Ilustração: Carvall
Cadê meus quadros?
Artista plástico relata indignação e surpresa ao receber aviso dos Correios sobre telas transportadas: “Sua encomenda encontra-se com o status de roubo”
A remessa dos cinco quadros que mostrei em São Paulo, na exposição Encontros & Tal, do Coletivo 21, estava prevista para chegar de volta ao meu ateliê no Rio no sábado, 18 de junho. Era o que prometiam os Correios. Após um dia de atraso, o que achei até plausível pelo fato de a data prevista para entrega cair em um fim de semana, consultei o site dos Correios, na área de rastreamento do Serviço de Encomenda Expressa Nacional, o popular Sedex. A notícia veio em uma linha seca, impessoal e repentina: “Objeto roubado dos Correios.” O roubo, segundo o site, aconteceu no Rio de Janeiro.
“Como assim, roubado?” O pensamento incrédulo foi o primeiro que me passou pela cabeça. Um telefonema do amigo e colega artista do Coletivo 21, Antonio Carlos Lima, que gentilmente havia se oferecido para mandar os trabalhos de volta ao Rio, me acalmou. Depois, fui eu que tive de consolá-lo, pois parecia mais arrasado do que eu. Mas me trouxe uma boa notícia no meio daquele sentimento de impotência. O prejuízo financeiro seria ressarcido graças à “declaração de bens” que ele providenciara junto aos Correios, algo como um seguro em caso de dano ou perda.
O seguro, em um valor razoável, deixou-me despreocupado das questões mundanas de prejuízo financeiro e me permitiu concentrar minha dor na perda das pinturas em tinta acrílica e em aquarela, que percorrem cinco anos de produção (entre 2018 e 2022). Os trabalhos seriam expostos em setembro, na Estação Primeira de Mangueira.
As telas têm como assunto as rodas de samba, em especial as realizadas nas dependências da quadra da Mangueira, um sábado por mês. Tudo começa com desenhos a lápis feitos durante o samba. Depois, observando esses registros em tempo real, vou chegando a composições que transponho para as telas.
Acompanho as rodas de samba sempre junto à Velha Guarda da Bateria da Mangueira e tenho quase como função na ala fazer esses desenhos. Quando o presidente dá o “salve” no grupo de Whatsapp, avisando que vai haver pagode, sempre reforça: “Tragam seus instrumentos.” A rapaziada já sabe que, enquanto eles levam seus surdos, tamborins, cuícas, caixas, eu vou chegar de lápis e papel na mão. As pinturas roubadas, além do assunto em si, que me é caro demais, têm toda essa carga de vivência emocional. Isso não há como recuperar.
Às memórias afetivas desses trabalhos juntam-se a impotência e a incerteza quanto ao destino das obras. O que aconteceu ou vai acontecer com elas? Terão sido jogadas em um canto, pinturas e emoções abandonadas, estarão pegando poeira, esquecidas? Terão sido resgatadas por alguém que as pendurou em alguma parede em algum lugar desse planeta? (Essa é a melhor hipótese.) Terão sido vendidas com o restante do produto do roubo? Passaram a fazer parte de algum mercado informal de arte? Ou transformaram-se em simples insumo para uma fogueira, utilidade mais do que pertinente nesses dias frios que assolam o Rio? As hipóteses vêm e voltam à mente, em moto-contínuo.
Fantasio finais felizes, quase como devaneios. Vejo-me andando por feiras de arte e artesanato pela cidade e dando de cara com os trabalhos, prontos para serem readquiridos; ou pelas tendinhas da Mangueira que vendem os mais diversos produtos em verde e rosa. Camisas, bonés, adereços. Por que não quadros? Já os imaginei em vitrines de lojas de antiguidade, disputando espaço com quadros de autoria suspeita.
Enquanto esses sonhos de olho aberto não se transformam em realidade, um alento surgiu de onde menos se espera: as redes sociais. Os posts em que informo o roubo e mostro minha tristeza com os acontecimentos “bombaram” (no meu nível de bombar, evidentemente). Amigos artistas, sambistas, jornalistas – muitos deles se encaixam em mais de uma categoria – mostraram-se solidários. Lamentaram, disseram-se estarrecidos com o acontecido.
O “modo boas vibrações” foi ativado durante alguns dias em que realmente precisava de carinho. Houve muitos compartilhamentos na tentativa de encontrar os trabalhos. É acalentador ver gente desconhecida, os amigos dos amigos dos amigos, elogiando as telas e lamentando a perda. Ao entrar em contato com o “fale conosco” dos Correios, a empresa parece estar marchando com os que acreditam na recuperação dos trabalhos.
Mas meu otimismo tem prazo de validade, 27 dias. Os Correios informam: “Infelizmente fomos assaltados e sua encomenda encontra-se com o status de roubo.” Após pedirem desculpas pelos inconvenientes, afirmam: “Estamos tentando recuperar a carga, que poderá ser entregue em até 27 dias. Após esse período iremos providenciar o ressarcimento do valor pago pela postagem, acrescido da indenização do valor declarado no ato da postagem.”
Traduzindo para o popular: espera um mês e depois a gente começa os trâmites para pagar. Tomara que seja uma espera mais leve do que o calvário a que uma fabricante de eletrônicos me obrigou para recuperar o valor pago por um telefone celular danificado ainda no prazo de garantia.
Passado o luto que me fez pensar em dar essa série do samba por encerrada e voltar aos poucos a trabalhar com o tema, um problema de ordem prática se estabelece. Daqui a dois meses, mais ou menos, participarei de outra exposição do Coletivo 21, novamente em São Paulo. Como enviar os trabalhos? Pensei em alternativas aos Correios. Pode ser uma empresa especializada em remessa expressa. Ou uma transportadora que utilize carga fracionada. São boas opções, mas artistas amigos me relataram experiências traumatizantes, incluindo PTs (perdas totais) com essas alternativas também.
Parece não haver muita saída. O risco existe. É recomendável fazer um seguro. Pelo menos, com a questão financeira equacionada, resta chorar a perda do acervo e sofrer com toda a emoção, sentimento, experiência pessoal, estudos e técnicas que aparecem no embate entre o artista e o trabalho em processo. Mas que pode ser visto também como um simples pedaço de pano coberto de tinta.
Abaixo, imagens das telas roubadas.
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