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    Antônia, então presidente da Companhia de Eletricidade de Brasília, em reunião com editores do Correio Braziliense Foto: F. Gualberto/CB/D.A Press

despedida

A dona do caderno

Secretária de Tancredo Neves, dona Antônia foi uma guia acidental da transição democrática

Plínio Fraga, do Rio de Janeiro | 10 out 2024_10h34
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O presidente que preferia ser poeta ainda estava se acostumando à cadeira no Palácio do Planalto quando recebeu uma comitiva de parlamentares. Reclamavam da escolha de um político para o segundo escalão de um ministério. “O que posso fazer? O nome dele está no caderno da dona Antônia”, justificou José Sarney. A resposta, 39 anos depois de proferida, pode soar como um código obscuro. Era, na verdade, uma afirmação simples e literal: as anotações de Antônia Gonçalves de Araújo, secretária-executiva da Presidência da República, tinham força de ordem. Os parlamentares se resignaram, e ali se frustrou o que poderia ser a primeira crise política da Nova República.

Sarney e Antônia se sentaram frente a frente pela primeira vez, na noite de 15 de março de 1985, uma sexta-feira, depois de um dia atribulado e crítico. Atribulado porque Sarney empossara 28 novos ministros, dando início ao primeiro governo democrático desde o golpe de 1964. Crítico, porque nenhum deles havia sido escolha sua. Eleito vice-presidente pelo Colégio Eleitoral em janeiro, o maranhense imaginou que o cargo não lhe exigiria muito. Teria tempo de sobra para escrever poemas e romances, enquanto o trabalho duro ficaria por conta do presidente eleito, Tancredo Neves. Não foi o que aconteceu. Às vésperas da posse, no dia 14 de março, Tancredo foi internado em estado grave, com fortes dores abdominais. Sarney precisou assumir como presidente interino. Não dormiu na noite de quinta para sexta-feira. Na conversa com Antônia, disse, poeticamente, que ainda estava com “olhos de ontem”.

Catapultado à presidência, Sarney passou a recorrer cada vez com mais frequência ao caderno de Antônia. Aos 52 anos na época, ela havia se tornado o braço direito de Tancredo, acompanhando-o em todos os cargos que ocupou. O caderno dela tornou-se a Bíblia à qual Sarney recorria quando estava na dúvida sobre como proceder – o que incluía desde a distribuição de postos no segundo escalão até promessas de apoio a projetos de lei. O presidente interino pensava que o titular se recuperaria em, no máximo, duas semanas.

“Sempre fui metódica, organizadinha. Tomava nota de tudo, num caderno de capa dura que carregava. Às vezes, Tancredo me pedia para anotar. Às vezes, anotava por achar que seria importante. Frequentemente acontecia de uma anotação contradizer outra – ou porque Tancredo havia mudado de opinião, ou porque havia prometido a mesma coisa para pessoas diferentes”, relembrou Antônia, numa entrevista que concedeu a mim em 2013.

Ela gargalhou quando mencionei uma frase de Ernesto Geisel sobre aquele período: “A dona Antônia tinha a lista de ministros. Entre eles, não sei quantos foram escolhidos por Tancredo e quantos pela própria dona Antônia.” Bobagem, assegurou a secretária-executiva. Tancredo havia antecipado a lista dos indicados num pronunciamento em 12 de março, três dias antes da posse. “Em 14 de março, o dia da internação, fiquei até tarde trabalhando para que Tancredo assinasse os documentos que empossavam todos os ministros. Ele assinou a minha nomeação também”, contou. “Para mim, Tancredo estava bem. Enviei tudo pronto à Granja do Riacho Fundo, no Distrito Federal, onde ele estava. Tancredo assinou a papelada e a encaminhou ao Palácio do Planalto. Quando eu soube que ele tinha sido internado, tomei o maior susto da vida.”

Entre 1971 e 1985, sempre na função de secretária-executiva, Antônia acompanhou Tancredo pelos gabinetes de deputado federal, senador, governador de Minas Gerais e presidente eleito. Tinha 38 anos quando conheceu o chefe, na época deputado pelo MDB, opositor da ditadura. Era 23 anos mais jovem que ele e trabalhava como servidora concursada na Câmara dos Deputados. O político, aos 61, acabara de assumir a Comissão de Economia da Casa.

Goiana, nascida numa fazenda em Pires do Rio, com ascendência indígena e portuguesa, Antônia cultivava um ar brejeiro, marcado pelo r puxado. Era magra, olhos castanhos, nariz arrebitado e cabelos pretos, curtos e repicados. Media 1,70 metro – o que lhe dava dez centímetros de vantagem em relação a Tancredo. Criada em família fervorosamente católica, com parentes ordenados padre e frade, Antônia era solteira em 1971. Tivera poucos namorados. “Só coisinha sem importância.” Segundo ela, percebeu que havia encantado o deputado ao receber dele um elogio pela elegância de suas roupas e de seu comportamento. “Naquele tempo tinha de ir arrumadinha. Camisa fina, saia longa, sapato alto, meia. Não podia usar calça jeans”, ela me explicou.

Antônia aceitou de pronto o convite de Tancredo para que o assessorasse. “Fui para a Comissão de Economia da Câmara, porque essa era minha especialização. Não sei nada de economia, mas foi a especialização que escolhi depois de ter me formado em letras.”

Tancredo sempre recebeu tratamento especial na Câmara, segundo a assessora. Quando ele deixou a presidência da comissão, o normal seria que Antônia permanecesse lá. Em vez disso, recebeu autorização para acompanhar as atividades do parlamentar. “Ele tinha privilégios. Já tinha sido primeiro-ministro. Não era uma pessoa comum, era muito acima da média.”

Quando Tancredo se elegeu senador, em 1978, a Câmara cedeu Antônia para seu gabinete na Casa vizinha. Quando foi eleito governador, em 1982, a Câmara lhe permitiu levar a assessora para Minas Gerais. Eleito presidente, ele nomeou Antônia para o cargo de secretária-executiva no Palácio do Planalto.

Em Brasília, Tancredo e a assessora passavam juntos ao menos 12 horas por dia. “Dr. Tancredo era só política. Eu cuidava do resto. Essa coisa de cartinha, de agenda, almoços, jantares, visitas. O povo não dava uma folga para ele. Coisa mais triste. De vez em quando, eu passava na casa dele, tarde da noite, e estava assim de gente. Ele gostava disso. Mas eu às vezes tinha de dispensar todo mundo”, ela contou. “Não ligava que falassem mal de mim. Era tanta gente em cima dele que não tinha tempo de respirar. Por que eles ficavam tão em cima dele? A gente chegava lá já tinha vinte deputados esperando. Enchia a sala, não tinha jeito. Era de matar. Eu estava sempre ali junto, para fazer isso, fazer aquilo. E para enxotar, porque sou meio mandona também.”

Político é um povo esquisito, concluía Antônia. Mas o presidente, aos seus olhos, era uma figura agradável. “Dr. Tancredo tinha uma conversa muito simpática. Lia os jornais cedo. Não mexia com correspondência. Só assinava. Depois comecei até a assinar por ele. Tinha um grupinho que fazia e batia [as cartas]. A gente fazia de conta que era ele, não tinha outro jeito.”

Depois de ser internado às pressas no hospital de Base, em Brasília, Tancredo foi transferido para São Paulo. O roteiro confirmou a frase de Magalhães Pinto, uma das mais tradicionais lideranças políticas de Minas, que dizia que o melhor hospital de Brasília era o aeroporto. Antônia permaneceu na capital, onde tinha jurisdição informal sobre a vida de Tancredo e suas decisões pessoais e políticas. Em São Paulo, Risoleta Neves, mulher do presidente eleito, e os filhos do casal assumiram o controle de tudo, para desgosto da assessora.

“Ele morreu porque foi para São Paulo. Se dr. Tancredo ficasse doente perto de mim, eu não deixaria aquele povo todo em cima dele”, ela dizia. “Em São Paulo, às vezes tinha vinte pessoas no quarto. Como os médicos deixaram? Morreu de infecção. Claro. A família não tinha costume com ele. A verdade é essa.”

Quando Tancredo completou três semanas internado, Antônia pediu ao embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima que a ajudasse a visitá-lo. Ninguém tinha coragem de pedir isso a Risoleta. Já circulava, embora entre poucos, que Tancredo e sua assessora viviam um romance secreto. Flecha de Lima inventou uma longa reunião com a família Neves num auditório do Hospital do Coração, em São Paulo. Aproveitando a brecha, Antônia pôde finalmente encontrar o chefe. Depois disso, não se viram mais. Ele estava medicado, mas ainda lúcido.

Tancredo morreu aos 75 anos, em 21 de abril de 1985. No velório realizado no Palácio do Planalto, destacavam-se uma coroa de flores (margaridas brancas com crisântemos rosa) e uma faixa assinada apenas com um prenome: Antônia. Quando chegou ao velório, a assessora acenou de longe para a família Neves, que estava isolada no terceiro andar do palácio.

O enterro ocorreu em São João Del Rei (MG), cidade natal de Tancredo. Lá, Antônia quis vê-lo pela última vez. Um segurança sugeriu que a impediria de se aproximar, alegando que havia sido vetada pela família. Antônia recorreu então a dois políticos amigos, Fernando Henrique Cardoso e José Aparecido de Oliveira. Os três caminharam de mãos dadas até o caixão. Ninguém teve coragem de barrá-los. Antônia chorou discretamente, viu o caixão descer ao túmulo e retornou sozinha para Brasília. Ainda estava em luto quando um emissário da família Neves a consultou sobre eventuais contas bancárias que Tancredo pudesse ter no exterior. Antônia disse desconhecer o assunto.

Dias depois do enterro, ela disse a Sarney que não fazia sentido continuar como secretária-executiva da Presidência. Renunciou ao cargo e, com ajuda de José Aparecido, governador do Distrito Federal na época, encontrou emprego em estatais da capital. Exerceu seu poder com gosto, metendo-se em confusões políticas contínuas, que envolviam desde o reajuste de salário dos eletricitários de Brasília até a disputa por indicações para a máquina federal.

Quando cansou, aposentou-se. Com vencimentos de cerca de 30 mil reais por mês, pagos pela Câmara, levou uma vida tranquila, morando sozinha num apartamento amplo e confortável. Dos tempos no poder, só se recordava quando ouvia a canção Dona, de Sá e Guarabyra, em especial os versos: “Umas vezes nossa amiga, outras nossa perdição/ O poder que nos levanta, a força que nos faz cair/ Qual de nós ainda não sabe que isso tudo te faz: Dona!”

 

Tancredo Neves foi casado com Risoleta por 47 anos, mas acumulou romances extraconjugais. Na década de 1950, montou um apartamento para uma de suas amantes prediletas, Ivone Silva Araújo, atriz do teatro de revista. Nos anos 1960, frequentava uma garçonnière na Rua Rodolfo Dantas, ao lado do Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, cujo custo dividia com amigos. Em Brasília, adotava códigos na porta e na estante de livros para alertar ao neto, Aécio, com quem dividia apartamento, de que precisava de privacidade.

Tancredo tinha uma queda por atrizes. Amigos diziam que ele se derreteu por Rita Hayworth quando a americana visitou Brasília, em 1962. Encantou-se com Tônia Carrero e enviou cartas e telegramas (respeitosos, mas esperançosos) para atrizes como Bruna Lombardi, Christiane Torloni e Maitê Proença.

Em 10 de junho de 2013, estive com Antônia, em seu apartamento na Superquadra Sul 112, na Asa Sul de Brasília. Eu estava escrevendo uma biografia de Tancredo Neves, que acabou sendo publicada quatro anos mais tarde, pela editora Objetiva. Ao final da conversa, enquanto Antônia me mostrava um quadro emoldurado na parede com sua nomeação assinada por Tancredo, eu contei que quinze pessoas, entre políticos próximos e familiares, haviam confirmado para mim que ela e Tancredo mantiveram por catorze anos um relacionamento amoroso. “Pronto. Você vai me rotular como a amante”, reclamou. Prometi que sequer usaria esse termo. Ela fez silêncio. Perguntei se Tancredo tinha sido o amor de sua vida. Ela bebeu um gole de chá e me disse: “Foi. Mas você só pode publicar que eu disse isso depois que eu morrer.”

O relacionamento de Tancredo com Antônia era um daqueles segredos que todos sabiam. Nos círculos políticos em Brasília, não havia dúvida. Nem mesmo entre os familiares. Ainda assim, nenhuma linha havia sido publicada sobre isso quando comecei minha apuração. Lançado o livro, em 2017, Antônia só reclamou do fato de não aparecer em nenhuma das fotos escolhidas.

Antônia morreu em Brasília, em 17 de setembro deste ano. Cerca de uma centena de amigos e conhecidos, muitos deles religiosos católicos, acompanharam o velório na Capela 6 do cemitério Campo da Esperança, na Asa Sul. O Correio Braziliense foi o único jornal a lhe dedicar um obituário.

Ela tinha 91 anos. Sofria de Alzheimer e tinha uma equipe de cuidadoras garantindo-lhe uma rotina digna. Um amigo próximo resumiu: “Descansou. Ela já tinha perdido o brilho dos olhos, aquela luz que emanou toda a vida.”

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