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    Fátima Silva e o neto Gabrie, de 11 anos - Intervenção de Paula Cardoso sobre foto de arquivo pessol (Fátima Silva)

questões de saúde

Aula de risco

Reabrir colégios, como sugeriu Bolsonaro, aumenta perigo de contaminação para 5 milhões de brasileiros de mais de 60 anos que moram com crianças em idade escolar

Igor Soares e Plínio Lopes | 07 abr 2020_08h02
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Aposentada há três anos, a moradora do Complexo do Alemão Fátima José da Silva, de 64 anos, corre risco dobrado diante da covid-19. Faz parte do grupo de risco pela idade, mas também por estar no período pós-operatório de uma cirurgia cardíaca. “Estou mais do que de quarentena. De quarentena pela operação e pelo vírus”, conta Silva. Nascida e criada no Rio de Janeiro, ela vive com a nora e dois netos, de 9 e 12 anos. A casa tem sala, cozinha, um banheiro e dois quartos, o que obriga Silva a dormir junto com um dos netos. 

Silva está entre os 5 milhões de brasileiros com mais de 60 anos que vivem no mesmo domicílio que crianças em idade escolar. Um levantamento feito pelo professor e pesquisador da Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/EESP) Vinicius Gomes de Lima, a pedido da piauí, com base nos dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc), mostra que aproximadamente 15% de todos os brasileiros com mais de 60 anos dividem a residência com crianças de 6 a 17 anos, em idade escolar. Se, como pediu o presidente Jair Bolsonaro no pronunciamento de 24 de março, as escolas forem reabertas, o risco para esses brasileiros será ainda maior. Normalmente, as crianças não desenvolvem sintomas mais graves, mas ainda podem ser transmissores silenciosos – ou seja, podem transmitir o novo coronavírus mesmo sem apresentar sintomas. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), 188 países continuam com as escolas totalmente fechadas. Mais de 1,5 bilhão de estudantes (91% do total) estão sem aulas ao redor do mundo. No Brasil, são mais de 52,8 milhões.

A região Norte do país tem, proporcionalmente, o maior número de idosos compartilhando lares com crianças. No Amapá, cerca de 40% das pessoas com mais de 60 anos convivem com crianças em casa. No Amazonas são 32%, e em Roraima, 30%. Os menores índices são das regiões Sul e Sudeste – 10,9% e 11,6% respectivamente. Em São Paulo, 11% dos 7,8 milhões de idosos vivem com crianças. No Rio de Janeiro também são 11%. De acordo com o professor responsável pelo levantamento, o convívio de crianças e idosos é uma informação relevante que precisa ser levada em conta antes de qualquer decisão. “É importante olhar para os dados na hora de formular políticas públicas. Ou seja, não dá pra falar em manter aulas ou reabrir escolas, por exemplo, sem entender todas as dimensões da decisão”, afirma Lima. 

Em caso de volta às aulas, a rotina na casa de Silva mudará drasticamente. Com a mãe trabalhando durante o dia, é a avó que cuida das crianças. “Eles ficam comigo, não tem outro jeito. Não dá pra soltar na rua”, explica. A casa com dois quartos para quatro moradores também dificulta o isolamento. “Eu tenho meu quarto, mas um deles dorme comigo. Eu teria que botar um dos dois no meu quarto e me isolar na sala”, conta Silva. “Seria um problema se acontecesse isso”.

O Complexo do Alemão, um dos maiores complexos de favelas do Rio, é composto por quinze comunidades e tem pouco mais de 60 mil habitantes, sendo cerca de 4.200 com mais de 60 anos, de acordo com o Sabren (Sistema de Assentamento de Baixa Renda), sistema de monitoramento do Instituto Pereira Passos, órgão da Prefeitura do Rio. Ainda segundo o IPP, nas mais de 838 comunidades do Rio vivem cerca de cem mil idososmas essa população tende a ser maior, de acordo com o instituto, já que os resultados são baseados no Censo do IBGE de 2010. Na quarta (1º), o Alemão registrou o primeiro caso de coronavírus, segundo o painel de monitoramento da Secretaria Municipal de Saúde do Rio.  

A volta às aulas seria mais um problema em meio a tantas dificuldades para seguir as recomendações das autoridades de saúde. Os moradores afirmam que, a depender da localidade, a falta de água é constante. Casas situadas no alto do morro são as que mais sofrem com o desabastecimento. O saneamento básico é precário. A médica Rayra Spindola, residente no Programa Medicina de Família e Comunidade, da Prefeitura, aponta que um dos maiores desafios é pedir afastamento social para moradores em condições precárias de habitação. “A gente consegue isolar famílias, mas indivíduos, não. Tem muita casa na favela com dez pessoas morando em um cômodo só, é tudo muito junto”, explica.

As incertezas sobre a doença já afetaram o atendimento na unidade básica de saúde do Alemão. “Já atendi alguns idosos que estão evitando ir à clínica. Não só eles, mas os outros moradores, em geral, acham que o vírus está circulando lá e que é um lugar muito mais fácil de se contaminar”, revela. Nesse campo de batalha, a desinformação toma o lugar do conhecimento científico. “Muitos idosos não têm certeza se é um vírus, se é uma bactéria. Uma parte acha que é uma gripe como qualquer outra.” Ainda segundo Spindola, há dificuldade em explicar todos os riscos, e muita gente ainda acredita que basta rezar ou ter fé para se livrar da doença.

Edson Marcílio de Souza, aposentado de 60 anos e morador do Alemão, complementa a renda trabalhando como motorista de transporte escolar. Há mais de duas semanas sua rotina mudou. Hipertenso, já enfrentou um câncer no intestino e tem evitado se expor a mais riscos. Obedece ao distanciamento social e cumpre a quarentena em casa, onde mora com a filha e a esposa de 59 anos, que é diabética. O aposentado conta que esse tempo sem exercer sua atividade econômica já está afetando o orçamento da família. Com a suspensão das aulas presenciais na rede municipal de educação, mais prejuízos. “As mães já mandaram mensagem dizendo que não vão me pagar. E elas estão certas, porque eu não estou prestando o serviço”, diz.

Até domingo (5), 486 pessoas haviam morrido por conta da covid-19 no Brasil, e 83% delas tinham mais de 60 anos. Cerca de 79% também tinham alguma doença pré-existente, como problemas no coração ou diabetes. E, quando o isolamento reflete na economia, os moradores de favela sentem diretamente os impactos da crise. Estudo do Data Favela aponta que, de cada dez famílias que vivem em comunidade no Brasil, sete já perceberam alguma diminuição na renda neste período de quarentena. A pesquisa revela, ainda, que 97% dos moradores de favela já mudaram suas rotinas. 

Nas comunidades do Rio, grupos e associações locais realizam um trabalho de informação sobre os riscos de contágio da covid-19. Há faixas e alertas nos principais acessos ao Alemão, e carros de som passam pelas ruas anunciando a necessidade de ficar em casa e de manter a higiene das mãos. Estão sendo arrecadadas doações para comprar álcool gel e sabonete, além de cestas básicas para moradores que estão sofrendo com a crise do coronavírus. Outra reivindicação é a testagem nas favelas, a fim de controlar a propagação em caso de surto.

Numa tentativa de minimizar a contaminação, a Prefeitura do Rio elaborou um projeto para realocar idosos e doentes crônicos residentes de favelas para hotéis. No Alemão, muitos idosos, como o motorista Edson Souza e a aposentada Fátima Silva, dizem temer o vírus. “A gente fica com medo do desconhecido até vê-lo. Mas eu não quero ver”, afirma o motorista. “Eu estou me protegendo dentro de casa, orando, pedindo a Deus.  Tinha que ter mais conscientização para o que está acontecendo”, pede a aposentada.

 

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