Foto: Arquivo pessoal
A chantagem da cloroquina
Como a Prevent Senior me coagiu a tomar o kit Covid
A rede de planos de saúde e hospitais Prevent Senior tornou-se alvo da CPI da Pandemia depois que ex-médicos da rede denunciaram o uso não autorizado de tratamentos ineficazes contra a Covid-19 em pacientes, a ocultação de mortes em pesquisas sobre a hidroxicloroquina e a adulteração de atestados de óbito. Descobriu-se que muitos dos pacientes internados nos hospitais da rede foram tratados com o chamado “kit Covid” sem saber e, em caso de morte, a declaração de óbito emitida pelo hospital não listava a Covid-19 como causa principal ou secundária.
Ao investigar as razões que levaram os gestores da rede a adotarem tal conduta, a CPI busca entender se eles seguiram orientações do Palácio do Planalto, que montou “gabinete paralelo” para a divulgação de tratamentos não recomendados contra a doença. A piauí publica abaixo o depoimento de um paciente que conta ter sido coagido a usar o “kit Covid” por um médico da Prevent Senior, que ameaçou retirar a cobertura do plano caso ele não aceitasse o tratamento precoce.
(Em depoimento a Ana Clara Costa)
Sou produtor de eventos, tenho 38 anos e moro em São Paulo. Fui contaminado pela Covid-19 duas vezes – nas duas, fui tratado num hospital da Prevent Senior no bairro de Santana. A primeira vez foi logo no início da pandemia, em março de 2020. Comecei a sentir sintomas gripais e fui direto ao hospital me consultar na emergência. Por um exame de oxímetro, mediram minha saturação sanguínea, o que permite aferir a falta de oxigênio no corpo antes de o paciente começar a sentir falta de ar. Também fizeram uma ressonância nos meus pulmões para detectar se havia comprometimento em razão da inflamação viral.
Felizmente, detectaram que eu estava bem e me mandaram para casa, recomendando doses de Novalgina enquanto durassem os sintomas gripais.
Em junho deste ano, voltei a me contaminar. Mesmo tendo tomado a segunda dose da vacina, meu pai e minha madrasta começaram a sentir os sintomas. Minha madrasta passou por um episódio de desmaio, e eu fui até sua casa prestar socorro. Embora estivesse usando luvas e máscara, tive contato com o vírus. Dois dias depois de socorrê-la, em 7 de junho, comecei a sentir uma dor fortíssima na garganta. Me dirigi novamente ao hospital da Prevent Senior, temendo estar com Covid-19. Eu ainda não havia tomado a vacina.
Dessa vez, tudo foi diferente. Primeiro, passei por uma pré-triagem feita pela enfermagem. Mediram minha temperatura, a minha saturação sanguínea, perguntaram se eu sentia algum incômodo ou dor e me encaminharam para fazer o exame de Covid-19. Como o resultado não era imediato, me dispensaram e pediram que eu aguardasse o diagnóstico em casa. Como minha garganta estava muito inflamada, me receitaram um anti-inflamatório. Os sintomas, dessa vez, eram muito mais fortes. Não parecia gripe, como na primeira infecção. A dor na garganta era tão forte que me sentia como se tivesse uma faringite.
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Cerca de seis horas depois do exame, recebi uma ligação da área de telemedicina da Prevent Senior. O médico me informou que meu exame testara reagente para o antígeno do vírus Sars-CoV-2 e que eu precisava iniciar imediatamente o tratamento. Estranhei, pois sabia que não havia um tratamento para a doença – e que poderia talvez tomar um analgésico para aplacar possíveis sintomas de dor. Mas o médico foi taxativo: me falou que eles disponibilizariam o kit Covid e que eu deveria tomar a medicação. Perguntei então o que havia no kit. O médico me respondeu: hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina e prednisona, além de alguns complexos vitamínicos. Eu disse a ele que não tomaria hidroxicloroquina nem ivermectina por saber que eram medicamentos ineficazes no tratamento da doença. Tenho pressão alta e não posso tomar medicação aleatoriamente, sob o risco de piorar a minha condição. Disse: “Prefiro não tomar.”
Minha negativa não foi bem aceita pelo doutor. Ele tentou me convencer dos benefícios da hidroxicloroquina e da ivermectina. Em seguida, partiu para uma pressão mais incisiva: disse que era o único tratamento recomendado pelo plano de saúde. Eu continuei reticente, e ele então arrematou: se eu não seguisse o tratamento prescrito pelo plano, a Prevent Senior não se responsabilizaria em caso de complicações com a doença. Ou seja, se eu precisasse de internação ou qualquer outro tratamento, eles não poderiam cobrir em razão da minha negativa em seguir com o tratamento prescrito. Então pedi ao médico que me informasse seu registro no Conselho Regional de Medicina e seu nome completo. Ele tentou me enrolar, dizendo que a ligação estava sendo gravada. Ou seja, que eu poderia requerer o conteúdo gravado se assim desejasse.
Não insisti para que me revelasse seus dados porque pensei que, quando me enviassem a receita médica para o kit Covid, haveria seu nome e CRM, ou de algum médico responsável. Ou seja, algum profissional responderia por aquilo. Qual não foi minha surpresa quando, logo depois de desligar a chamada, recebi as prescrições sem as informações do profissional responsável. O documento veio por meio de mensagem de celular e eu também podia acessá-lo no site da Prevent Senior. Ocorre que não havia qualquer informação sobre o médico: havia apenas um código de seis dígitos que eu deveria apresentar na farmácia e, assim, ter a medicação liberada.
Fiquei me questionando sobre aceitar ou não essa medicação. Mas a verdade é que eu estava muito assustado. Tenho a comorbidade da pressão alta e estava sentindo muita dor de garganta. Fiquei com medo de não usar e depois ter minha internação negada pelo plano, caso o quadro evoluísse para uma infecção mais grave. Como seria se isso ocorresse? Eu iria me tratar como? Que tipo de transtorno eu causaria para a minha família?
Diante desses temores, resolvi usar o kit. Como eu não podia sair de casa, minha cunhada foi até a farmácia e comprou a medicação. As doses eram altas. No primeiro dia, dois comprimidos de sulfato de hidroxicloroquina de 400 mg, quatro de ivermectina de 6 mg, três de prednisona de 20 mg e um de azitromicina. Nos dias seguintes, as doses se alternavam. Mas a hidroxicloroquina tinha de ser ingerida diariamente até o sétimo dia de tratamento.
Me senti muito mal durante esse período. Tive arritmia cardíaca, diarreia e falta de ar – efeitos colaterais que nunca saberei se foram causados pelo vírus ou pela medicação. Ao final dos sete dias, uma enfermeira me ligou para perguntar como eu estava e se eu havia ingerido o kit Covid corretamente. Eu já estava me sentindo melhor, e os sintomas estavam desaparecendo. Respondi ao seu questionário e desliguei. Hoje, vejo que fui coagido a fazer o uso de remédios contra a minha vontade, sob ameaça de não ter a cobertura do plano caso precisasse de internação. Diante das revelações feitas pela CPI da Pandemia sobre a Prevent Senior, vejo que não fui o único e que houve situações piores que a minha, em que médicos e gestores agiram com crueldade, negando atendimento ou prescrevendo tratamentos ineficazes. Pedi acesso ao áudio do teleatendimento e vou processá-los para buscar reparação. Mas sinto por aqueles que, seguindo as prescrições dos médicos da Prevent Senior, não estão mais aqui para fazer o mesmo.
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