Ilustração de Carvall
A cada minuto, 25 brasileiras sofrem violência doméstica
Dados inéditos do Ipec mostram que, no último ano, 13 milhões de mulheres disseram ter sido alvo de ofensa, agressão física ou sexual
No mês em que mulheres de todo o planeta lembram lutas históricas pela igualdade de gênero – e um ano após o anúncio da Organização Mundial da Saúde de que o mundo vive uma pandemia de Covid-19 – diferentes pesquisas pelo mundo têm, aos poucos, demonstrado que a crise sanitária é também um desastre social que acentuou desigualdades e que marcará uma geração. Se, antes da pandemia, 1 em cada 3 mulheres no mundo era vítima de violência íntima, essa situação se agravou no último ano.
Números inéditos da pesquisa realizada pelo Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria) revelam que 15% das brasileiras com 16 anos ou mais relataram ter experimentado algum tipo de violência psicológica, física ou sexual perpetrada por parentes ou companheiro/ex-companheiro íntimo durante a pandemia, o equivalente a 13,4 milhões de brasileiras. Isso significa dizer que, a cada minuto do último ano, 25 mulheres foram ofendidas, agredidas física e/ou sexualmente ou ameaçadas no Brasil.
Para chegar a este número, o Ipec entrevistou 2002 pessoas no período de 19 a 23 de fevereiro, que responderam perguntas sobre saúde, alimentação, emprego, atividades domésticas e violência no período da pandemia. Além dos elevados números de violência, a pesquisa mostra ainda que a pandemia alterou mais a rotina das mulheres comparativamente à dos homens, e que elas tiveram sua saúde mental mais impactada.
O levantamento mostra que 6% das mulheres brasileiras relataram ter sofrido agressão física por parte de seu namorado, companheiro ou ex, o que equivale a 5,3 milhões de mulheres de 16 anos ou mais. Essa vulnerabilidade se torna ainda mais acentuada quando verificamos que o percentual é maior entre mulheres de 35 a 44 anos (8%), pretas e pardas (7%) e com ensino fundamental (11%). Os números são compatíveis com o perfil das vítimas de feminicídio no país, que atinge majoritariamente mulheres entre 30 e 44 anos (41,4% das vítimas) e com baixa escolaridade, conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Os números de assédio, por sua vez, são igualmente preocupantes. Cerca de 3% das mulheres brasileiras relatou ter vivenciado assédio sexual por parte de parente, companheiro ou ex-companheiro, percentual que chega a 5% entre as mulheres de 16 a 24 anos.
Ameaças também foram uma constante na vida de muitas mulheres durante a pandemia. A pesquisa Ipec indicou que 3% das entrevistadas foram ameaçadas com arma de fogo ou faca, indicando um agravamento da violência física que pode, em muitos casos, se desdobrar em feminicídio. Esse dado se torna especialmente preocupante com o atual desmonte da legislação de controle de armas, em que o agressor poderá fabricar munição em casa e adquirir até seis armas.
A pandemia de Covid-19 trouxe para as famílias maior instabilidade econômica, aumento da convivência em casa, somados a momentos de muito estresse. A pesquisa Ipec mostra que 33% das entrevistadas passaram a ter alterações no sono no último ano, 29% começaram a sofrer sinais ou sintomas de ansiedade e 30% disseram ter mudanças repentinas de humor e/ou irritabilidade. Além dessas alterações, 13% relataram aumento do consumo de álcool, e 19%, no uso de medicamentos. Entre as mulheres, quase 65% concordam totalmente ou em parte que se sentem sobrecarregadas com as tarefas do dia a dia.
Esses dados se somam a uma inserção cada vez mais precária da mulher no mercado de trabalho, comprometendo sua autonomia econômica e colocando-as em situação de ainda maior vulnerabilidade. Reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que o percentual de mulheres brasileiras que trabalhavam ou buscavam trabalho no segundo trimestre de 2020 caiu ao mesmo nível dos anos 1980 (45,8%). Com a paralisação de escolas e creches, e pressionadas pelas demandas domésticas e a crise econômica, as dificuldades para se manter no mercado de trabalho se multiplicaram. Retrocedemos três décadas, o que não foi igualmente verificado entre os homens. Na pesquisa divulgada pelo IPEC, quase 30% das mulheres concorda totalmente ou em parte que, durante a pandemia, precisou abrir mão do trabalho para cuidar da casa e da família. A desigualdade de gênero impera no país em que o presidente da República se refere à filha mulher como “uma fraquejada”.
Esse caldeirão mistura a tensão inerente ao momento de crise sanitária, o aprofundamento das desigualdades e o agravamento da violência em suas múltiplas formas. Demanda, por isso mesmo, o fortalecimento de ações de acesso à justiça e acolhimento das mulheres em situação de violência, sem renunciar ao necessário esforço em prevenção, o que só é possível com investimento em recursos humanos e financeiros. Como explicar, portanto, que o governo federal tenha despendido apenas ¼ do orçamento previsto para o enfrentamento à violência contra a mulher em um dos momentos em que mais era necessária sua liderança e coordenação?
É preciso reconhecer que, ao longo desse um ano de pandemia, algumas medidas importantes foram tomadas para fortalecer a atenção às mulheres vítimas de violência. A Lei 14.022/20, sancionada em julho de 2020, regulamenta o registro de boletins de ocorrência online e por telefone de violência doméstica e intrafamiliar. Além disso, buscou priorizar os atendimentos às vítimas, tornando-os mais ágeis, e definiu a prorrogação automática das medidas protetivas de urgência já existentes enquanto houver estado de emergência em território nacional.
No entanto, a legislação não é suficiente se o governo federal não efetivar investimentos em políticas estruturadas de prevenção e enfrentamento à violência doméstica. Além disso, os estados e municípios precisam fortalecer suas equipes e oferecer estruturas de abrigo e suporte. Esta semana, a Prefeitura de São Paulo anunciou um pacote de medidas com foco no enfrentamento à violência doméstica, regulamentando o auxílio-aluguel de 400 reais para mulheres vítimas de violência e ampliando os horários dos postos de atendimento às vítimas. Avanços como esses são importantes no amadurecimento da compreensão de que a atuação governamental em apoio às vítimas deve ser consistente e de longo prazo, para que essa mulher não se veja em situação vulnerável novamente.
Neste momento em que as medidas de isolamento social no Brasil voltam a enrijecer, é fundamental que as políticas públicas de prevenção e enfrentamento à violência contra mulheres estejam ativas e atuando de forma eficiente. As equipes de saúde na família (já sobrecarregadas no enfrentamento ao coronavírus), bem como a rede de assistência social, têm um papel fundamental no apoio e na proteção imediata às vítimas. Os órgãos de segurança pública e as polícias precisam investir em bons sistemas de registro da ocorrência, afastamento do agressor e encaminhamento da vítima aos órgãos competentes. Por fim, do sistema judiciário espera-se uma atuação célere na emissão das medidas cabíveis para proteger as mulheres, antes que novas violências aconteçam.
A pesquisa do Ipec reforça o retrato das desigualdades de gênero no país. A pandemia e a necessidade de isolamento social têm se mostrado fatores agravantes de um cenário que já era trágico. As desigualdades se aprofundam no mercado de trabalho, no acesso à saúde e no âmbito doméstico. A violência contra mulheres é, ao mesmo tempo, uma das consequências de uma estrutura patriarcal, mas também um de seus pilares fundamentais, num ciclo perverso que se retroalimenta.
É socióloga e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Tem mestrado e doutorado em administração pública e governo pela FGV
É pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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