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questões candentes

Câmeras verde-oliva de olho na ciência

Na SBPC, militares registram palestra crítica à política científica do governo Bolsonaro e pesquisador reage: “O que eles esperavam, carinho?” 

Bernardo Esteves | 26 jul 2019_13h57
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Quatro militares fardados registraram com câmeras um debate sobre a política científica do governo Jair Bolsonaro durante a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC, que acontece até sábado, dia 27, em Campo Grande. Munidos de câmeras e tripés, captaram imagens das duras críticas que pesquisadores e gestores de instituições científicas fizeram aos cortes que o governo vem realizando nos recursos para ciência e educação.

Maior encontro científico da América Latina, a reunião anual da SBPC teve um público estimado em 15 mil pessoas que participaram de conferências, cursos e outras atividades no campus da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, a UFMS. Durante o regime militar, as reuniões da SBPC foram foco de debate e questionamentos à ditadura. Nos últimos anos, recuperaram a alta voltagem política na esteira do engajamento dos pesquisadores contra os cortes de recursos federais para a ciência e tecnologia que vêm ocorrendo desde o segundo governo de Dilma Rousseff.

A reunião deste ano – a 71ª – começou em clima de elevada tensão política, com um desagravo da SBPC ao físico Ricardo Galvão, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), acusado pelo presidente Jair Bolsonaro de produzir dados pouco confiáveis sobre o desmatamento na Amazônia. “Críticas sem fundamento a uma instituição científica, que atua há cerca de sessenta anos e com amplo reconhecimento no país e no exterior, são ofensivas, inaceitáveis e lesivas ao conhecimento científico”, afirmou o manifesto divulgado na abertura do encontro.

A presença das Forças Armadas na reunião da SBPC não é novidade – militares e cientistas têm muitos projetos e interesses comuns –, mas chamou a atenção em Campo Grande pelo contingente. Havia oficiais do Exército e da Marinha entre os palestrantes, e o Comando Militar do Oeste (CMO), sediado na capital sul-mato-grossense, ocupou um estande em que expôs tanques e outros equipamentos usados em operações de fronteira. O CMO participou do encontro a convite da reitoria da UFMS, que desejava “estreitar os laços com o Exército”, nas palavras da vice-reitora Camila Ítavo. No dia 10 de julho, o general Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), autorizou que uma servidora da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, fosse nomeada assessora da reitoria da UFMS.

A sessão sobre a política científica do governo Bolsonaro registrada pelos militares aconteceu na terça-feira, dia 23, e foi coordenada pelo neurocientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Com fardas camufladas que chamaram a atenção do público, os quatro se postaram em vários pontos do auditório e documentaram a sessão do começo ao fim. 

Ribeiro apresentou as conclusões de um grupo de trabalho com quinze integrantes, incluindo presidentes e ex-presidentes de sociedades científicas e agências de fomento e um ex-ministro da Ciência. “É um trabalho de nove páginas elaborado ao longo de meses, que descreve o que é o sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação, mostra como ele evoluiu e como está sendo destroçado nos últimos cinco anos”, disse Ribeiro, coordenador da iniciativa, em entrevista à piauí. “O trabalho tem uma avaliação muito rigorosa e crítica, mas está todo referenciado e baseado em fatos.”

O governo sai mal nas conclusões do trabalho, que apontou a crise sem precedentes para a ciência brasileira e apontou suas prováveis consequências para a economia. Ribeiro lembrou que as bolsas de pesquisa do CNPq deixarão de ser pagas em setembro caso não haja aporte de recursos por parte do governo, e que o FNDCT, um fundo nacional para financiar projetos de ciência e tecnologia, teve 90% dos seus recursos contingenciados neste ano. “O que eles esperavam, carinho?”, indagou o pesquisador. “Se não querem ouvir isso vão ter que se esconder, porque a realidade está na cara.” Quando o microfone foi aberto para contribuições do público, uma servidora aposentada da UFMS notou que o registro feito pelos militares evocava os anos da ditadura. Os quatro ficaram aparentemente constrangidos, mas continuaram operando suas câmeras sem se manifestar.

Ribeiro disse ter ficado apreensivo ao notar os militares com suas câmeras, mas agiu com naturalidade. O pesquisador não quis dar importância indevida ao episódio. “De repente tem uma explicação banal”, afirmou, lembrando que outras pessoas também registraram a sessão. “Mas também pode ter sido uma ação intimidatória. É difícil interpretar na ausência de outros fatos.”

Procurada pela piauí, a assessoria de imprensa do Comando Militar do Oeste afirmou que os militares não agiram por orientação do Exército e não soube esclarecer seus objetivos, “pois o fizeram por interesse pessoal no tema”. As únicas sessões da reunião da SBPC registradas por determinação do Comando são as palestras ministradas por integrantes das Forças Armadas, informou a nota. 

Segundo o CMO, não foram feitas gravações, só fotos. O CMO não esclareceu o que será feito do material coletado e afirmou que não pretende tomar qualquer atitude a respeito, “pois seria um desrespeito ao direito individual do militar”.

Para Ribeiro, mais importante que discutir o gesto dos militares é focar nos problemas enfrentados pela ciência brasileira. “O importante não é que registraram a palestra, o mais grave é o colapso do sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação. A notícia não é que Ricardo Galvão bateu boca com Bolsonaro, é que o desmatamento na Amazônia disparou”, prosseguiu o pesquisador. “Temos que tomar o cuidado de não ficarmos falando da espuma e nos esquecermos da essência.”

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