Borrando fronteiras
Em Garotas brancas, Hilton Als faz o esforço intelectual de criar e destruir categorias de gênero, raça e literárias
“Os Estados Unidos nada mais são que categorias”, escreve Hilton Als em Garotas brancas, um conjunto de ensaios que o escritor lançou pela primeira vez em 2013, e que agora chega ao Brasil na tradução de Marilene Felinto. O autor caberia dentro de muitas delas: é homem, negro, gay e grande. É um escritor, um dos críticos de maior renome dos Estados Unidos, vencedor do Pulitzer e professor das Universidades da Califórnia e Columbia. Nascido no Brooklyn, mas numa família de Barbados, viveu o pico da Aids nos anos 1980 em Nova York. Seu grupo de amigos incluía Jean-Michel Basquiat. Naquela época, era faminto por amor, “Simone Weil do gueto”, escreve. Em Garotas brancas, Hilton Als faz um esforço intelectual de criação e destruição de categorias, sejam elas de gênero e raça, ou literárias. Seus ensaios borram as linhas entre a ficção e a não ficção, a memória e a crítica.
Ao longo do livro, Als desenvolve uma conceituação elástica de “garotas brancas”, uma categoria menos sociológica do que estética, que talvez possa ser definida como uma sensibilidade, ou a característica daquilo que é visto, mas não tem poder. Ele constrói perfis sofisticados de importantes figuras da cultura americana. Truman Capote vira uma garota branca nessa tipologia, assim como a escritora de romances históricos Flannery O’Connor era também uma garota branca. Malcolm X, Michael Jackson e o comediante Richard Pryor também viram objetos de Als. Nesses perfis, o autor mostra uma imensa capacidade de discutir gênero e raça, e traz perspectivas iluminadoras a respeito dessas temáticas. A brincadeira com o conceito de “garotas brancas” é saborosa, mas não é só aí que mora o ouro.
O forte de Als está na sua engenhosidade literária. O livro é um exemplo de como a escrita de não ficção pode ser criativa e instigante. Ao longo dos capítulos, Als testa os limites do gênero de maneira cada vez mais corajosa. Um dos pontos altos é o perfil da atriz Louise Brooks. Símbolo “flapper”, é nela que se pensa quando se fala de atrizes dos anos 1920: o cabelo reto e curto, preto como carvão, com franjinhas rentes às sobrancelhas finíssimas e os lábios pequenos pintados de batom escuro. “Eu sou Louise Brooks, aquela que nenhum homem jamais possuirá”, ele escreve, abrindo o texto. O que se segue é um relato em primeira pessoa na voz da narradora Louise Brooks, uma mulher branca como a neve que durante toda a vida foi abusada, explorada e observada, mas escrito pelo escritor Hilton Als, um homem negro que durante toda a sua vida se sentiu incompreendido e dolorosamente observado. “Eu sou Louise Brooks, aquela que nenhum homem jamais possuirá – nem o biógrafo, nem o cronista, nem o fã. Todos nós somos o produto do sonho de outra pessoa. Eu sei disso desde a infância.”
Por coincidência, em fevereiro, mesmo mês em que Garotas brancas foi lançado no Brasil, a Harper Collins publicou a tradução de Vou te dizer o que penso, de Joan Didion. É Hilton Als, que tem Didion como uma de suas garotas brancas favoritas, quem assina a introdução. “Parte do aspecto notável do trabalho de Didion está relacionada à recusa em fingir que não existe”, escreve Als. A observação poderia ser aplicada também ao seu próprio trabalho. Cada frase presente em Garotas brancas é um testamento da existência do autor. É impossível ignorá-lo. Afinal, como ele escreve no primeiro ensaio do livro, “o que é escrever se não apenas um ‘eu’ insistindo no seu ponto de vista?”
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