de dinheiro feito a partir do pagamento de boletos, uma forma de esquentar valores, segundo a Polícia Federal: o doleiro emite o boleto em nome da pessoa para quem ele quer que vá o dinheiro e em seguida paga o documento com dinheiro ilícito. Entre 2015 e 2019, os Rocha receberam 40,5 milhões de reais em suas contas bancárias.

A enfermeira Mara, por exemplo, recebeu 5,36 milhões de reais entre 2017 e 2021, parte em depósitos feitos em cidades próximas à fronteira com outros países, como Ponta Porã e Bela Vista, em Mato Grosso do Sul, e Rio Branco, no Acre. Além disso, Mara também recebeu dinheiro de empresa cujo contador é investigado por lavar dinheiro para o Comando Vermelho, no Rio, facção com quem Cabeça Branca mantinha negócios, segundo a Polícia Federal. A movimentação financeira suspeita dos Rocha continuou mesmo após a prisão do traficante.

Parte dos depósitos nas contas da família Rocha partiu de transferências bancárias de contas em nome de Clovis Miiller Júnior e de um contador de Curitiba, Gilson Menegatti, réu em ação penal por falsidade ideológica e crime contra a ordem tributária. Esses dois nomes também apareciam em transações bancárias de um testa de ferro de Cabeça Branca, cujo nome aparecia em planilha apreendida na casa do narcotraficante em Osasco, São Paulo.

Um terceiro membro importante do esquema entraria no radar da PF antes mesmo da prisão de Luiz Carlos da Rocha. Em 17 de maio de 2017, policiais rodoviários abordaram uma mulher na BR-116, a mesma onde meses depois seria preso o caminhoneiro com 12 milhões de reais, mas dessa vez na altura de Registro, no Vale do Ribeira. Os policiais suspeitaram do veículo porque, horas antes, câmeras do sistema de tráfego captaram o automóvel cruzando a Ponte da Amizade, na fronteira com o Paraguai. Escondido no painel do carro, os policiais encontraram vários papéis com a contabilidade do esquema feita na casa de câmbio de Servian em Ciudad del Este, com milhares de anotações de operações dólar-cabo, em que o doleiro recebe um valor em reais do cliente no Brasil e deposita quantia equivalente em dólares na conta desse cliente no exterior ou vice-versa. 

Em outra blitz, em 2020, a polícia paraguaia encontrou no escritório de Servian em Pedro Juan Caballero dezenas de outros documentos contábeis do esquema. Para a PF, o doleiro do Paraguai era subordinado direto de Miiller, que desde 2018 mora fora do Brasil: primeiro na Flórida, depois em Londres e atualmente em Estocolmo, na Suécia. Relatórios do Coaf apontam “movimentação atípica” de dinheiro nas empresas de Miiller Júnior no valor de 4 bilhões entre 2014 e 2018 (o valor inclui recursos de empresas que não são investigadas pela PF). Já o contador Menegatti cuidava da abertura das empresas de fachada.

Além da central em Pedro Juan, o grupo cogitou criar outro núcleo para armazenar dinheiro vivo em Botafogo, na Zona Sul do Rio, mas a ideia não prosperou. Era na capital fluminense que o grupo depositava boa parte do dinheiro vivo em nome de laranjas – possivelmente para lavar dinheiro das facções criminosas cariocas. Em março de 2020, um dos “office-boys” do esquema foi assaltado e perdeu os 50 mil reais que levava na mochila. “Levei só 150, tinha feito 100 no banco [depositado 100 mil em outro banco], saí do banco para ir pro outro, o cara me pegou”, disse ele em uma ligação telefônica captada pela polícia com autorização judicial. Em outra ocasião, outro “mula” do esquema forjou um sequestro-relâmpago e desviou 500 mil reais do esquema. “Peguei 500. Vai dá pra fazer alguma coisa, né.” O dinheiro acabaria apreendido pela PRF dentro da mochila dele durante viagem de ônibus entre São Paulo e Londrina, no Norte do Paraná.

 

A investigação de cinco anos da PF resultou na deflagração de duas operações na quinta-feira, dia 3: a Sucessão, sexta fase da Operação Spectrum, em que foram cumpridos mandados de busca em sete endereços de Londrina, todos ligados à família Rocha; e a Fluxo Caixa, que levou à prisão de catorze pessoas, incluindo Menegatti e José Roberto Cardoso dos Santos, o dono do caminhão onde foram apreendidos 12 milhões de reais em 2017. Servian já estava preso desde 2020 por conta de outra operação da PF, e Miiller Júnior está foragido. Todos os presos serão indiciados por associação criminosa e lavagem de dinheiro.

Viviani Fernandes Oliveira, advogada de Santos, alegou que o dinheiro apreendido pela PRF no Paraná tem origem lícita. “É um dinheiro que meu cliente ganhou em uma vida inteira de trabalho. O único ato ilícito que ele cometeu foi não tê-lo declarado à Receita”, disse. Para Walter Bittar, advogado de Carlos Roberto da Rocha, irmão de Cabeça Branca, a investigação da polícia repete fatos já investigados em outra operação da PF, a Caravelas, de 2005, em que Carlos foi condenado por tráfico internacional de drogas junto com o irmão. Já as defesas de Rafael, filho do traficante, e de Mara Lúcia, irmã dele, disseram que irão aguardar a conclusão do inquérito para se manifestar. Bruno, irmão dele, não quis se pronunciar. Os demais investigados citados nesta reportagem não foram localizados pela piauí e ainda não indicaram advogado no inquérito.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí