Imagem obtida pelos pesquisadores mostra a estrutura de uma pirâmide de 22 metros de altura construída pelo povo Casarabe, que habitou a Amazônia boliviana entre os anos 500 e 1400; o assentamento de Cotoca tinha o tamanho da cidade de Bonn no século XVII Heiko Prümers/Deutsches Archäologisches Institut
Amazônia pré-colombiana tinha “cidades” com pirâmides e estradas
Nova tecnologia revela a existência de uma rede de assentamentos com arquitetura monumental na Bolívia
A existência de uma estrutura urbana em plena Amazônia, antes mesmo da chegada dos colonizadores europeus, foi anunciada esta semana por pesquisadores liderados pelo arqueólogo alemão Heiko Prümers. Os cientistas mostraram que na região de Llanos de Mojos, na Bolívia, havia um tipo de urbanismo de baixa densidade, com dezenas de assentamentos com arquitetura monumental, conectados por estradas. A descoberta contraria a visão – por muito tempo dominante na arqueologia – de que a floresta tropical não tinha sido ocupada por sociedades complexas no passado. “Ninguém acreditava que existisse esse tipo de assentamento na região amazônica”, disse Prümers à piauí.
Publicado nesta quarta (25/05) na revista Nature, o estudo reúne mapas que revelam a estrutura tridimensional das grandes pirâmides, plataformas e montículos construídos com terra, sem uso de pedras. As construções foram feitas pelo povo Casarabe, que habitou aquela região da Bolívia entre os anos 500 e 1400. Os assentamentos foram abandonados antes da chegada dos espanhóis, por motivos desconhecidos. Desde então, as estruturas sofreram erosão e foram cobertas por vegetação, mas ainda estão de pé e parte delas foi visitada pelos arqueólogos.
A existência dessas estruturas que hoje fazem parte da paisagem foi revelada por uma nova tecnologia capaz de mapear o relevo daquela região, mesmo em áreas cobertas por floresta. Essa tecnologia é conhecida pelo nome Lidar, acrônimo em inglês para “detecção e alcance da luz”, e revolucionou a arqueologia desde que passou a ser adotada, há pouco mais de dez anos. Embarcada em algum veículo aéreo, a ferramenta envia milhares de pulsos de laser em direção ao solo, dos quais alguns são capazes de atravessar a copa das árvores. O tempo que leva até serem refletidos de volta permite calcular a distância até o solo, e a medição de um grande número de pontos forma um mapa topográfico da área sobrevoada. “Você elimina a floresta sem precisar cortar as árvores”, comparou Prümers.
Pesquisador do Instituto Arqueológico Alemão, Prümers faz escavações na Amazônia desde os anos 1990. Com base nesses estudos, ele definiu as áreas que seriam sobrevoadas pelo helicóptero com o Lidar embarcado. Escolheu seis localidades no sudeste de Llanos de Mojos, numa região em que a vegetação é de transição entre savana e floresta. O alemão contou que a captação de dados foi feita ao longo de cinco dias no final da estação seca, quando algumas árvores tinham perdido suas folhas, o que aumentava a eficácia da ferramenta. O sensor mapeou uma área total de 204 km2.
As imagens mostraram que havia assentamentos de tamanhos diferentes conectados entre si por uma rede de estradas e canais. Dois assentamentos maiores se destacavam dos demais. Prümers já os tinha visitado antes, mas não tinha ideia da extensão total ou da sua importância para a cultura Casarabe. “Supúnhamos que esses sítios fossem grandes, mas quando vimos sua extensão nas imagens de Lidar ficamos perplexos”, disse o alemão.
Um dos grandes assentamentos é o sítio de Cotoca, no qual havia uma pirâmide de 22 metros, o equivalente a um prédio de sete andares, além de dezenas de montículos e plataformas menores. O sítio era protegido por muralhas e conectado à laguna San José por um canal de 7 km de extensão. Estava no centro de uma área de 500 km2, cercado por todos os lados de sítios menores, vários dos quais eram desconhecidos pelos arqueólogos. Em alguns deles havia reservatórios de água que talvez fossem usados para criar peixes ou tartarugas (os arqueólogos sabem também que os Casarabe plantavam milho e outros cultivos).
“Se você sobrepuser o mapa do sítio de Cotoca com o mapa de Bonn no século XVII, ambos têm quase o mesmo tamanho”, disse Prümers. “Não chamamos [Cotoca] de cidade, porque há outros fatores que seriam necessários para se considerar uma cidade no sentido tradicional”, continuou o arqueólogo. Mas o alemão discorda da definição, que considera colonialista. “[Cotoca] tem tudo para ser chamado de cidade: é um assentamento imenso, rodeado de uma estrutura defensiva, com um núcleo central onde há um centro cerimonial cívico ou administrativo. É claro que é uma cidade.” No artigo da Nature, porém, Prümers e seus colegas usam uma expressão mais conservadora e descrevem o que encontraram como “um tipo de urbanismo tropical agrário de baixa densidade”.
Eduardo Neves, um especialista em arqueologia amazônica da Universidade de São Paulo que não teve envolvimento com o estudo, disse não se incomodar com o termo “cidade” para designar os assentamentos encontrados na Bolívia. “O checklist de uma pólis grega talvez não funcione para explicar o que temos ali”, ponderou. “Mas se pensarmos que são assentamentos de expressão territorial muito grande, que têm certa especialização no uso do espaço e foram ocupados durante décadas ou mesmo séculos, faz sentido pensar em cidades.”
As estruturas erguidas em Cotoca não deixam a desejar em relação à arquitetura monumental em pedra feita por outros povos que viveram na mesma época. Um cálculo feito pelos pesquisadores mostrou que os Casarabe precisaram mobilizar 570 mil metros cúbicos de terra para construir as grandes estruturas mapeadas naquele sítio – número dez vezes maior que o volume empregado na construção da maior estrutura erguida pelos Tiwanaku, povo que viveu nos Andes bolivianos na mesma época.
Neves lembrou que os Tiwanaku foram, junto com os Wari, os primeiros povos que, nos Andes, começaram a se organizar na forma de estados. Na mesma época – na segunda metade do primeiro milênio depois de Cristo –, começaram a surgir assentamentos estruturados nas terras baixas da Amazônia. “Essa foi uma época de mudanças sociais profundas na América do Sul, que aconteceram tanto nos Andes quanto na Amazônia”, disse o arqueólogo.
A descoberta da arquitetura monumental dos Casarabe joga uma pá de cal na ideia de uma Amazônia incapaz de sustentar ocupações densas ou sociedades complexas no passado profundo. Essa foi a imagem predominante para os arqueólogos da região no século XX, fruto em parte de trabalhos conduzidos pela arqueóloga norte-americana Betty Meggers e por outros colegas. “Agora está claro que sociedades complexas podem se desenvolver em ambientes tropicais tanto quanto em qualquer outra parte do mundo”, disse Prümers.
Não é a primeira vez que pesquisadores acham assentamentos parecidos com cidades na Amazônia. Em 2008, num trabalho feito em parceria com colegas brasileiros e norte-americanos, o arqueólogo Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, identificou no Alto Xingu o que eles chamaram de uma forma de “urbanismo amazônico pré-colombiano”. Dentre os indícios encontrados por eles estavam centros cerimoniais com grandes praças que eram conectados por estradas a vilas muradas e aldeias.
A descoberta feita na Bolívia confirma o grande potencial da tecnologia Lidar para a arqueologia em regiões cobertas por florestas. Na América Central e do Norte, a ferramenta já tinha sido usada para descobrir redes de estradas e cidades construídas pelos maias e outros povos. O primeiro levantamento feito com a tecnologia na Amazônia brasileira mapeou sítios do Acre e foi publicado em 2020 pelo grupo do arqueólogo uruguaio José Iriarte, da Universidade de Exeter, no Reino Unido, coautor do trabalho publicado esta semana na Nature.
Eduardo Neves disse que o Lidar permite fazer em algumas horas um levantamento topográfico que, se fosse realizado em terra, levaria semanas ou meses. No segundo semestre, o pesquisador da USP pretende usar a tecnologia para mapear sítios arqueológicos em grandes áreas no Acre, Rondônia, Pará e Mato Grosso. Neves suspeita que assentamentos parecidos com os da Bolívia e do Alto Xingu existam na Ilha de Marajó e na região de Santarém, no Pará. “Quando pudermos fazer sobrevoos e ter mapeamentos mais precisos, teremos a confirmação”, afirmou.
O arqueólogo da USP acredita que a descoberta feita em Llanos de Mojosa dará origem a muitos estudos na região. “Cada imagem desse artigo tem material para pesquisa arqueológica para um monte de gente nos próximos vinte ou trinta anos”, avaliou Neves. Aos 64 anos e a um ano e meio da aposentadoria compulsória, Prümers só deve participar de parte desses trabalhos. Dentre outros pesquisadores que atuam na região e que devem dar continuidade aos trabalhos, está a arqueóloga boliviana Carla Jaimes Betancourt, pesquisadora da Universidade de Bonn e coautora do artigo. Na avaliação de Neves, a publicação dos resultados numa revista de grande prestígio representa a coroação das décadas de dedicação de Prümers ao passado profundo da região. “Heiko é o melhor arqueólogo de campo que temos na Amazônia.”
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