Ilustração de Carvall
As ilusões perdidas de Boris
Diante do avanço do coronavírus, Reino Unido muda de estratégia e, com atraso, se alinha à política europeia de confinamento
Anna Carolina Berlinck Assunção não estava doente, mas por alguns dias sofreu com um aperto no peito. Suíço-brasileira nascida e criada em Genebra, a jovem de 23 anos vive em Birmingham, no interior do Reino Unido, no campus da universidade local, onde estuda psicologia política das Relações Internacionais. Cercada de amigos e colegas das mais variadas nacionalidades – italianos inclusive –, observou ao longo das últimas duas semanas a movimentação intensa nas ruas e no campus. Duvidou: seria a estratégia do Reino Unido a melhor para combater a epidemia de coronavírus?
A resposta demorou, mas veio: não. Quem admitiu o erro estratégico, ainda que de forma indireta, foi o próprio primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em uma entrevista pela televisão que parou o país na noite de segunda-feira, 23.
Durante mais de três semanas o governo britânico vendeu à opinião pública uma ilusão: a de que seria possível evitar o colapso do sistema público de saúde, o NHS, mesmo sem uma política explícita de distanciamento social. A teoria da “imunidade de rebanho” – ou “herd immunity” – tinha como intuito garantir o melhor funcionamento da economia e dos negócios. Foi estimulada, em um primeiro momento, pelo mesmo homem por trás das estratégias de marketing do Brexit, Dominic Cummings. Além de ser o mais controverso conselheiro-chefe do premiê, Cummings é um leigo aficionado por temas de saúde, como epidemiologia. Além dele, o gabinete de Downing Street ouvia um grupo de experts científicos liderados pelo epidemiologista Chris Whitty e pelo especialista em biologia das células Patrick Vallance.
A imunidade de rebanho, uma teoria epidemiológica real, mas que não se aplica ao Covid-19 por falta de dados pregressos sobre o vírus, partia do princípio de que uma grande parte da população, em especial pessoas abaixo dos quarenta anos de idade, tem baixo risco de desenvolver sintomas graves caso contraiam o coronavírus – entre elas, a síncope pulmonar que causa parada respiratória e exige tratamento intensivo em respirador artificial. Pela teoria dos assessores de Boris Johnson, ainda que a transmissão do vírus não seja desejável, a imunidade dos mais jovens poderia proteger o conjunto da população em médio prazo.
Com base nessa teoria, houve uma ação deliberada: permitir que grande parte da população se contaminasse com o intuito de estimular a imunização natural e, segundo os experts, prevenir uma eventual catastrófica “segunda onda” de contágio, prevista para o próximo inverno europeu, a partir do fim do ano. “A vasta maioria da população tem sintomas leves. Construindo algum tipo de imunidade coletiva, mais pessoas estarão imunes à doença e reduziremos a transmissão, ao mesmo tempo protegendo aqueles que são mais vulneráveis. Essas são as chaves do que devemos fazer”, justificou Vallance em entrevista coletiva há dez dias.
A primeira estratégia britânica frente a uma das curvas de contágio em mais rápida aceleração – 6.724 casos e 336 mortes – se tornou pública no momento em que os países mais populosos da Europa Continental mergulhavam em políticas de restrição dos contatos sociais de forma a reduzir a propagação do vírus. Foi quando as dúvidas e a angústia de gente como a estudante Anna Carolina e de sua família cresceram. Na Itália, já transformada no epicentro da pandemia no continente europeu, e em países como a Espanha e a França, confinamentos cada vez mais estritos foram a forma escolhida para tentar achatar a curva de contágio. O oposto da política de Johnson frente ao Covid-19.
Três semanas depois, nada mais é como antes no Reino Unido. Relatórios científicos como o divulgado pelo prestigioso Imperial College London evocando, nos cenários mais catastróficos, até 250 mil mortos, ligaram o sinal de alerta. Outra advertência foi lançada por epidemiologistas baseados em uma coincidência das curvas britânica e italiana. Em 21 de março, cerca de duas semanas após o primeiro aumento no número de casos, o Reino Unido registrou o mesmo número de mortes que a Itália, 233, em 7 de março, 14º dia de epidemia naquele país. Diante da hesitação do governo britânico em adotar a quarentena, no final da semana passada o primeiro-ministro da França, Édouard Philippe, ameaçou fechar a fronteira com o Reino Unido alegando que o país tenderia a se transformar em um foco de transmissão para a Europa Continental.
Com o aumento das críticas, Boris Johnson anunciou na sexta-feira o fechamento de escolas, restaurantes, pubs, cinemas e teatros. Pouco a pouco – e em um ritmo lento, criticado por epidemiologistas –, o governo britânico vinha tomando as mesmas decisões drásticas adotadas na Europa Continental e caminhando para uma quarentena irrestrita. Nesta segunda, enfim, adotou o confinamento à italiana, com oito dias de atraso em relação à França e catorze em relação à Itália.
Para britânicos e estrangeiros, as idas e vindas e a lentidão de Londres em adotar as mesmas estratégias em vigor na Europa Continental foram fonte de angústia e incerteza. “O governo acrescentou restrições, mas estava meio relaxado. As pessoas não estavam fazendo quarentena e continuavam saindo. Os jovens de modo geral se acham meio invencíveis”, diz Anna Carolina Assunção. “Eu estava confusa. Vinha recebendo uma quantidade de informações enorme, de pessoas, do Instagram, do WhatsApp, das atualizações que recebo a cada hora da universidade.”
Na visão da estudante, como também para os britânicos ouvidos pela piauí, a maior angústia é uma eventual sobrecarga do sistema público de saúde. “Fico preocupada em saber se tem um suporte médico suficiente. Algumas pessoas dizem que o NHS é muito bom, outros dizem que ele não está preparado para uma grande quantidade de pessoas. Tudo é muito nebuloso”, reclama Anna Carolina, que até o final da semana passada hesitou entre permanecer em Birmingham ou juntar-se à sua mãe em Paris. Retornar ao Rio de Janeiro, onde vive seu pai, era a hipótese menos provável.
Grau semelhante de incerteza vivia Claudia Wordsworth. A ex-jornalista e produtora do Channel 4, hoje trabalhando como assessora política, mora em Londres com o marido, advogado, e duas filhas em idades escolares. Quando falou à piauí, levava seu cão para passear em um dos parques da capital. “Estamos realmente confusos. A comunicação é muito pobre, com mensagens diversas. Boris Johnson foi muito relutante em como as pessoas deveriam viver esses dias”, explica, referindo-se à resistência em determinar medidas compulsórias de distanciamento social. “É fascinante como os diferentes governos lidaram com a situação. Não sabemos em que medida o estado do NHS exige que ganhemos tempo. Ao que parece não temos staff suficiente, leitos, infraestrutura. O Brexit torna isso ainda mais complicado.”
Diante da estratégia hesitante do governo nas três primeiras semanas de epidemia, muitos britânicos preferiram se antecipar, optando por medidas pessoais mais drásticas. James Vaughan, 42, morador do sul de Londres, perto de Wimbledon, e pesquisador de marketing da gigante petrolífera BP, adotou o home office e só sai de casa para levar a mulher ao trabalho de carro e fazer compras essenciais – como na Europa Continental. “As estratégias mudam todos os dias. Onde moro as pessoas parecem ignorar o que está acontecendo. Minha mulher e eu adotamos proteções, mas as ruas estão cheias, as pessoas seguem agindo normalmente”, contou Vaughan antes da adoção da quarentena.
A estratégia britânica mudou porque a situação na Europa vinha se degradando e a imunidade coletiva gerou críticas entre especialistas e gestores de políticas sanitárias. Nas últimas duas semanas, a quarentena se tornou consenso europeu como estratégia para limitar o pico da transmissão, na prática o único meio de garantir a capacidade de atendimento de pacientes em estado grave em unidades de tratamento intensivo. Em caso de descontrole, a tendência seria a repetição do ocorrido na China e na Itália, onde os hospitais ficaram superlotados, e as equipes médicas foram obrigadas a escolher que pacientes poderiam receber respiradores artificiais e ter chances concretas de recuperação e cura, e quais morreriam.
O risco, dizem os experts, seria de o Reino Unido enfrentar a mesma espiral de mortes e multiplicação de casos da Itália e da Espanha. Com 6.077 mortos até ontem, a Itália se tornou o cenário dos pesadelos de todos os dirigentes políticos. O sistema de saúde está saturado e a economia será devastada pela paralisação generalizada do turismo e da indústria, que o primeiro-ministro, Giuseppe Conte, foi obrigado a decretar. Na Espanha, segundo país mais atingido, 2.696 pessoas já morreram – um número que cresce à razão de 30% a cada 24 horas. O confinamento será ampliado até 11 de abril.
Para Neil Ferguson, especialista em doenças infecciosas do Imperial College London, as decisões do governo ainda estavam no tempo certo ao longo da semana passada, mas mesmo ele já vinha defendendo que Boris Johnson não perdesse mais tempo em adotar medidas mais estritas sobre o contato social para evitar os cenários italiano e espanhol. “Creio que nós ainda estamos atrás da epidemia que vimos em outros países da Europa”, afirmou à rádio BBC o médico, que contraiu o vírus e entrou em confinamento. “Mas certamente não há tempo a perder.”
Outros experts de renome internacional foram menos complacentes e vieram a público exortar o governo de Boris Johnson a acelerar a estratégia o mais rápido possível e adotar o confinamento estrito como medida central da estratégia. Esse foi o caso de William Hanage, professor de Evolução e Epidemiologia de Doenças Infecciosas em Harvard. Em artigo no jornal The Guardian, o docente foi incisivo contra a lentidão da política adotada pelo Ministério da Saúde britânico até então. “Esta é uma pandemia que fará um grande número de pessoas doentes, e algumas delas morrerão. Ainda que a taxa de mortalidade seja possivelmente bastante baixa, uma pequena fração de um grande número ainda é um grande número. E a taxa de mortalidade poderá subir quando o NHS estiver saturado”, advertiu.
Hanage convidou o governo de Boris Johnson a adotar a mesma estratégia de Coreia do Sul, Cingapura, Hong Kong e Taiwan, que decidiram realizar testes em massa de forma a identificar não apenas doentes, mas portadores do vírus, de forma a reduzir a propagação do Covid-19. “Você não deveria ser o próximo após Wuhan, Irã, Itália ou Espanha. Nesse locais, os sistemas de saúde quebraram. Na Itália, escolhas entre quem deve ser salvo e quem vai morrer são reais.”
Como na Europa Continental, onde a União Europeia anunciou a liberação irrestrita dos déficits públicos nacionais para fins de sustento da economia, e onde o Banco Central Europeu (BCE) preparou um programa de recompras de títulos de dívidas públicas e privadas da ordem de € 750 bilhões, no Reino Unido o governo já se prepara para o impacto econômico de uma quarentena forçada. Na quarta-feira, o chanceler Rishi Sunak – equivalente ao ministro da Fazenda no Brasil – anunciou a liberação de £ 330 bilhões em empréstimos, além de outros £ 20 bilhões em programas de auxílio a trabalhadores e a grandes e pequenas empresas, de companhias aéreas a pubs. Como aconteceu na França e em outros países do continente, o Estado britânico prometeu arcar com até 80% dos salários de quem estiver em “desemprego temporário”.
Depois de uma década marcada pela austeridade pós-crise de 2008, Reino Unido e União Europeia parecem agora reunidos na constatação de que abandonar trabalhadores e empresas à própria sorte em meio a uma crise financeira maior pode ser um tiro no pé. “Nunca, em tempos de paz, nós enfrentamos uma luta econômica como essa”, justificou Sunak quando do anúncio das medidas, destinadas a dar a “todos os cidadãos” as ferramentas para sobreviverem à crise. “Este não é um tempo para ideologia e ortodoxia. Este é um tempo para ser enfático e corajoso.”
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