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    Rafa Moreira veio de Belém para o Rio há dois meses e, recentemente, teve obras expostas no ArtRio Foto: Arquivo Pessoal

depoimento

“Apagamos pessoas trans do nosso cotidiano”

Artista paraense conta como, ao retratar travestis, entendeu a própria identidade de gênero

Rafa Moreira | 12 out 2021_10h00
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Um dia, no trajeto de casa para a Universidade Federal do Pará (UFPA), Rafa Moreira decidiu descer numa parada de ônibus da BR-316 em Belém, ponto de prostituição de travestis e mulheres trans, para entender melhor a vida delas. Desde então começou a retratar os rostos daquelas mulheres em acrílico sobre tela. A partir dali, Moreira não só transformaria aquelas mulheres no assunto principal de seu trabalho como também se descobriria como travesti. Formada em artes visuais, há dois meses ela trocou a capital paraense pelo Rio de Janeiro para agarrar a oportunidade de uma residência artística. Oito de suas obras estão expostas na ArtRio, dividindo espaço com artistas consagrados. Os próximos passos são pesquisar e retratar travestis cariocas.  

Em depoimento a Lianne Ceará

 

Nasci em 1996, numa família não necessariamente conservadora, mas com muitas limitações relacionadas a questões de vida e sexualidade. O que eu entendia da questão de gênero naquela época era o que meus pais falavam, porque a tevê não mostrava. Crescemos com uma televisão que só mostrava gente branca, cis, e, quando mostrava pessoas trans, era com um fundo de piada ou de objetificação. Cresci assim, sem encontrar uma representação do que eu poderia ser. Naquele período eu me identificava como uma pessoa gay.

Sou a primeira pessoa da minha família a entrar numa faculdade: em 2016, coloquei os pés na Universidade Federal do Pará para cursar uma licenciatura em artes visuais. Eu não tinha contato com pessoas desse meio então; para mim, era algo super distante. Minha pretensão era me formar e atuar como professora do ensino básico. Em 2017, passei a me entender enquanto artista e comecei, inconscientemente, a utilizar a arte para expressar uma coisa que eu não sabia falar ou nomear, essa questão da transexualidade e identidade de gênero. Naquela altura, eu me identificava enquanto viado e ponto. Me neguei durante muito tempo, e essa era uma forma de também me odiar, sentia uma coisa muito ruim dentro de mim crescendo cada vez mais. 

Antes de entrar na faculdade, eu criticava muito as coisas. O percurso na Academia foi libertador pra me entender enquanto pessoa no mundo e enquanto artista. Recebi vários prêmios: menção honrosa no Salão de Artes Primeiros Passos do Centro Cultural Brasil-Estados Unidos (CCBEU), em 2016, terceiro lugar no ano seguinte e primeiro em 2019; em 2018, o Prêmio do edital Expressões Artísticas da Fundação Cultural do Pará. 

Quando comecei a morar só, entre o final de 2017 e 2018, no percurso para casa, meu ônibus sempre passava na BR-316 à noite, um ponto conhecido de prostituição das travestis. Eu sempre passava ali e pensava da janela: “Quem são essas pessoas? Será que é isso mesmo que eu entendo até agora?” Um dia não aguentei mais essa dúvida e desci do ônibus. As meninas foram super solícitas comigo, super acolhedoras. Passei a conversar com elas e entendi que não se tratava daquela caricatura que a sociedade estabelece logo cedo – eram pessoas com suas narrativas, suas dores e todo um sistema que as colocou ali. Perguntei para uma delas se existia uma outra forma de ser travesti que não fosse através da prostituição, ela me olhou como se eu estivesse perguntando: “Tem como o céu ser vermelho?” Era uma coisa muito absurda pra ela, e eu não entendia aquilo.

Comecei a incluir os rostos dessas mulheres nas minhas pinturas. Quando pensamos em arte, principalmente quando somos leigos no assunto, pensamos na Monalisa, de Da Vinci, em pinturas históricas de grandes mestres. Essas pinturas foram utilizadas como forma e concretização de poder de grandes faraós, burgueses, reis… Então, quem podia ter uma imagem de si na arte eram aquelas pessoas que importavam para a sociedade. Temos de questionar a hegemonia dessa história que representou poucas pessoas. Por isso sinto necessidade de retratar essas pessoas que retrato. Essas mulheres travestis precisam estar na história. Utilizo a arte e a pintura como forma de eternizar esses rostos, essas narrativas. 

Fizemos uma exposição com esse projeto, e muitas questões internas vieram à tona. Um garoto trans parou de frente para uma das minhas obras e ficou muito tempo olhando, admirando… Comentei com um amigo, e ele, que conhecia o garoto, disse que talvez ele tivesse gostado tanto porque ele se identificou, já que era trans. Naquele momento tudo ganhou outro sentido. Percebi que estava representando alguém e não estava de coração naquilo. Cresci num ambiente onde pensamos as pessoas trans como pessoas objetificadas, marginais, dignas de pena, toda aquela caricatura, mas depois dali, as coisas mudaram. Na arte encontrei abertura para pensar sobre aquilo e, consequentemente, me encontrar. 

A sociedade pensa o gênero a partir do sexo biológico. Não importa se isso vai te fazer sofrer ou não. Em 2018, fiz um autorretrato me colocando como uma das meninas ali da BR e aquilo foi uma libertação enorme. Comecei a me entender enquanto travesti, ser humano. Hoje não consigo separar ser artista de ser Rafa no dia a dia. A arte está ligada ao meu cotidiano como o meu cotidiano está ligado à arte: me preocupo muito em quebrar esse imaginário que nos marginaliza. Nas obras da exposição Registros Gerais, mostro rostos e pessoas que estão fragilizadas, por isso a técnica é acrílica sobre vidro. Sempre que retrato alguma das meninas, eu também estou me vendo ali. 

A gente precisa lembrar que, no Brasil, a grande maioria das mulheres trans e travestis já recorreram à prostituição ou estão na prostituição atualmente. Na BR-316, uma das meninas me disse assim uma vez, e guardei essas palavras comigo: “Rafa, você acha que eu escolheria estar aqui passando frio, nesse perigo, fazendo tudo isso? Não. Eu não escolheria, mas ninguém quer dar emprego para travesti, ninguém olha para a gente.” São pessoas que normalmente são expulsas de suas casas, de lugares de convivência, das escolas… Como ter acesso ao nível superior? A uma galeria de artes, por exemplo? Cadê as travestis no nosso cotidiano? Apagamos. A gente quer ocupar galerias, a academia, estudos culturais…

Vim pro Rio de Janeiro há dois meses, graças a um projeto de residência artística, o MT Projetos de Arte, que apoia artistas que não estão nos grandes centros de produção. Em breve, vou começar uma pesquisa com as travestis e trans daqui do Rio, quero reparar no que nos aproxima enquanto garotas trans do Rio e garotas trans do Norte do país. A gente sabe que, geralmente, as produções de fora do eixo Rio-São Paulo são apenas apagadas ou exotificadas. Em Belém temos um cenário artístico muito vasto, mas vou dizer que o mercado é o mesmo daqui? Não é. Através do MT, pude expor minha obra e ocupar esse espaço na ArtRio. Quando eu, travesti, artista, nortista, vejo minhas obras dividindo a exposição com nomes como Adriana Varejão e Marcela Cantuária, crio mais fôlego para tudo que ainda está por vir.

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