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questões literárias

As “mobilizações simultâneas” de junho de 2013

Em Treze: a política de rua de Lula a Dilma, Angela Alonso desmistifica algumas teses consagradas sobre a tomada das ruas

Fernando de Barros e Silva | 27 dez 2023_10h14
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Como já indica o subtítulo do livro, o primeiro achado de Treze: a política de rua de Lula a Dilma está na inversão de perspectiva. Em vez de ver junho de 2013 como ponto de partida de um roteiro que culminaria, cinco anos mais tarde, na eleição de Jair Bolsonaro, a socióloga Angela Alonso põe os olhos no retrovisor para acompanhar “como se chegou lá”. 

Na contramão da imensa maioria das análises, portanto, Alonso se debruça sobre a gestação, lenta, sinuosa, complexa e muitas vezes invisível que pariu nas ruas aquele bicho de sete cabeças, cuja paternidade é até hoje, mais de dez anos depois, motivo de discussões.

A tese da autora, que ela anuncia logo nas primeiras páginas – e trata de provar, amparada por uma pesquisa documental meticulosa e exaustiva –, é que junho de 2013 foi “várias mobilizações simultâneas”. Alonso resume sua tese na imagem do “mosaico”. À primeira vista pode parecer pouco, mas tem grande efeito desmistificador. 

Conforme o livro avança, vão se dissolvendo, ou se relativizando, quatro grandes linhas interpretativas sobre junho, formuladas ainda sob efeito do calor das ruas. Alonso as enumera: primeiro, a ideia de que as revoltas exprimiam expectativas crescentes da população, enunciada por Lula na frase “o povo tem pão e agora quer manteiga”. Em seguida, a avaliação de que as manifestações expressavam a “crise de representação” da política, ou a crise das engrenagens da democracia representativa. A essa leitura se associou uma terceira, de acordo com a qual as ruas haviam sido tomadas por uma “nova esquerda”, cujo horizonte utópico e energia social fazia lembrar Maio de 1968 ou mesmo a Comuna de Paris, de 1871 – de onde a expressão “jornadas de junho”, usada por intelectuais e jornalistas para descrever o que lhes parecia ser uma grande esperança. Por fim, a quarta tese citada – e desmistificada – por Alonso é a do “sequestro da mobilização de esquerda pela direita”, surgida mais para o fim daquele mês, quando a força do verde-amarelo havia se imposto nas ruas.

Ao defender que “as manifestações não configuraram um movimento social unificado, mas um ciclo de protestos, composto de muitos movimentos, de orientações distintas, agendas próprias (e mesmo opostas), que foram às ruas em simultâneo, numa justaposição”, a autora de Treze acrescenta que a única coisa em comum entre todos era o “alvo”: “A contestação às políticas dos governos do PT.”

O livro então se ocupa de rastrear detidamente as insatisfações que foram tomando corpo, à esquerda e à direita, ao longo dos governos petistas, organizando-as em três grandes campos, ou “zonas de conflito”: em torno da redistribuição de recursos públicos (programas de transferência de renda, por exemplo); em torno dos princípios de orientação moral da vida coletiva e do regramento da vida privada (corrupção e aborto, por exemplo); e em torno dos limites do uso da força pelo Estado (políticas de segurança pública e de reparação dos crimes da ditadura, por exemplo).

Pouco visíveis ou pouco expressivos durante os mandatos de Lula, os protestos públicos ganharam tração sob Dilma. A rua, diz a autora, “que fora exclusividade da esquerda por décadas, passou a ser disputada pelo lado direito”. Um dos méritos do livro é mostrar como foi se formando, por diferentes caminhos, já ao longo da primeira década do século, o que Alonso chama de “campo patriótico”. A imprensa e os estudiosos tiveram dificuldade em identificá-lo mesmo durante as manifestações de junho. Cito uma passagem que ilumina isso: 

“Desconsiderados como parte de um campo político legítimo e complexo, movimentos, novos e antigos, protestando à direita do governo ficaram sem nome, nem crédito. Dado por amorfo, nem se buscaram suas lideranças, negligenciadas tanto pelas autoridades nas negociações quanto nas entrevistas de imprensa. O campo patriótico na rua desde o início do ciclo – e mesmo desde antes de 2013 – foi o ponto cego das leituras de Junho. E seria seu ponto de fuga.” 

Às vésperas da conclusão do primeiro ano do terceiro mandato de Lula, a rua está em baixa, numa espécie de hibernação, depois da traumática tentativa de golpe de Estado em janeiro. Boa parte da atenção e da energia do governo e de outras instituições da república ainda se dedica a reparar os estragos daquele dia. Essa é uma ferida aberta no país que está longe de cicatrizar. Prestar atenção ao rumor das ruas, mesmo quando elas parecem não dizer muita coisa, é uma das lições que os democratas, agora mais do que escaldados, devem guardar deste belíssimo Treze

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