Complexo industrial de mineração de Bauxita em Barcarena Foto: Tarcisio Schnaider/Shutterstock
Barcarena em dois atos
Eldorado da resiliência climática ou Chernobyl Amazônica, eis as caras da mesma cidade paraense em dois tours paralelos à COP30
O município de Barcarena faz parte da Região Metropolitana de Belém e fica a 18 km em linha reta da capital paraense, mas esteve longe dos holofotes durante as duas semanas de Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30, entre 10 e 22 de novembro. Entretanto, duas breves expedições concebidas na esteira da conferência apresentaram a cidade de formas opostas: uma mostrou Barcarena como case de sucesso nas práticas de conscientização e preservação do meio ambiente. A outra, na direção contrária, destacava os efeitos nocivos da mineração de bauxita na comunidade.
Na manhã do dia 13, uma comitiva de setenta pessoas, entre elas membros do alto escalão da ONU, jornalistas estrangeiros, políticos do Pará e o ministro das Cidades, Jader Filho, irmão do governador do estado, Helder Barbalho foram a Barcarena em uma viagem organizada pelo Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres (UNDRR) em parceria com a prefeitura de Barcarena. O objetivo era mostrar como os conceitos de resiliência urbana e os efeitos da crise climática são trabalhados na educação básica, a partir da visita a duas escolas municipais, uma ribeirinha e outra no centro urbano. “É uma alegria poder recepcioná-los e levá-los à minha cidade”, anunciou Renato Ogawa (PP), prefeito de Barcarena em seu segundo mandato, minutos antes do embarque na lancha, que dispunha de ar condicionado. (Apesar da distância curta entre as cidades, o trajeto por terra se estende por 112 km e leva mais de duas horas para ser feito, por isso os deslocamentos são realizados principalmente por barco.) O percurso daquela manhã até Barcarena levou um pouco mais de meia hora.
Em 2023, a cidade ganhou o reconhecimento da ONU ao assumir o compromisso de ser um “Hub de Resiliência Climática”, após aderir a estratégias para o reconhecimento de risco, construção de um plano de resiliência e implementação de propostas em defesa do meio ambiente e em busca de um desenvolvimento urbano sustentável. É uma das cinco cidades brasileiras e a única da Amazônia a ter esse título, ao lado de Recife, Salvador, Porto Alegre e Campinas.
Esse projeto ambiental da cidade começou em 2013, quando a prefeitura decretou que todos os planos, programas e ações da administração pública municipal deveriam ser alinhados às metas de desenvolvimento da ONU – os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Nesse período, foram realizadas obras de infraestrutura como contenções em praias e encostas; a reconstrução de pontes para reparar os estragos causados pela erosão e subida da maré – uma projeção da plataforma Climate Central, que mostra áreas que ficariam submersas nas próximas décadas, destaca regiões costeiras de Barcarena como pontos críticos ao risco de ficarem embaixo d’água até 2050.
Também foram instalados sistemas solares autônomos (com baterias de lítio e inversores inteligentes) em dezenove escolas localizadas em regiões rurais e ilhas, e poços artesianos com profundidade mínima de 150 metros nas escolas para garantir que a água coletada seja feita em camadas mais profundas e portanto menos sujeitas a contaminação.
No âmbito educacional, a prefeitura tem organizado workshops anuais com estudantes e autoridades, que se reúnem para discutir educação ambiental e a agenda “Barcarena 2030”, além da criação do Festival Paralímpico na Vila dos Cabanos, uma iniciativa da Secretaria de Educação, com o objetivo de “promover o acesso a áreas públicas seguras, inclusivas e acessíveis”. “A gente reconhece o esforço e o compromisso da cidade em tomar medidas para reduzir o risco de desastres”, explicou à piauí Nahuel Arenas, chefe do escritório regional da United Nations Office for Disaster Risk Reduction (UNDRR) para as Américas e o Caribe.
Com essas iniciativas, a prefeitura de Barcarena adota o discurso de que está na vanguarda da defesa ambiental – a visita da ONU e a chancela de “hub de resiliência climática” dão peso à narrativa. Mas, para uma parcela da população de Barcarena, afetada pela mineração de bauxita, a realidade é completamente diferente.
Barcarena é uma cidade costeira estuarina, situada numa área de transição entre o Rio Amazonas e o Oceano Atlântico. A localização estratégica atraiu a instalação naquele município de multinacionais europeias nos anos 1980, que estavam de olho na facilidade de escoamento de seus produtos pelo porto. A proximidade de regiões do estado ricas em bauxita, mineral importante na fabricação do alumínio, também atraiu as indústrias. A matéria-prima é levada até Barcarena por extensos minerodutos que atravessam centenas de quilômetros do interior do Pará até chegar na cidade litorânea.
Atualmente, há 94 empresas no Distrito Industrial de Barcarena, boa parte delas inseridas nesse tipo de exploração. A atividade tem gerado problemas ambientais, como derramamento de óleo dos navios que atracam, vazamento de resíduos tóxicos no rio e poluição do ar atmosférico.
Esse cenário motivou uma outra visita no embalo da COP30, que partiu de Ananindeua, outra cidade da grande Belém, na manhã do dia 8 de novembro, cinco dias antes da visita promovida pela ONU. Este tour, que a piauí também acompanhou, foi organizado pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), pela ONG francesa CCFD-Terre Solidaire e pelo Grupo de Estudos e Pesquisas “Sociedade, Território e Resistências na Amazônia (Gesterra), da Universidade Federal do Pará (UFPA).
O clima de exaltação percebido na comitiva governamental não existia nesta caravana, intitulada Toxic Tour. O objetivo da visita era mostrar comunidades que, por morarem muito próximas às fábricas, são afetadas por impactos ambientais ocasionados pelas atividades das indústrias. Para guiar os visitantes, moradores das comunidades foram convidados a orientar o trajeto e narrar suas agruras.
Depois de duas horas e meia de viagem, uma van com sete jornalistas franceses estacionou em frente a uma casa simples de alvenaria, dentro do território do Tauá, comunidade tradicional de Barcarena, vizinha do complexo industrial das mineradoras. A anfitriã da comitiva foi Telma Lucia Espindula, que recebeu os visitantes com um canto que celebrava o plantio e a colheita artesanal dos alimentos. “Tauá só dá se a gente plantar, se a gente não planta, Tauá não dá”, ela entoava, enquanto os franceses aplaudiam e degustavam pupunha com café.
Espíndula faz parte da segunda geração de sua família nascida naquele território. Seus avós foram morar na comunidade nos anos 1960. Em 1977, quando Espindula ainda era um bebê, a Companhia de Desenvolvimento Industrial do Pará ordenou a expropriação do território de comunidades tradicionais, como a de Tauá, com a promessa de indenização. “Até hoje essa indenização nunca chegou pra gente”, conta Espindula. Sua família teve que se mudar para comunidades vizinhas. Muitos moradores foram para a zona urbana de Barcarena ou para Belém.
A retomada da comunidade para o território original aconteceu só em 2016, recorda Espíndula. “A gente se reuniu nessa casinha bem aqui”, ela diz, apontando para um terreno próximo à estrada. “Era um grupo bem pequeno, nos reunimos ali e decidimos voltar para a terra dos nossos pais e avós”, explica. Hoje são 240 famílias que moram em Tauá. Saudosa a cada frase, sua fala era sempre traduzida para o francês por uma representante da ONG para a compreensão da maioria dos integrantes da excursão.
Em seguida à recepção de Espíndula, Carlos Augusto, outro líder da comunidade, pediu a palavra. “As multinacionais só visam o dinheiro, o lucro. Não estão nem aí com a floresta, com as nascentes, com os moradores. O capital é dessa forma, ele vem pra matar e pra destruir. Que Deus nos acompanhe nessa jornada que vamos fazer.”
O grupo, então, rumou para a refinaria Alunorte, pertencente à empresa Hydro, onde a bauxita é transformada em alumina, composto usado na produção do alumínio metálico. Os rejeitos do composto são depositados em gigantescas bacias de terra, construídas para servirem de reservatório dos resíduos sólidos e da água utilizados no processo de extração. Por serem altamente tóxicos, esses rejeitos exigem esse cuidado no armazenamento, formando enormes montanhas terrosas possíveis de avistar da beira da estrada. Manoel Lambreta, morador de Tauá desde os anos 1970, ao passar pelo espaço, se lembra da casa de seu pai.
“Aqui onde estão essas bacias, passava o igarapé, ficava minha casa. Eu cresci aqui”, conta Lambreta. O grupo caminhava num espaço estreito entre a grade que separa os limites da indústria e a estrada onde passavam caminhões aos montes. Os franceses espiavam a atividade da mineradora pelas brechas da grade coberta por folhas. “As pessoas acham que a planta é vermelha por causa da poeira, mas não são. Elas ficam dessa cor por causa dos rejeitos. Eles extraem a bauxita para fazer alumínio e os rejeitos vão pro solo”, conta Afonso Rodrigues, um morador da região.
A paisagem era barrenta e quente e, por vezes, éramos interrompidos pelo barulho alto da buzina dos caminhões. “Eles fazem isso para intimidar a gente”, afirmou Lambreta. Quando houve a expropriação no final dos anos 1970, ele foi morar num território vizinho. No processo de retomada da área, há nove anos, voltou para Tauá. “Não é a mesma coisa, minha casa, onde eu cresci, era aqui”, ele diz olhando para as montanhas de bacias de rejeitos de cor alaranjada.
Em 2018, após fortes chuvas, houve o vazamento de lama vermelha de uma das bacias de rejeito da Hydro. Indagado pela piauí sobre o episódio durante a comitiva promovida pela ONU, o prefeito Ogawa acionou Anderson Baranov, presidente da Hydro Brasil, que estava no banco da frente do ônibus que levava os convidados. “Anderson, fala pra ele sobre o acidente de 2018. Estou dizendo que vocês foram inocentados de tudo, né?”, disse Ogawa. “Qual acidente? Eu sei das fortes chuvas. Inclusive anos depois houve chuvas ainda maiores e as nossas piscinas de contenção que construímos ao lado das bacias seguraram.”
As “piscinas de contenção” são estruturas montadas ao lado da bacia para servirem de proteção extra, caso os rejeitos vazem pela bacia principal. À época, o Ibama aplicou uma multa de 20 milhões de reais contra a Hydro, e dois autos de infração: por realizar atividade potencial poluidora sem as concessões necessárias e pela ausência de licenças ambientais para operar com minerodutos, os chamados “dutos clandestinos”. Além disso, a empresa foi multada em 33,4 milhões de reais pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Pará (Semas). O Tribunal de Justiça do estado determinou a suspensão das operações de uma das bacias e ordenou a redução em 50% da produção da empresa, impondo uma multa diária de 1 milhão de reais.
Apesar das punições judiciais, Baranov diz que sua empresa não teve culpa pelos vazamentos. “A água de chuva vem da rua e junta com o solo que é vermelho, que é característica da região, por isso a água ficava daquela cor avermelhada. Como você diz que era água contaminada se os peixes continuaram lá e a grama continuou verde? Ganhamos todos os processos”, afirmou durante o trajeto com a comitiva da ONU.
Além da Hydro, outra fábrica com histórico de problemas pela exploração de minérios em Barcarena é a Artemyn, que fazia parte da multinacional francesa Imerys até 2024, quando foi comprada pela norte-americana Flacks Group. Entre 2004 e 2022, foram movidos 67 processos contra a Imerys em ações nas esferas estadual e federal motivados por crimes ambientais.
Um desses crimes aconteceu na noite do dia 6 de dezembro de 2021, quando os moradores de Vila do Conde e Murucupi, bairros litorâneos de Barcarena, foram acordados com o barulho de uma explosão dentro da usina Imerys/Artemyn em um dos galpões que armazenava 500 toneladas de hidrossulfito de sódio, que tem como um dos componentes o dióxido de enxofre, altamente tóxico. Não houve vítimas, mas moradores afirmam que tiveram contato com a fumaça e sofreram problemas respiratórios após o ocorrido.
Depois desse episódio, passaram a circular nas redes o título de Barcarena como a “Chernobyl Amazônica”. O Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) ajuizou uma ação civil pedindo a suspensão das atividades da mineradora com o hidrossulfito de sódio, mas a atividade segue em vigor – a companhia instalou uma sirene para avisar a população em caso de novos acidentes. Procurada pela piauí, a Artemyn disse que o incidente ocorreu sob administração da Imerys e, por isso, não iria se pronunciar.
Após a visita a escolas rurais e urbanas que instituíram ações de preservação ao meio ambiente, a comitiva da ONU com membros do governo local e federal participou da assinatura do Plano Municipal de Redução de Riscos, uma parceria do Ministério das Cidades com a cidade de Barcarena. “Essa é a COP das florestas, mas é também a COP das cidades. Mais de 80% dos amazônidas vivem nas cidades e eles merecem uma vida digna e de qualidade”, disse Jader Filho. “O risco é global, mas a resiliência é local”, acrescentou Kamal Kishore, representante especial da ONU para a Redução do Risco de Desastres.
“O município de Barcarena vai ter um mapeamento de onde estarão essas áreas de risco. Inundação e deslizamento são os principais mapeamentos que fazemos”, explicou Samia Nascimento Sulaiman, que trabalha no Departamento de Mitigação e Prevenção de Riscos da Secretaria Nacional de Periferias do Ministério das Cidades.
Indagada sobre os casos de vazamentos químicos que atingem uma parcela da comunidade local, Sulaiman disse que cabe às empresas tomarem as medidas necessárias. “A gente está envolvido apenas com eventos climáticos”, disse. “Quem deve fazer e implementar planos de contingência em relação a isso são as próprias indústrias.”
Enquanto a comitiva governamental celebra, alguns moradores de Barcarena não veem o município como exemplo de sucesso na questão ambiental. Além disso, questionam as medidas de contenção que as empresas implementaram, tanto no que se refere ao controle dos vazamentos quanto na segurança das pessoas em meio a um possível acidente. “A única coisa que eles fizeram foi colocar essas placas de fuga”, explica Andreia Alves, moradora da comunidade do Curuperé, localizada a poucos quilômetros de uma das bacias da Artemyn. “O caminho que eles colocaram para as placas não faz sentido. Eles nos levam pra região mais baixa. Como que num deslizamento a fuga é pra onde vai a maior parte da água? Eu chamo essas placas de rota da morte. Se acontecer algum desastre e a gente seguir essas placas, morre todo mundo.”
*Colaborou Bernardo Esteves
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