O resultado do desmoronamento na Fazenda Grande do Retiro, em Salvador, após a remoção dos moradores: “Se você investir 1 dólar em prevenção, pode economizar de 7 a 15 dólares que seriam gastos para remediar as consequências do desastre” CRÉDITO: REDE BAHIA_2019
Como evitar as catástrofes da emergência climática
O que as cidades estão fazendo para evitar a repetição das catástrofes climáticas
Bernardo Esteves | Edição 199, Abril 2023
De Punta del Este
Um forte temporal caiu sobre Salvador no começo de outubro de 2019. Por volta das onze e meia da noite do dia 3, um estrondo assustou os moradores do bairro Fazenda Grande do Retiro, na Zona Norte da capital baiana. A chuva que caía havia dois dias tinha saturado o solo de um barranco já encharcado pelo vazamento numa tubulação de água. O solo cedeu, o muro de contenção da encosta rompeu, e cinco casas desabaram. Os escombros foram arrastados morro abaixo até atingir um galpão no pé da encosta. Dezenas de casas tinham sido construídas no declive, onde viviam 31 famílias com cerca de 150 pessoas no total. Ninguém se feriu. Ninguém morreu.
Dois meses antes do desastre, aconteceu algo raro nas cidades brasileiras: adotou-se uma medida preventiva eficaz. A Defesa Civil de Salvador havia retirado as 31 famílias de suas casas. O diretor da instituição, Sosthenes Macêdo, tomou a iniciativa depois de ouvir o relato de um engenheiro que estivera no local e constatara a existência de rachaduras. “Chefe, tira essas famílias daí, porque vai ruir”, recomendou o perito. Macêdo ordenou a desocupação. No dia em que se reuniu com as famílias para comunicar a decisão, uma senhora lhe disse que não iria sair de casa. O diretor alegou que, pela lei, podia retirá-la. “Deus foi tão bom que não precisou de lei”, disse ele à piauí ao evocar o caso mais de três anos depois. “A parede de uma das casas caiu e todos entenderam que era para sair.”
Depois do deslizamento, outras dezenas de casas no entorno foram isoladas, por ordem da Defesa Civil, porque estavam com a estrutura condenada – 54 casas foram desocupadas no total, antes e depois do deslizamento. A desocupação é uma medida drástica, impopular e seu benefício – o número de vidas poupadas – nunca é notícia. “Naquele dia ninguém teve como contabilizar as vidas salvas”, afirmou Macêdo. Mas o desabamento acabou provando que o gestor havia tomado a decisão acertada. Naquela noite, ele ligou para a esposa e contou que, com sua equipe, havia salvado 150 vidas.
(Nem tudo deu certo, no entanto: os moradores desalojados receberiam da prefeitura um auxílio-moradia de 300 reais por mês enquanto não fossem alocados em prédios construídos pela própria prefeitura ou pelo governo federal. A autônoma Jamile Farias alegou que ainda não tinha recebido o benefício três meses depois de ter deixado sua casa, conforme relatou ao jornal Tribuna da Bahia. “Os 300 reais do auxílio são muito pouco perto do gasto que vamos ter”, reclamou outra moradora.)
No fim de fevereiro, Sosthenes Macêdo foi a Punta del Este, no litoral do Uruguai, para representar a cidade de Salvador em um encontro promovido pelo Escritório das Nações Unidas para Redução do Risco de Desastres (UNDRR, na sigla em inglês). Durante o evento, a capital baiana foi reconhecida como um “hub de resiliência”, um selo que a ONU confere às cidades que demonstram estar preparadas para enfrentar desastres e dispostas a trabalhar em parceria com outros municípios.
No caso de Salvador, a principal ameaça de catástrofes vem dos deslizamentos de terra, como o de 2019. “É uma cidade de topografia extremamente complexa, como se tivesse dois andares, com a Cidade Alta e a Cidade Baixa”, disse Macêdo. “Há várias edificações erguidas em áreas de risco sem o acompanhamento de um engenheiro”, continuou. Não é que as pessoas tenham escolhido morar ali: muitas delas sabem do risco que correm, mas não têm outra opção no horizonte.
Salvador decidiu levar o trabalho de prevenção a sério depois de um evento traumático. Entre abril e maio de 2015, desabamentos de encostas em mais de uma localidade deixaram pelo menos dezessete vítimas. Depois disso, a cidade ganhou um plano municipal de redução de riscos, programas para capacitar moradores das áreas com risco de desabamento e um centro de monitoramento e emissão de alertas para a população. Em vez de só agir em resposta aos desastres, a Defesa Civil passou a atuar para tentar evitá-los, como aconteceu na Fazenda Grande do Retiro.
Se o trabalho de prevenção for bem-feito, o resultado é que ninguém morre quando chove forte – um fato que, além de não sair nos jornais, não converte votos como obras visíveis, em geral inauguradas com fanfarra. Os resultados das ações preventivas são intangíveis porque não é possível medir o que não se vê, conforme disse Álvaro Delgado, assessor direto do presidente do Uruguai, na abertura do evento em Punta del Este. Por isso, é preciso contar aquilo que se conseguiu evitar, concluiu Delgado. É exatamente o que faz Macêdo para dar a medida dos resultados do trabalho de sua equipe. “Estamos há mais de dois anos sem nenhuma vida perdida”, afirmou.
Os ingredientes do desabamento na Fazenda Grande do Retiro não eram muito diferentes daqueles que produziram a tragédia de São Sebastião, no litoral de São Paulo. Também ali, uma chuva fortíssima provocou o deslizamento de terra em encostas onde haviam sido construídas casas irregularmente, apesar do risco conhecido. A partir de um dado patamar, o solo se liquefaz e a terra vem abaixo, trazendo junto o que estiver nela.
Não foi uma chuva qualquer: foi simplesmente a tempestade mais intensa já registrada em todo o território brasileiro. Na cidade de Bertioga, choveram 682 mm em 24 horas, o suficiente para encher mais de meia caixa d’água de mil litros em cada metro quadrado da cidade. O volume ajuda a explicar o estrago deixado pela chuva e o saldo de 65 mortes. Ainda assim, a tragédia poderia ter sido minimizada.
Por trás da quantidade atípica de chuva no litoral paulista está a chegada de uma frente fria muito intensa que ficou estacionada naquela região. Ao encontrar o oceano muito aquecido, a frente fria começou a sugar a umidade do oceano, alimentando a tempestade ao longo de horas. Se a meteorologia explica o volume anormal da chuva que caiu naquela noite, a violência de seus efeitos pode ser compreendida a partir das desigualdades que marcam a ocupação do território em São Sebastião.
Uma foto de satélite que viralizou nas redes sociais escancarou como a ocupação do território determinou a seletividade dos impactos da tempestade. Publicada pelo geógrafo Adriano Liziero, a imagem retrata uma cidade dividida em duas realidades distintas pela BR-101 (Rio-Santos). Do lado plano, mais próximo do litoral, está a Barra do Sahy, que abriga condomínios de luxo e casas de veraneio ocupadas apenas durante parte do ano. Do outro lado da rodovia, fica a Vila do Sahy, onde mora boa parte da população local, em casas precárias construídas nas áreas de encosta da Serra do Mar. Foi de lá que veio a maioria das vítimas. A parte abastada da cidade sofreu principalmente prejuízos materiais.
A discrepância é uma manifestação cristalina do que se chama de “racismo ambiental”, o lado perverso dos eventos extremos que faz com que seus impactos sejam sofridos de forma mais aguda pelos grupos já marginalizados na sociedade. Na tragédia evitada em 2019 em Salvador, tampouco seria preciso muito esforço para determinar qual era a cor da pele e classe social das vítimas potenciais. Na Fazenda Grande do Retiro, 86% dos moradores se declaram pretos ou pardos, e 44% dos responsáveis pelos domicílios têm renda de até um salário mínimo, de acordo com dados do Observatório de Bairros Salvador, da Universidade Federal da Bahia.
A ciência hoje tem meios de determinar se um evento foi provocado – ou intensificado – pelo aquecimento global. Nenhum estudo neste sentido foi realizado para investigar a origem da chuva recorde no litoral paulista. De um jeito ou de outro, é exatamente esse tipo de evento que se tornará cada vez mais frequente à medida que aumentar a temperatura média do planeta – o mundo já está 1,1ºC mais quente do que antes da Revolução Industrial. É a era das catástrofes.
Se a chuva é um evento natural – ainda que sua intensidade seja turbinada pelos gases do efeito estufa que lançamos na atmosfera –, as áreas mais vulneráveis de uma cidade são determinadas pelas desigualdades sociais. Por isso, os especialistas se mostram muito cuidadosos ao selecionar os termos que usam para nomear esses eventos. “Desastres não são naturais, são socioeconômicos”, disse a economista Adriana Campelo. “Se não houvesse ali uma população exposta numa determinada área, não haveria o desastre”, arrematou ela, que é coordenadora nas Américas da campanha da UNDRR para construir uma rede de cidades resilientes.
Salvador não foi a única cidade formalmente reconhecida como um hub dessa rede no evento de Punta del Este. Bogotá e Dosquebradas, na Colômbia, também receberam o certificado, juntando-se a outras quatro cidades da América Latina e do Caribe que já tinham o título: Campinas e Recife, no Brasil, Medellín, na Colômbia, e Cidade do México. “São cidades que têm ou tiveram problemas, mas se comprometem a criar uma capacitação para si, fazer mentoria e apoiar outros municípios”, definiu Campelo.
Campinas foi a pioneira no Brasil. Em sua participação no evento de Punta del Este, o prefeito da cidade, Dário Saadi (Republicanos), disse à plateia que Campinas tem a resiliência na sua própria identidade. O brasão do município mostra uma fênix, a ave mitológica que ressurge das próprias cinzas, para simbolizar o renascimento de Campinas após as sucessivas epidemias de febre amarela que a castigaram no fim do século XIX, particularmente a de 1889. Além de vitimar 2 mil pessoas, de acordo com uma estimativa, a doença motivou a fuga de muitos moradores. “A cidade quase sumiu do mapa”, disse o prefeito.
No caso dos eventos climáticos extremos, a resiliência foi construída depois da chuva histórica de 2003, que deixou mais de um décimo do território de Campinas debaixo d’água. Choveram 141 mm em duas horas. Seis pessoas morreram, incluindo um bombeiro. Depois disso, a prefeitura apontou áreas de risco prioritárias para a realização de obras e para a transferência dos moradores, e diminuiu em 60% o número de áreas ameaçadas da cidade. Com essa ação, chamou a atenção da ONU que, anos mais tarde, já na gestão do prefeito Jonas Donizete, do PSB, lhe concedeu o certificado de hub de resiliência.
O prefeito Saadi argumentou que os resultados do trabalho de adaptação puderam ser vistos nas chuvas deste verão. “Tivemos chuvas intensas em fevereiro, mas não houve nenhuma vítima por alagamento ou inundação”, disse ele à piauí, ressaltando que houve duas mortes causadas pela queda de árvores sadias derrubadas pela tempestade. “O conceito de resiliência não é um objetivo final, mas um processo que tem que ser perseguido, principalmente nessa época de mudança climática e de fenômenos ambientais extremos”, disse.
Representantes de várias cidades brasileiras que estiveram em Punta del Este aproveitaram a ocasião para lançar o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes da Defesa Civil, que pretende promover ações conjuntas e trocar experiências entre os gestores. Além disso, outras duas cidades brasileiras formalizaram suas candidaturas para virarem hubs de resiliência: Porto Alegre e Barcarena, que pertence à Região Metropolitana de Belém. Se for aprovada, Barcarena será a primeira cidade da Amazônia a receber o selo.
O padrão que se viu em Salvador depois dos deslizamentos de 2015 – um poder público que só age com firmeza depois de uma grande tragédia – é a norma na maneira como o Brasil tem combatido os eventos climáticos extremos. Os gestores costumam estar a reboque dos desastres. Não é o que recomendam os especialistas, que rezam pela cartilha da ação preventiva. “Se você investir 1 dólar em prevenção, pode economizar de 7 a 15 dólares que seriam gastos para remediar as consequências do desastre”, disse a japonesa Mami Mizutori, diretora da UNDRR. Mizutori sacou outra estatística eloquente para defender a eficácia dos sistemas de alerta precoce para a redução de danos. “Nos países que têm esses sistemas efetivos, a mortalidade por desastres é oito vezes menor do que nos demais”, afirmou.
No entanto, os dividendos políticos das ações de prevenção são difíceis de colher, e a importância que os gestores dão a essas ações é reveladora de suas prioridades. O volume de recursos que o governo Jair Bolsonaro separou para as ações de prevenção e gestão de desastres no Orçamento de 2023 é o menor dos últimos catorze anos – apesar de o valor ter quase dobrado depois da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição.
Antes disso, o Brasil tinha dado um passo significativo para romper com essa lógica perversa de esperar o desastre e agir depois. Em 2011, fortaleceu o arcabouço legal e institucional para a prevenção dos desastres. Aconteceu, claro, depois de uma tragédia de vulto – as enchentes e deslizamentos na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro. Foi o evento climático extremo que deixou o maior número de vítimas na história recente do país: mais de novecentos mortos e centenas de desaparecidos, com a maior parte das ocorrências registradas em Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis.
Na esteira dessa catástrofe, o Brasil criou uma política nacional de proteção, e a Defesa Civil passou a ser pautada pela prevenção. Criou-se, também, um órgão técnico que forneceria dados essenciais para orientar essas ações: o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), vinculado ao Ministério da Ciência e sediado em São José dos Campos, no interior paulista.
O Cemaden é encarregado de monitorar e estimar o impacto de deslizamentos de terra, alagamentos, inundações e enxurradas, além de secas prolongadas. O órgão não monitora todo o território nacional, mas apenas as áreas de risco. Depois da tragédia das chuvas no litoral paulista, anunciou-se que o número de municípios observados pelo centro passaria de 1 038 para 2 120, cobrindo uma área onde vivem 70% da população brasileira.
Além de meteorologistas, hidrólogos e geólogos, o Cemanden também tem cientistas sociais que ajudam a determinar a vulnerabilidade das áreas monitoradas. Numa entrevista à piauí em Punta del Este, o físico Osvaldo de Moraes, diretor do Cemaden, disse que o órgão conhece o perfil das populações que vivem em cada área de risco no Brasil. “Sabemos quantos moradores há nessas áreas, quantos são crianças, mulheres ou idosos, quantos trabalham fora, qual a escolaridade e a renda média”, disse Moraes.
Na sala de operação do Cemaden, há equipes de plantão 24 horas por dia recebendo informações em tempo real de uma rede de 10 mil sensores posicionados nas áreas de risco. Os peritos cruzam as projeções meteorológicas com as informações sobre a vulnerabilidade dessas áreas para avaliar o impacto provável de cada evento. “Com isso conseguimos estimar quantas pessoas serão afetadas ou quantas casas estão em risco”, disse Moraes. É a partir desse cruzamento que o centro decide emitir ou não um alerta de risco.
Mas há um longo caminho até que um alerta do Cemaden chegue à população. Primeiro, o alerta é enviado a outro órgão federal, o Cenad – Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres, filiado ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional e sediado em Brasília. O Cenad, por sua vez, encaminha o alerta à Defesa Civil de estados e municípios, que, aí sim, se encarregam de levá-lo até os moradores – pelo toque de sirenes, ou envio por mensagens de SMS ou WhatsApp, ou outros meios. (Moraes contou que, depois das chuvas deste ano, está sendo elaborado um novo protocolo que permitirá que o Cemaden pule o Cenad em Brasília e envie seus alertas diretamente para a Defesa Civil dos municípios.)
A boa articulação com as cidades e a população é fundamental para que o sistema de prevenção seja efetivo. A cadeia de transmissão dos alertas tem que estar azeitada, e os gestores e a população precisam adotar as medidas cabíveis. Parece óbvio, mas a falha nesse sistema ajudou a ampliar o desastre no litoral de São Paulo. O risco de desastres foi apontado de forma clara pelo órgão de monitoramento, mas a mensagem não chegou a todos que deveriam recebê-la – com resultado trágico.
Na sexta-feira, véspera da tempestade, os dados compilados pelo Cemaden já permitiam dizer que haveria uma tempestade atípica no litoral. Nesse dia, o Cenad convocou uma reunião com representantes da Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil de São Paulo, na qual técnicos do Cemaden informaram os gestores do alto risco de um evento extremo. No dia da chuva, os alertas formais foram disparados por volta de 14 horas para a cidade de Santos e, em torno das 17 horas, para os demais municípios do litoral Norte. Ou seja: tudo aconteceu horas antes da chuva mais intensa, que começou à noite e varou a madrugada.
Até aí, o sistema de prevenção funcionou conforme o roteiro. Naquele ponto, as prefeituras já deveriam ter sido notificadas pela Defesa Civil estadual, que já estava ciente do risco desde a véspera. Mas a mensagem empacou no meio do caminho. Em relatos à imprensa, moradores contaram que não foram avisados para abandonar suas casas. “Não vou entrar no mérito de julgar se as defesas civis fizeram alguma coisa ou não”, disse Moraes, o diretor do Cemaden. “O que sei é que a população disse que o alerta não chegou para eles.”
Mesmo que os moradores tivessem recebido o recado em tempo hábil, não seria garantia de sucesso da operação. Depois do alerta, é fundamental que a população tenha confiança nas orientações e saiba o que fazer. Para isso, cada área de risco precisa ter um plano de ação para o caso de um desastre, incluindo rotas de fuga e um ponto de abrigo previamente definido para socorrer os evacuados – em geral, são escolas da própria localidade.
O Recife mudou a partir de 2014. Naquele ano, um relatório do IPCC, o painel de cientistas montado pela ONU para avaliar o que a ciência sabe sobre o aquecimento global, informou que a capital pernambucana era a 16ª cidade mais vulnerável do mundo à crise climática. A principal vulnerabilidade: as chuvas violentas em áreas de ocupação inadequada e sem infraestrutura suficiente para a drenagem da água. Com o aquecimento global, as projeções indicam que o Recife terá aumento de doenças transmissíveis (o calor favorece os vetores), elevação do nível do mar e chuvas cada vez mais intensas, com mais inundações e deslizamentos.
Diante desse cenário, em 2019 a Prefeitura do Recife decretou emergência climática e elaborou um plano de adaptação em parceria com várias instituições. O plano inclui ações para modernizar as redes de drenagem, universalizar o acesso ao esgoto e repensar a ocupação das áreas de risco. O conjunto de políticas públicas levou a ONU a reconhecer a capital pernambucana como um hub de resiliência.
Em maio do ano passado, três meses depois de ter recebido o certificado, o Recife foi palco da pior catástrofe climática de Pernambuco nos últimos cinquenta anos. Em 24 horas, caiu um volume de água correspondente a 70% do que se esperava para o estado em um mês inteiro. As inundações e deslizamentos de terra provocados pela chuva mataram mais de 130 pessoas em todo o estado.
O que deu errado? Na verdade, um olhar atento mostra que o Recife sofreu menos do que algumas cidades do seu entorno. A maior parte das fatalidades aconteceu em Jaboatão dos Guararapes, com 64 vítimas, e houve mortes registradas em outros oito municípios. A chuva do Recife mostrou os limites de se pensar as estratégias de prevenção em escala municipal, já que os eventos climáticos desconhecem divisas e fronteiras. Para o escritório da ONU que promove a redução de riscos de desastres, o caso está servindo como um aprendizado. “É preciso preparar a resiliência em escala regional”, disse Adriana Campelo. “Para não deixar ninguém para trás, temos que ir todos juntos.”
Mesmo as cidades que fizerem o dever de casa podem sofrer impactos severos na era das catástrofes, em razão dos limites da ciência. Petrópolis foi vítima disso em fevereiro do ano passado, na avaliação de Osvaldo de Moraes, do Cemaden. “O que aconteceu ali foi um fenômeno meteorológico que a ciência ainda não é capaz de prever com altíssima resolução”, disse ele.
A maneira como aquele temporal se formou não difere muito da tempestade que desabou sobre o litoral Norte de São Paulo. Uma bolha de baixa pressão estacionou sobre Petrópolis, com a convergência de umidade vinda da Amazônia canalizada pela serra, e isso foi alimentando a tempestade. Para piorar, a precipitação naquele dia se concentrou exatamente sobre as áreas de maior risco. “No próprio Centro de Petrópolis e em bairros um pouco afastados não houve chuva nenhuma”, disse Moraes.
O que fez daquela chuva um evento singular foi a grande intensidade aliada à formação muito rápida. Foram 260 mm de água em seis horas, mais do que a média histórica para todo o mês de fevereiro na cidade. “Quando veio o primeiro aviso do Cemaden, já estava chovendo em Petrópolis”, reconheceu Moraes. Para o físico, o caso se enquadra nos cerca de 5% de eventos extremos que a ciência não é – talvez nunca seja – capaz de antecipar. “Esse evento tampouco teria sido previsto com antecedência se tivesse acontecido nos Estados Unidos ou na Europa.”
A cidade não estava despreparada. Desde a grande chuva de 2011, aquela que motivou a criação do Cemaden e da política nacional para enfrentar eventos extremos, Petrópolis tinha se reforçado para outros temporais de proporções bíblicas. A Defesa Civil virou uma secretaria da prefeitura. A infraestrutura ganhou radares, pluviômetros e uma rede de dezoito sirenes espalhadas pelas áreas de risco. Mas parte desse sistema dependia do alerta precoce para entrar em funcionamento. O resultado é que, embora a chuva de 2022 tenha alcançado intensidade comparável com a tempestade histórica de 2011, que vitimou 71 pessoas em Petrópolis, o número de vítimas explodiu: 241.
A tragédia deixou os gestores em alerta. “Foi um ano muito difícil para nós”, disse à piauí Rodrigo d’Almeida, que ocupa uma diretoria da Secretaria Municipal de Proteção e Defesa Civil e representou Petrópolis em Punta del Este. Segundo ele, depois do desastre, a prefeitura, entre outras medidas, aumentou o número
de escolas para operarem como ponto de apoio aos moradores evacuados.
Para ele, são fundamentais as ações que envolvem a comunidade, como a construção colaborativa de rotas de fuga para chegar aos pontos de apoio, o treinamento de professores e alunos para ações preventivas ou o desenvolvimento de sistemas alternativos de alertas operados pelos próprios moradores – como o uso de apitos onde não há sirenes. “A reconstrução tem que ser feita de forma participativa”, disse D’Almeida. “Se a comunidade não entrar de cabeça nesse jogo sentindo que ela é protagonista, a gente vai estar sempre contabilizando óbitos.”
O gestor lembrou ainda que essas ações são apenas uma parte do sistema de gestão de risco dos desastres. E elas continuarão sendo o equivalente a enxugar gelo se o poder público não atacar as raízes estruturais do problema – que, em Petrópolis como em tantas cidades brasileiras, tem a ver com a ocupação desordenada do território. “O que pode mudar essa situação é uma política pública de habitação”, avalia D’Almeida. “Não vamos impedir a chuva de cair cada vez mais forte, mas com certeza vai diminuir o número de óbitos.”
Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_199 com o título “Antes da chuva”.
O repórter viajou a Punta del Este a convite da UNDRR (Escritório das Nações Unidas para Redução do Risco de Desastres).
Leia Mais