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    Desmatamento da Amazônia responde por quase metade das emissões brasileiras de gases-estufa Foto: Folhapress

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A Amazônia em alerta vermelho

Floresta pode atingir ponto de não retorno se o desmatamento não parar de imediato, conclui a mais abrangente compilação de estudos científicos sobre o bioma

Bernardo Esteves | 12 nov 2021_12h17
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Se o desmatamento nas áreas críticas da Amazônia não cessar já, a floresta pode atingir um ponto de inflexão a partir do qual não será mais capaz de se recuperar da degradação causada pela ação humana, com perdas irreparáveis para a biodiversidade, para o regime de chuvas no continente e para o clima global. O alerta é do Relatório de Avaliação da Amazônia, a mais abrangente compilação de estudos científicos já feita sobre o bioma, lançada na sexta-feira, último dia da Conferência do Clima de Glasgow, a COP26.

A recomendação dos cientistas é que os países amazônicos promovam a moratória imediata do desmatamento na Amazônia. “É preciso cessar o desmatamento e promover a restauração das áreas já degradadas”, resumiu a ecóloga Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília. Bustamante integra o comitê científico do Painel Científico para a Amazônia, que organizou o relatório, e é uma das palestrantes do evento de lançamento do documento, realizado durante a COP26. A cientista notou que, nas áreas mais degradadas da floresta, já nos aproximamos perigosamente do ponto de inflexão a partir do qual a recuperação será impossível. “Esse é um experimento sem réplica e sem volta, e que exige ação imediata.”

O relatório mostrou que a floresta atua como um verdadeiro ralo de carbono, sequestrando mais de 1 bilhão de toneladas de CO2 da atmosfera todo ano, o que corresponde à metade de todos os gases do efeito estufa que o Brasil emitiu no ano passado. No entanto, esse ralo – os cientistas preferem falar em “dreno” ou “sumidouro” – pode atuar na direção oposta, e passar a atuar como um emissor de gás carbônico, nas áreas mais degradadas, conforme já se vê em algumas frentes. “Se as emissões continuarem, esses drenos vão perder eficiência”, afirmou Bustamante. “Só vamos poder contar com a floresta no futuro se começarmos a conservar agora.”

O desmatamento da Amazônia responde por quase metade das emissões brasileiras de gases-estufa. Manter a floresta em pé é essencial se quisermos atingir a meta do Acordo de Paris de limitar o aumento da temperatura média do planeta em até 1,5°C até o fim do século. “Qualquer solução para as mudanças climáticas globais passa pela conservação da Amazônia, das suas florestas, e das suas pessoas”, disse a ecóloga Erika Berenguer, pesquisadora da Universidade de Oxford e coautora do trabalho.“Por isso Glasgow é o lugar para o lançamento desse relatório.”

 

O documento tem números superlativos, à imagem da própria Amazônia, maior floresta do planeta e que concentra a maior diversidade de espécies do globo. Trata-se de um volume de 1 301 páginas, elaborado por 227 cientistas e revisado por outros 86 especialistas e por 13 membros do comitê diretor. Mais de dois terços dos autores representam países da Bacia Amazônica, e vários deles são de origem indígena; há também autores vindos dos Estados Unidos e de países europeus.

O Painel Científico da Amazônia foi idealizado em setembro de 2019 pelo climatologista brasileiro Carlos Nobre e pelo economista norte-americano Jeffrey Sachs, durante uma reunião da Organização das Nações Unidas. Ali foi esboçada a ideia do relatório, que, à imagem dos relatórios do IPCC – o painel de cientistas da ONU dedicado à crise climática –, não traz achados novos, mas faz uma síntese do conhecimento disponível sobre o tema. “É muito poderoso ter num único documento um resumo de toda a crise humanitária, climática e ecológica pela qual a Amazônia está passando”, disse Erika Berenguer.

Diferentemente dos relatórios do IPCC, no entanto, o volume lançado pelo Painel da Amazônia é prescritivo, ou seja, faz recomendações de políticas públicas que podem ser adotadas pelos países amazônicos para abordar os problemas diagnosticados. Além da moratória no desmatamento, o relatório sugere a adoção de medidas que estimulem a chamada bioeconomia, ou seja, formas de exploração dos recursos da floresta que mantenham a mata de pé e permitam explorar seu potencial biotecnológico. O documento recomenda ainda a restauração das áreas já degradadas, mas deixa muito claro que o ideal é manter a floresta em pé. “Plantar árvores não é a melhor solução para a Amazônia”, disse Berenguer. “Em termos ecológicos, a melhor solução é não desmatar.”

As ações recomendadas pelo relatório sublinham a importância do envolvimento da população local. “Não tem plano para a Amazônia que não passe pela sociedade civil e, sobretudo, pelos povos amazônicos, entendidos na sua amplitude, o que envolve não só os povos indígenas, mas também as comunidades locais e a Amazônia urbana, que perdemos muitas vezes de perspectiva”, lembrou Mercedes Bustamante. “Temos que empoderar as vozes que estão trazendo soluções que vêm de dentro, e a COP mostrou isso de forma exemplar.”

O relatório é estruturado em 34 capítulos que abrangem tanto a perspectiva da biologia, geologia, hidrologia e outras ciências naturais sobre os sistemas amazônicos quanto uma abordagem histórica, sociológica e econômica da ocupação da região, incluindo uma discussão das causas e dos impactos do desmatamento e uma proposta de iniciativas que podem romper com essa prática.

O arranjo inicial previa encontros presenciais entre os autores de cada capítulo, que acabaram feitos de forma remota em função da pandemia. “Muitos coautores nunca se viram pessoalmente, mas conhecem a cozinha dos outros perfeitamente pela tela do Zoom”, disse Erika Berenguer, que é líder de um dos grupos de trabalho temáticos, ao lado de uma pesquisadora colombiana, e participou da redação de seis capítulos. “Foi muito mais difícil fazer um processo criativo e colaborativo a distância. Até agora não sei como conseguimos.”

* A hospedagem do repórter em Glasgow foi financiada pelo Instituto Clima e Sociedade.

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