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    Ilustração de Carvall

questões de gênero

A cada minuto, oito mulheres agredidas

Pesquisa inédita mostra que, na pandemia, uma em cada quatro brasileiras sofreu algum tipo de violência

Samira Bueno, Amanda Pimentel e Amanda Lagreca | 07 jun 2021_14h05
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Pesquisa inédita produzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que a perda de emprego e renda (25,1%) e a maior convivência com o agressor (21,8%) são os principais pontos destacados por mulheres que sofreram violência nos últimos doze meses como fatores que contribuíram para sua vulnerabilidade à violência. Mais da metade das entrevistadas também afirma que a pandemia influenciou no agravamento da violência sofrida, tragédia anunciada e de proporções nacionais.

A pesquisa, encomendada junto ao Instituto Datafolha e que contou com apoio da Uber, foi realizada de 10 a 14 de maio e ouviu 2.079 pessoas sobre as mudanças de hábito durante a pandemia e percepções em relação à violência. Ela contou com um módulo de autopreenchimento com questões aplicadas somente às mulheres para verificar a prevalência de violência entre a população adulta feminina. Os resultados indicam que uma em cada quatro mulheres sofreu algum tipo de violência no último ano, quando o Brasil era fortemente atingido pela pandemia de Covid-19. No mesmo período, 26,5 milhões de mulheres (37,9% do total) relataram ter sofrido alguma forma de assédio sexual, mesmo com as restrições de circulação impostas pela pandemia. A maior parte dos episódios foram relatados na rua (31,9%), mas o segundo lugar mais mencionado é o ambiente de trabalho (12,8%), no qual 8,9 milhões de mulheres foram assediadas no último ano. O caso recente envolvendo Rogério Caboclo, presidente afastado da CBF e acusado de assediar sexualmente e moralmente uma funcionária, é, infelizmente, algo rotineiro na vida das brasileiras.

Dentre as modalidades mais frequentes de violência relatadas pelas entrevistadas estão humilhações e xingamentos – a ofensa verbal (18,6%) –, seguida das ameaças de agressão física (8,5%) e amedrontamento e perseguição (7,9%). No caso das agressões físicas, especificamente, 6,3% das respondentes relataram ter sofrido tapas, socos e chutes, o que equivale a 8 mulheres agredidas por minuto durante a pandemia; 5,4% sofreram ofensa sexual ou tentativa forçada de manter relação sexual e 2,4% foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento. Considerando a projeção populacional mais tímida e a menor margem de erro, estamos dizendo que quase 1 milhão de mulheres foram espancadas ou estranguladas no período da pandemia, sendo que este número pode chegar a 2,3 milhões de mulheres.

Esta é a terceira edição da pesquisa “Visível e Invisível”, realizada também nos anos de 2019 e 2017. Na comparação da vitimização geral (24,4%), temos um leve recuo em relação à edição anterior da pesquisa, que era de 27,4%, mas dentro da margem de erro da pesquisa (de 3 pontos percentuais). Esse recuo parece ser explicado pelo local onde as mulheres mais sofreram violência. A casa delas, que aparecia em 42% dos relatos da pesquisa em 2019, é agora indicada por 48,8% das respondentes como o espaço em que ocorreu o episódio mais grave de violência vivenciado no último ano. A rua, por sua vez, teve queda de 10 pontos percentuais, passando de 29,1% para 19,9%. É fato que as medidas de isolamento social necessárias à contenção da pandemia alteraram substancialmente os hábitos dos brasileiros, que permaneceram mais tempo em casa e usufruíram menos do espaço público, o que parece ter ampliado uma violência já intensa dentro do lar.

Outro aspecto importante que a pesquisa mostra é a indicação de quem são os autores dessa violência. Historicamente são pessoas conhecidas das vítimas, principalmente os parceiros ou ex-parceiros íntimos que aparecem como autores das diferentes formas de violência sofridas pelas mulheres, o que não foi diferente neste levantamento. Em 25,4% das respostas, o cônjuge ou namorado apareceu como responsável pela agressão, e em 18,1%, o ex-cônjuge ou ex-namorado. O que chama a atenção, no entanto, são os demais conhecidos que figuram na lista de principais autores de violência. Enquanto vizinhos e pessoas que residiam próximo à residência das vítimas eram citados por 21,1% das respondentes em 2019, nesta edição sobressaem pais e mães (11,2%), padrasto e madrasta (4,9%), filhos(as) e enteados(as) (4,4%) e irmãos ou irmãs (6,1%) como responsáveis pela violência sofrida, o que indica que a questão da violência de gênero é predominantemente um problema intrafamiliar, praticado sobretudo por homens contra mulheres.

Nesse sentido, não é por acaso que quando questionadas sobre os fatores que mais contribuíram para a violência sofrida, 25,1% das mulheres afirmaram que os mais importantes foram a perda de emprego e renda e a impossibilidade de trabalhar para garantir o próprio sustento. No Brasil de 2021, em que metade da população vive em situação de insegurança alimentar e 14,7% da população está desempregada, não causa espanto que a situação de mulheres em situação de violência tenha sido profundamente agravada pelas condições socioeconômicas.

 

Os dados indicam também que as mulheres que sofreram violência tiveram sua rotina ainda mais afetada do que os homens ou mesmo do que entre as mulheres que não sofreram violência. Enquanto 45,8% dos homens afirmaram ter tido diminuição da renda familiar no último ano, esse percentual foi de 50,4% entre as mulheres que não sofreram violência e de 61,8% entre as mulheres que sofreram algum tipo de violência. Mulheres em situação de violência também demonstraram níveis mais elevados de desemprego: enquanto 46,7% destas afirmaram ter perdido o emprego na pandemia, o percentual entre as mulheres que não sofreram violência foi de 29,5%, e entre os homens, de 33,4%. Questionados ainda sobre se a nova rotina imposta pela pandemia teria causado mais estresse no dia a dia do lar, 37,2% dos homens responderam positivamente, enquanto o mesmo foi verdade para 51% das mulheres que não sofreram violência. O percentual chegou a 68,2% entre as mulheres que vivenciaram violência nos últimos doze meses. Em uma sociedade fortemente marcada pela distribuição desigual dos papéis de gênero, na qual cabe preponderantemente à mulher o cuidado com a casa e os filhos em jornadas duplas e até triplas, não surpreende que, para elas, a rotina pandêmica tenha sido mais estressante.

Nesse contexto, não é por acaso que, entre as entrevistadas, quando indagadas sobre o que fizeram após a violência sofrida, apenas 24,7% afirmaram ter procurado um órgão oficial como delegacia, Polícia Militar ou ONG, 21,6% procuraram a família, 12,8% procuraram amigos e 44,9% declararam não ter feito nada. A subnotificação desses casos nos dá, assim, apenas uma visão muito parcial sobre a real dimensão do problema que enfrentamos. Em um período ainda mais instável como o da pandemia, é possível que o cuidado com a casa e os filhos e a necessidade de garantir comida na mesa tenham se apresentado de maneira ainda mais fortes às mulheres, que podem interpretar a violência sofrida por si mesmas como “menos importante” ou passível de uma resolução individual e restrita ao ambiente privado da casa. O motivo apontado para não buscar a polícia quando de uma agressão sofrida parece confirmar essa hipótese: 32,8% delas afirmaram que resolveram a situação sozinhas, e 16,8% não consideraram importante fazer a denúncia.

Assim, a pesquisa nos revela que, além de tornar o enfrentamento à violência de gênero ainda mais difícil, a pandemia parece ter contribuído também para o aprofundamento da privatização da sua discussão. A maior permanência dentro de casa, o convívio mais duradouro junto de seu agressor e as dificuldades financeiras enfrentadas pelas famílias hoje no Brasil fazem com que a resolução dos casos de violência sofrida pelas mulheres fique mais restrita ao ambiente doméstico e posta em segundo plano diante dos demais problemas surgidos no período.

Falar, portanto, em enfrentamento à violência contra as mulheres significa não apenas investir e direcionar mais recursos financeiros e humanos às instituições e órgãos que atuam no setores de proteção e assistência às mulheres, mas principalmente construir políticas públicas que busquem fornecer melhores condições econômicas a essas mulheres, para que rompam com o ciclo de violência a que estão submetidas.

O que a pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública demonstrou é que, ainda que o maior tempo vivido dentro da residência, dificuldades de deslocamento e a interrupção das aulas dos filhos tenham sido fatores que podem ter acentuado a situação de vulnerabilidade de mulheres sujeitas à violência, o que elas próprias afirmam é que as condições financeiras e materiais foram os principais fatores de vulnerabilidade e as expuseram de modo determinante no período da pandemia. Nesse sentido, é impossível resgatar essas mulheres do cotidiano de violência sem o investimento em políticas públicas voltadas à autonomia financeira das vítimas, bem como programas de transferência de renda para aquelas em situação de maior vulnerabilidade. A equação entre menos dinheiro e mais convivência com o agressor está posta, e o resultado apenas reforça o ciclo de violência contra as mulheres no Brasil.

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