Ilustração de Paula Cardoso
Autor de estudo pró-cloroquina admite erros em pesquisa
Enquanto isso, maior investigação já realizada sobre a droga reitera que não há benefício comprovado contra Covid-19 e alerta para riscos
Em meio à corrida em busca de um tratamento para a Covid-19, a cloroquina e a hidroxicloroquina estão no centro da polêmica desde que o presidente norte-americano, Donald Trump, começou a defender o uso do medicamento. Na sexta (15), um novo artigo em defesa do uso do remédio contra o Sars-CoV-2 foi publicado na revista Science China Life Sciences. O estudo chinês afirmava que, ministrada em pequenas doses, a cloroquina reduz as mortes de pacientes em estágio grave da doença. Levou menos de uma semana para que ele fosse contestado. Na quinta (21), a microbiologista Elisabeth Bik, especialista em análise de publicações científicas, apontou a existência de erros estatísticos e éticos na pesquisa em um site utilizado por cientistas para discutir e revisar artigos. Um dos autores do estudo chinês, o pesquisador Dao-Wen Wang, respondeu a Bik agradecendo o interesse pelo trabalho e o fato de ela ter apontado erros no estudo. Disse que a própria equipe verificou problemas no texto. “Checamos o artigo e também encontramos erros. Nosso grupo está examinando e reanalisando os dados cuidadosamente. Faremos uma correção e te avisaremos”, afirmou Wang.
Os pesquisadores acompanharam 550 pacientes com Covid-19 em estágio avançado internados no Tongji Hospital, em Wuhan, na China. Os pacientes, com idade média de 68 anos, deram entrada no hospital entre 1 de fevereiro e 4 de abril. Do total, 48 pacientes receberam o tratamento com hidroxicloroquina, e os outros 502, tratamentos básicos com outros medicamentos. Do total, 247 morreram, sendo nove do grupo tratado com hidroxicloroquina – o que levou o estudo a calcular uma taxa de fatalidade de 44,9% no conjunto dos pacientes e 18% no grupo tratado com cloroquina. Além de concluir que o medicamento contribuiu “significativamente” para a redução das mortes de pacientes em estágio avançado da doença, também foi observado que o remédio retardou a morte deles.
Ao criticar o estudo chinês no Pubpeer, a plataforma de revisão de textos científicos, Bik elencou alguns pontos. Um deles diz respeito ao número do Institutional Review Board (IRB), comitê responsável por revisar e aprovar pesquisas envolvendo seres humanos. Enquanto analisava ponto a ponto o artigo, a cientista percebeu que o IRB colocado pelos pesquisadores no texto dizia respeito a um estudo diferente listado no site do agente regulador do país. “O número IRB obtido para um estudo prospectivo e randomizado em uma mistura de plantas medicinais parece ter sido reutilizado para cobrir um estudo retrospectivo e não randomizado de hidroxicloroquina”, disse em seu comentário.
Outro ponto levantado pela especialista foi com relação à taxa de mortalidade e ao intervalo de tempo analisado. O artigo foi submetido à revista em 23 de abril, menos de sessenta dias depois da internação do último paciente, 4 de abril, como observado por ela. Dessa forma, para que uma das tabelas do estudo, que mostra a probabilidade de sobrevivência dos indivíduos, estivesse correta, a equipe deveria ter acompanhado pacientes que deram entrada no hospital até 23 de fevereiro.
A microbiologista foi avisada de possíveis inconsistências no estudo chinês pelo imunologista brasileiro Daniel Mucida, professor da Universidade Rockefeller, em Nova York. Ele tem acompanhado estudos de vacinas e anticorpos para o novo coronavírus. Apesar de ter notado informações suspeitas no artigo, preferiu enviá-lo a Bik. “Ela se interessou, porque é algo que ela cobre bastante, e de cara achou vários problemas que eu mesmo não achei e nunca teria achado, porque só quem tem um olho treinado encontraria”, disse à piauí. Depois das críticas iniciais, Bik ainda apontou em seu blog, Science Integrity Digest, outras inconsistências encontradas no artigo. Gaetan Burgio, especialista em doenças infecciosas da Australian National University, também questionou os resultados do estudo. Em sua conta no Twitter, disse: “Por favor, esqueçam esse estudo, e eu ignoraria totalmente esses resultados. No geral, esse estudo é muito preocupante e gera sinais de alerta graves.”
Enquanto isso, a maior pesquisa já realizada até agora sobre a cloroquina concluiu que não é possível confirmar a eficácia da droga no tratamento de pessoas com Covid-19. O estudo foi realizado por Mandeep R. Mehra (Brigham and Women’s Hospital), Sapan S. Desai (Surgisphere Corporation), Frank Ruschitzka (University Hospital Zurich) e Amit N. Patel (University of Utah e HCA), e o resultado foi publicado na revista The Lancet. Os pesquisadores avaliaram os efeitos do uso da substância em 96.032 pacientes infectados pelo novo coronavírus. Participaram do estudo pacientes internados em 671 hospitais de seis continentes que testaram positivo para o vírus entre 20 de dezembro de 2019 e 14 de abril deste ano. Eles foram divididos em quatro grupos de acordo com os medicamentos ministrados: aqueles que tomaram apenas cloroquina, cloroquina associada a um macrólido (tipo de antibiótico), apenas hidroxicloroquina e hidroxicloroquina também associada a um macrólido. O quinto e último grupo, o chamado grupo de controle, era formado por pacientes que não tomaram os medicamentos.
A pesquisa levou em conta apenas pacientes que tiveram o tratamento iniciado em até 48 horas após o diagnóstico. O estudo também alertou que o uso do medicamento no tratamento da Covid-19 pode estar relacionado ao aumento de problemas cardíacos. A hidroxicloroquina foi desenvolvida a partir da cloroquina em 1946, quando um estudo adicionou uma nova substância ao composto comumente utilizado no tratamento da malária, tornando-o menos tóxico. Desde então, segundo o presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), José Roberto Provenza, a droga também tem sido utilizada em pacientes com doenças reumáticas. Entre os efeitos colaterais da hidroxicloroquina está a alteração na retina, que pode levar à perda parcial ou total da visão.
O uso da cloroquina também vem sendo defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Uma orientação do Ministério da Saúde publicada na quarta (20) liberou a aplicação do medicamento para todos os estágios da doença. Até então, o órgão só indicava o uso em casos graves. Grupos bolsonaristas têm usado nas redes a hashtag #cloroquinasalvavidas para defender o uso da droga, e pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz, autores de um artigo crítico ao uso do medicamento, foram alvo de ataques virtuais.
“Esse estudo [publicado na The Lancet] deveria ser o suficiente para colocar um ponto final nos testes clínicos, porque, se você está vendo que o negócio mata, a discussão acaba”, comentou o imunologista brasileiro. “O que o Brasil fez, de liberar a cloroquina, é criminoso tanto pelo ponto de vista da ausência de evidência científica quanto pela evidência desses estudos. Tem muito mais certeza que faz mal do que dúvidas de que faz bem”, completou.
Nesta sexta (22), a Organização Mundial da Saúde (OMS) voltou a criticar a recomendação, pelo governo brasileiro, de uso da cloroquina contra a Covid-19. Entidades médicas, como a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, a Sociedade Brasileira de Infectologia e a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, também se posicionaram contra a recomendação de uso do medicamento sozinho ou combinado a antibiótico.
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