Os caixões de Nasrallah e de seu primo Hashem Safieddine foram escoltados por soldados do Hezbollah, que vestiam fardas camufladas e balaclavas. As autoridades libanesas estimam que mais de 450 mil pessoas compareceram ao velório Foto: Rami Hussein
Cenas de um funeral de Estado
O adeus a Hassan Nasrallah, líder que transformou o Hezbollah em uma das maiores forças políticas e militares do Oriente Médio, marca o fim de uma era na região
“Para nós, do Sul global, é um momento importante para demonstrarmos unidade. Sayyed Hassan Nasrallah foi uma inspiração na luta pela libertação, assim como muitos de nossos heróis. Entre eles, meu avô.” Zwelivelile Mandela, neto do ex-presidente sul-africano, havia chegado a Beirute poucas horas antes. Conversou brevemente com a piauí no lobby do Galleria Hotel enquanto aguardava a credencial que lhe permitiria comparecer ao funeral de Nasrallah, ex-secretário geral do Hezbollah, morto aos 64 anos. O evento, realizado em 23 de fevereiro, reuniu políticos e intelectuais do mundo todo engajados na causa Palestina. Do lado de fora do hotel, a capital fervilhava. Outdoors estampavam o rosto de Nasrallah e militares patrulhavam as avenidas, muitas delas interditadas para garantir a circulação dos carros e da multidão que se dirigia ao Camille Chamoun Sports City. No estádio de futebol, desativado desde 2020, seria realizada a primeira parte da cerimônia.
A comoção pela morte do chefe do Hezbollah é, para muitos observadores internacionais, um fenômeno de difícil compreensão. Nos Estados Unidos e em parte da Europa, o grupo é tratado como uma organização terrorista. No Líbano, contudo, o Hezbollah é uma força política institucional, muito presente no cotidiano dos muçulmanos xiitas, que compõem cerca de 30% da população. A popularidade do grupo se deve principalmente ao fato de ter derrotado Israel em sucessivas guerras desde os anos 1980, quando foi criado.
Carismático, Nasrallah era o principal rosto do Hezbollah e considerado por muitos o homem mais influente do Líbano. Nascido em Beirute, seguiu carreira de clérigo e se uniu à organização pouco depois de sua fundação. Em 1992, quando os israelenses assassinaram o então secretário-geral do grupo, Abbas al-Musawi, coube a Nasrallah sucedê-lo. Dali em diante, sob seu comando, o Hezbollah ganhou notoriedade internacional e passou a oferecer uma ampla rede serviços de saúde, educação e assistência social nos territórios que ocupava, o que muito colaborou para a popularidade do líder.
Seu legado é controverso. Dono de uma retórica feroz contra Israel e a influência americana no Oriente Médio, Nasrallah foi acusado por lideranças políticos do Ocidente e por parte dos libaneses, sobretudo os cristãos, de ser antissemita, terrorista e assassino. Tinha, contudo, a admiração de parte expressiva dos xiitas e de defensores da causa Palestina do mundo todo, que viam nele um poderoso aliado contra as investidas expansionistas de Israel.
Nasrallah morreu durante um intenso bombardeio israelense à região Sul de Beirute, em setembro de 2024. O ataque, parte da ofensiva de guerra contra o Hezbollah, foi tão violento que o New York Times descreveu “uma nuvem gigante em formato de cogumelo” se formando no céu da capital. Pouco depois, Israel anunciou ter matado também o primo de Nasrallah, Hashem Safieddine, que o havia sucedido como secretário-geral. Devido à continuidade dos ataques israelenses ao Líbano e as consequentes restrições de segurança, o funeral em homenagem a Nasrallah foi realizado com cinco meses de atraso.
A demora acabou atribuindo um significado maior à cerimônia. Ela parecia marcar não apenas a despedida de um líder político, mas de uma era. A morte de Nasrallah, resultado da guerra contra Israel, representou uma perda significativa para o Hezbollah, sobretudo em termos simbólicos. O secretário-geral desempenhou papel central na retirada das tropas israelenses do Sul do Líbano em 2000 e na defesa contra a ofensiva israelense na guerra de 2006. Aos olhos de seus seguidores, Nasrallah simbolizava a vitória.
Sua morte, além disso, coincidiu com mudanças no equilíbrio de poder do Oriente Médio, a começar pela queda do regime de Bashar al-Assad, na Síria, em dezembro do ano passado. Nos catorze anos em que esteve mergulhada numa guerra civil (2011-2024), a Síria se transformou em um território estratégico para a chamada “crescente xiita” – expressão que se refere a uma espécie de ponte geográfica entre os grupos de combatentes apoiados pelo Irã, entre eles o Hezbollah, no Líbano, e os Houthis, no Iêmen. Durante anos, o regime de Assad serviu como um corredor essencial para que o Irã pudesse fornecer armas, equipamentos e todo tipo de suprimentos ao grupo de Nasrallah. Com a derrubada do presidente sírio, que deu lugar aos sunitas do grupo Hay’at Tahrir al-Sham (HTS), essa logística foi comprometida, dificultando o apoio iraniano ao Hezbollah.
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O Hezbollah surgiu sob o impacto da Revolução Iraniana, que em 1979 transformou o país em uma teocracia islâmica. Seguiu-se uma espécie de awakening do Islã em toda a região, e o xiismo, até então apenas uma vertente teológica, passou a ser institucionalizado como política de Estado. Teerã começou a exportar sua revolução fornecendo apoio logístico, financeiro e militar a grupos xiitas em outros países, entre eles o Hezbollah, no Líbano. Os xiitas, sendo minoria em quase todos os países do Oriente Médio e frequentemente marginalizados, tendiam a se alinhar ao projeto político e identitário que emanava do Irã.
A defesa da Palestina é parte desse ideário comum. O Hezbollah foi fundado durante a guerra civil do Líbano (1975-1990) para resistir à invasão israelense ao país, onde vivia na época o líder palestino Yasser Arafat. “Muitos dos principais fundadores do Hezbollah faziam parte da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Alguns foram treinados pela OLP no Sul do Líbano”, diz Nikolas Kosmatopoulos, professor de antropologia e política da Universidade Americana de Beirute (AUB), que compareceu ao funeral em fevereiro.
A guerra civil libanesa terminou com a assinatura do Acordo de Taif, que previa o desarmamento de todas as milícias que atuaram no conflito. A única exceção foi o Hezbollah, autorizado a manter suas armas sob o argumento de que era necessário “tomar todas as medidas necessárias para libertar todos os territórios libaneses da ocupação israelense”, como diz o documento aprovado pelo parlamento libanês em 1989. Na prática, o governo do Líbano, sem estrutura militar para enfrentar Israel, passou a coexistir com o Hezbollah como uma força paralela. O fato de Israel ter mantido tropas mobilizadas no Sul do Líbano até 2000 ajudou a alimentar um sentimento de resistência que fortaleceu o grupo. Como seu líder, Nasrallah se tornou o rosto da luta contra os israelenses.
Por isso Zwelivelile Mandela, naquela manhã, carregava no peito um broche com as bandeiras da África do Sul e da Palestina. Na aglomeração do lobby, era possível distinguir também o rosto de Leila Khaled, integrante do comitê central da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP). Ela estava envolta em um keffiyeh, o tradicional lenço xadrez preto e branco que se tornou um símbolo da identidade política dos palestinos.
Depois de obterem suas credenciais no hotel, os jornalistas e convidados foram embarcados em vans e levados até o estádio. A cada um foi entregue um cordão e um crachá com a identidade visual do funeral: a frase “estamos na promessa” em amarelo e verde escuro, cores da bandeira do Hezbollah. A mesma frase era martelada em banners, panfletos e telões. A mensagem que se queria passar era clara: embora a morte de Nasrallah fosse motivo de luto, o grupo permanecia unido e ativo em defesa do Líbano.
Homens e mulheres foram alocados em partes distintas do estádio. Elas ficaram nas arquibancadas e demais setores localizados na parte superior; eles, no chão, mais próximos aos caixões de Nasrallah e Hashem Safieddine. A maioria dos presentes, incluindo jornalistas, vestia preto. De tempos em tempos, a multidão, empunhando bandeiras do Hezbollah, entoava: “Labbeyk ya Nasrallah” – “estamos à sua disposição, Nasrallah.” Surgiram também palavras de ordem como “morte a Israel, morte à América”.
Havia, no estádio, pessoas de diferentes idades. Algumas choravam, outros observavam em silêncio o desenrolar da cerimônia. “Eu queria que as pessoas estivessem reunidas aqui para presenciar um discurso de Nasrallah, não seu funeral”, me disse uma jovem de 19 anos, com lágrimas nos olhos. Ela tinha viajado da região do vale do Bekaa, na fronteira com a Síria, até Beirute para comparecer à cerimônia, acompanhada de amigos e familiares. “Nasrallah é a nossa definição de segurança. Quando ouvimos a notícia da sua morte, sentimos que perdemos tudo. Ele é a segurança do Líbano, não apenas dos xiitas”, continuou a jovem, que pediu para não ter seu nome divulgado. Durante o funeral, caças israelenses sobrevoaram Beirute de forma sincronizada.
As autoridades libanesas estimaram que mais de 450 mil pessoas compareceram ao funeral. A cerimônia, que durou três horas, começou com orações. Em seguida, poetas e ativistas subiram ao palco para homenagear os mortos com poesias e músicas. Por fim, autoridades xiitas discursaram sobre o legado de Nasrallah. Líder supremo do Irã desde 1989, o aiatolá Ali Khamenei falou por vídeo, transmitido em um telão dentro do estádio. “Nasrallah alcançou a glória e seu corpo repousa em uma terra abençoada, mas sua alma e seu legado continuarão iluminando o caminho para os fiéis”, afirmou. Naim Qassem, o novo secretário-geral do Hezbollah, foi o último a discursar, e prometeu seguir os passos de Nasrallah.
Do lado de fora, aqueles que não conseguiram entrar no estádio lotavam a avenida, atentos aos telões que transmitiam o evento. Soldados do Hezbollah montaram guarda no local, que repetia a divisão que se via no estádio: homens de um lado da rua, mulheres do outro. Entre elas, Sara Yunis, de 30 anos, doutora em ciência política. Com a voz embargada, disse à piauí que Nasrallah “era como um pai para nós”. Um grupo de iraquianos carregava um banner com a seguinte inscrição: “Viemos do Iraque até você; estamos na promessa.”
Os dois caixões desfilaram pelo estádio e em seguida foram transportados pela avenida Hafez al-Assad até o bairro de Burj al-Barajneh, onde os corpos seriam enterrados. Durante todo o trajeto, o caminhão que levava os caixões foi escoltado pelos soldados do Hezbollah, que vestiam fardas camufladas e balaclavas na cor bege, preservando suas identidades e formando uma multidão de aparência homogênea. O veículo só chegou ao local do enterro quando já anoitecia. Três soldados receberam keffiyehs arremessados por fiéis, passaram-nos sobre os caixões e devolveram aos seus donos. Como um ato simbólico de bênção, xiitas costumam passar peças de roupa – como lenços, chapéus ou camisas – sobre os caixões de seus líderes religiosos, levando-as consigo como amuletos de proteção e boa sorte.
A última passarela por onde passou Nasrallah era protegida por grades de ferro. Apenas jornalistas e integrantes do Hezbollah podiam acessá-la. Soldados se enfileiravam nas laterais de um tapete vermelho que terminava em um santuário, construído pelo Hezbollah especialmente para receber o corpo de seu líder. Ali, os integrantes do grupo, que se mantiveram impassíveis durante toda a cerimônia, puderam também ceder às emoções.