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    Onças sobreviventes encontradas durante a expedição Pantanais / Foto: Hugo Fernandes

diários do pantanal

As onças fênix do Pantanal

Na despedida da expedição pela região, equipe encontra 21 felinos de grande porte em área devastada pelo fogo

Hugo Fernandes | 06 out 2020_09h32
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O biólogo Hugo Fernandes chega ao último destino de sua expedição pelo Pantanal: o Porto Jofre, onde está a maior concentração de onças-pintadas do mundo. A região teve 85% de seu território devastado pelo fogo. Pelo caminho, as consequências dos incêndios são dramáticas: animais machucados, uma equipe exausta e muita fumaça. Mesmo assim, os pesquisadores e voluntários trabalharam incansavelmente para encontrar onças sobreviventes – ao todo, foram 21. A expedição Pantanais percorreu mais de 2 mil quilômetros de carro, avião e barco, que Fernandes narrou em cinco relatos, a pedido da piauí. Antes de deixar a região, o biólogo descreve a cena que resumiu o propósito do projeto: de longe, a equipe acompanha um filhote de onça, batizado de Luca – em meio a um cenário devastado, o animal resiste. Apesar de tudo, a fauna pantaneira continua viva – nos animais sobreviventes, nos resgatados pelas equipes e na parte do bioma que ainda está de pé.

(Em depoimento a Camille Lichotti)

Terça-feira, 29 de setembro 

 

O sol nasce com uma cor fortemente alaranjada, cena comum nos últimos dias, resultado da fumaça que insiste em pairar pelo céu. Partimos da fazenda Acurizal para a base do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense. Foram cinquenta minutos de navegação. Tomamos café com a equipe do Nuno Silva, que comanda os brigadistas do Prevfogo, formada por profissionais de carreira e contratados pelo Ibama e ICMBio. Ele nos pede uma foto oficial de toda a brigada e me diz que a esposa, bióloga, é minha fã. Eu queria ter dito à esposa dele que, na verdade, eu sou fã do marido dela – e de todos aqueles heróis brigadistas. 

O barco que nos levaria a Porto Jofre partiu do Parque Nacional. O que era para ter sido uma hora de voo se tornou quase quatro horas de barco. No caminho, incêndios. Muitos. Intensos. Por que escolhemos o Jofre para nossa última expedição? Porque foi lá que os incêndios atingiram a maior área do Pantanal, cerca de 85% da região foi incinerada. E também porque é lá que está a maior concentração de onças-pintadas do planeta. 

Nossa chegada ao Jofre foi recebida por um dos ícones do local, Ailton Lara. Hoje dono da pousada Jaguar Camp, ele é um pantaneiro que começou a vida como motorista e é um dos pioneiros no turismo de observação de onças no Brasil. O pantaneiro de sotaque carregado hoje fala inglês, espanhol e está aprendendo alemão. Na sua caminhonete, mantimentos e remédios veterinários para serem levados de barco de volta para o Parque Nacional. Por ter sido a região mais afetada e também pelo seu potencial turístico, o Porto Jofre recebeu muitas doações, que puderam ser distribuídas para outros locais do Pantanal. 

Não viemos para cá à toa, tampouco escolhemos o Ailton aleatoriamente. Nossa missão aqui é muito clara: procurar onças. Viemos para acompanhar de perto o trabalho de monitoramento de todos os indivíduos registrados aqui. Faltava só achar todo mundo. Ao meu lado, três das pessoas que mais fotografaram a espécie no planeta: Ailton Lara, o documentarista Lawrence Wahba, que integra a expedição, e Ernane Junior, fotógrafo cuiabano que usa o Pantanal como válvula de escape há 32 anos. A magia do Jofre se revelou logo na primeira hora de busca. O maior felino das Américas apareceu preguiçoso em uma árvore, sem se preocupar muito com a nossa presença. Ficamos em silêncio, acompanhando o silêncio dele. Seu sono trouxe um conforto a muitas de nossas dores.

Onça encontrada durante a expedição Pantanais / Foto: Hugo Fernandes

 

Nossa busca revelaria duas onças adultas vagando pelas margens da bacia do Rio Paraguai. Carregávamos lentes de longo alcance, que nos permitiram registrar algo maior do que enquadramentos perfeitos. O objetivo era também localizar ferimentos e queimaduras. O barco do Ailton já rumava para sua pousada quando fomos avisados por rádio de uma cena que ficará guardada para sempre na nossa memória. Os detalhes dela, eu conto no último dia – e vocês vão entender o porquê. 

 

Quarta-feira, 30 de setembro 

 

O dia anterior havia sido uma espécie de anestésico para todo o sofrimento que estávamos passando nos últimos dias. Como todo anestésico, o efeito dura pouco. De manhã saímos de carro e de barco para conferir a situação caótica. Mas um consolo veio até rápido. Outra onça. Percebíamos a mensagem que Porto Jofre nos dava: a resiliência do Pantanal. Na pousada do Ailton conhecemos alguns dos heróis do bioma. Liderados pela médica veterinária Carla Sássi, o Grupo de Resgate de Animais em Desastre (GRAD) atuava havia dias no local. Eles estavam conduzindo resgate e transporte de animais feridos, reposição de água, frutas e legumes nas ilhas artificiais de alimentação, montadas por eles ao longo da Transpantaneira. O Jaguar Camp virou uma espécie de base de operações do grupo, assim como outras hospedarias no entorno. Instituições como Ampara Silvestre, Ecotrópica, Reprocon e SOS Pantanal se dividiam nas atividades de apoio à fauna local. Além dessas, vários voluntários de diversos estados do país. Uma das biólogas é Cecília Licarião, minha companheira. Ela já estava no Jofre fazia dez dias – não nos víamos havia 22. A loucura da rotina de trabalho e os protocolos da Covid-19 não permitiram muito contato. No meio da tarde, nova correria na pousada. Uma onça ferida foi avistada mancando em uma das ilhas do Rio Piquiri. Uma equipe sai de barco à sua procura. Saímos em outro. Conseguimos ver uma onça saudável na beira do rio, mas a outra, que estava ferida, não foi mais avistada. Interessante notar que a que vimos tinha as mamas cheias de leite e entrou em uma toca para se esconder. Mais um filhote vem para tentar recuperar o equilíbrio pantaneiro. Mas será que haverá equilíbrio pantaneiro para esse filhote? 

Quando achamos que o dia havia acabado, surge um alerta de incêndio em uma das pontes da Transpantaneira. Acompanhamos a equipe do GRAD, que foi ao local auxiliar um carro da Força Nacional que já tentava conter a situação, sem sucesso. Como todos os dias, fomos dormir tarde e exaustos. E como todos os dias, sabíamos que teríamos que acordar três ou quatro horas depois. 

 

Sexta-feira, 2 de outubro 

 

Último dia da Expedição Pantanais. Contando o tempo que fiquei na Mata Atlântica antes de vir para cá, lá se vai quase um mês de campo sem um único dia de folga. A manhã é reservada para organizar a viagem. Trago só duas bagagens comigo: a mochila com os equipamentos de foto e vídeo e uma mala rígida com todas as roupas e acessórios para o campo. Embarquei para o Pantanal com 21 kg cravados, o limite para a gratuidade no despacho junto à companhia aérea. A sensação que dá é que devo pagar por 2 kg excedentes na volta, em virtude da poeira acumulada. Nenhuma condição de lavar roupa por aqui. 

Malas terminadas, mas o trabalho não. Depois do almoço, junto-me à equipe do GRAD para um monitoramento de 110 km na Rodovia Transpantaneira, estrada parque não asfaltada que corta o Pantanal Norte. Na ida, monitoramos a situação de algumas lagoas que, embora ainda tivessem água, certamente iriam secar dali a alguns dias. Esse momento é importante para identificar a resposta de cada animal diante do evento, a partir do conhecimento prévio sobre a espécie. Aves aquáticas geralmente possuem boa capacidade de voo até áreas mais propícias; jacarés possuem a capacidade de se enterrar e estivar (fazer a estivação, algo parecido com hibernação que os répteis fazem em altas temperaturas) durante um bom tempo, mas a quantidade de alimento ingerida antes dos incêndios é fundamental para determinar esse sucesso. Ariranhas e principalmente lontras não conseguem andar por grandes distâncias em solo ainda com brasas; capivaras perdem as plantas mais nutritivas de sua dieta em pouco tempo de estiagem. Cada detalhe é fundamental para estabelecer a melhor ação de manejo daqui para frente. 

A equipe do GRAD faz uma oração junto ao pé da estátua de São Francisco de Assis, padroeiro dos animais, na margem da rodovia. Um minuto de silêncio só para nós, já que os pássaros resolvem compor a trilha de fundo, depois substituída pela viola do Ailton Lara, que puxou Tocando em Frente, do Almir Sater e Renato Teixeira: “Ando devagar, porque já tive pressa e levo esse sorriso porque já chorei demais.” Chorei, de fato. 

Voltamos já com o céu escuro e me preparo de vez para deixar o Pantanal. Nas redes sociais, estão me chamando de herói. Agradeço, mas recuso o título. Heróis são os brigadistas, sempre em baixo número, que arriscam morrer incinerados por pouco mais de um salário mínimo, quando não são voluntários. Heróis são o homem pantaneiro e a mulher pantaneira, que estão lutando não só para manter o lugar onde moram, como também a cultura que os define. 

Prometi contar a cena que ficará lapidada para sempre em minha memória: um filhote de onça-pintada atingido pelas chamas do Pantanal. A escolha não é à toa. Há uma luz para além da tristeza. Luz dá origem ao nome Luca, dado pelo Lawrence Wahba a esse filhote que teve seu primeiro encontro com humanos registrado pela nossa equipe em Porto Jofre. Essas fotos representam a mensagem que eu quero passar sobre a fauna do Pantanal. Sim, ela sofreu bastante. Assim como Luca, vai demorar para curar todas as feridas, mas está viva. É forte e resiliente, assim como o Pantanal. Longe de mim minimizar os impactos dos incêndios. Há uma fauna invisível que não recebe um décimo da atenção de uma onça e que foi dizimada aos milhões. Mas precisamos bradar aos quatro ventos que O PANTANAL NÃO MORREU. Ele está vivo em cada passo de Luca, nos animais que resistiram aos incêndios, naqueles salvos pelos biólogos, médicos veterinários, brigadistas e voluntários e principalmente naqueles que ainda estão nos 75% do bioma que está de pé. Foram contabilizadas 21 onças vivas no Jofre, e Luca aparenta estar muito bem. Esse é só um exemplo do trabalho árduo que se faz por aqui.

Luca, onça encontrada pela expedição Pantanais / Foto: Hugo Fernandes

 

Agimos nos locais que os governantes costumam esquecer. E assim faremos, enquanto houver motivos e enquanto houver Luz… Enquanto houver Luca.

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