Chão de estrelas, arranha-céu: Orestes Barbosa
Orestes Barbosa (1893-1966), compositor, poeta, escritor, e jornalista nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Só entrou na escola com 12 anos, por falta de recursos, e na sua infância foi alfabetizado pelo pai de Vinicius de Moraes, que também lhe ensinou a tocar violão. Trabalhou em vários jornais cariocas, Diário de Notícias, A manhã, A Noite, O Dia, O Globo e em 1917 estreou como poeta. Orestes Barbosa é um dos grandes letristas da música popular brasileira, autor do verso quem sabe o mais belo da língua portuguesa, no dizer de Manuel Bandeira, “tu pisavas os astros distraída”, que está em Chão de estrelas.. Entre seus parceiros, Noel Rosa, Wilson Batista, Custódio Mesquita, Silvio Caldas, Francisco Alves, Heitor dos Prazeres, Valzinho. Dentre suas canções Nega, meu bem, com Heitor dos Prazeres, Positivismo, com Noel Rosa, A mulher que ficou na taça, com Francisco Alves, Gato escondido, com Custódio Mesquita, Arranha-céu, com Silvio Caldas.
Nássara conta e Noel canta Positivismo, de Noel Rosa e Orestes Barbosa
A mulher que ficou na taça, Orestes Barbosa, Francisco Alves, com Francisco Alves
Orestes escreveu um delicioso e engraçado livro de crônicas dedicado à música popular brasileira: Samba – sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. O livro é de 1933 e foi relançado pela Funarte em 1978. Não se trata de um estudo da forma musical do samba, é antes um livro de crônicas, impressões, pensamentos, citações filosóficas, opiniões, fala da música e de seus protagonistas naqueles anos 30 e faz pequenos retratos, que só faltam falar e cantar, dos personagens do mundo do samba: Sinhô, Mário Reis, Francisco Alves, Araci Cortes, Noel Rosa, Carmem Miranda, Pixinguinha, Silvio Caldas, Ismael Silva, Custódio Mesquita, Ary Barroso, e outros mais. Grande parte deles eram seus amigos. Escrito com muita paixão e humor, originalmente o livro teve capa de Nássara, outro brasileiro genial, caricaturista, compositor, jornalista, de quem disse Millor Fernandes que era “único” e um “gênio” do traço satírico.
Orestes nasceu e morou no Rio. Depois, esteve na Europa – França, Bélgica, Alemanha, Holanda. Quando voltou, ele, que já era poeta e cronista, tornou-se também sambista. Este livro que, diz ele, é a história do samba, também é a história do próprio Orestes: “Fiz uma antologia das ruas. Eu sou da rua”. “ Estes capítulos possuem, todavia, um mérito: foram vividos no meio dos sambistas da terra em que nasci”. Este sabor brasileiro, a vivacidade da escrita de Orestes tem sua origem nisto: são relatos vividos. O livro é delicioso e, como disse, trata de diversos assuntos, vai da crônica à citação filosófica, do mito às pequenas estórias cotidianas, celebra a cultura popular, cita e goza da cultura acadêmica. As letras das canções se misturam às impressões do cronista. Há um antilusitanismo, que lhe serve de contraponto para a afirmação de uma nacionalidade, de uma brasilidade. É seu ponto fraco.
A composição do livro lembra, assim, uma revista de variedades: fragmentária, divertida, interessante, gozadora, informativa. E eu vou seguir este ritmo assimétrico, cheio de surpresas para falar deste livro de um jeito que tenta fazer jus à sua graciosidade.
Nele, as citações filosóficas que tratam do que é a música são todas rápidas, informais. Mais sugestões do que reflexões, são instantâneos: “Parece que a música é a voz que fala dentro de nós. Foi assim que se expressou Sócrates.” “Que a música define um povo, basta pensar nos conceitos pitagóricos. E Pitágoras não se deitava antes de tocar cítara…” “ Schopenhauer disse que a música exprime a coisa em si de cada fenômeno”. Tudo isso ele cita assim, meio solto, para afinal de contas dizer que o samba é a alma do Rio, para ilustrar o que pensa.
Falando da musicalidade do carioca, Orestes conta um mito indígena: o carioca é originalmente músico e isto desde o tempo dos índios. Os tamoios diziam que o rio Carioca, que foi aterrado e passa embaixo da rua das Laranjeiras, tornava belas as mulheres que em suas águas se banhavam e também clareava a voz dos cantores. Outra estória, esta antropofágica e engraçada: “Os tamoios viviam voltados para os seus instrumentos rudes, exímios tocadores de inúbia – uma flauta feita do osso das pernas dos inimigos. Há um pequeno baú de folha, na igreja dos Barbadinhos, que guarda os despojos de Estácio de Sá. Mas falta lá um osso de perna esquerda do invasor. Possivelmente, a canela desse lusitano, flechado lá na praia do Flamengo, acabou na boca de algum Pixinguinha do tempo…”
Quando a valsa ia desaparecendo, conta-nos ele, os tangos salientes de Ernesto Nazareth iam tomando seu lugar. E “tango” era um dos nomes do samba, palavra que as pessoas ainda tinham medo de dizer: “Aquele medo de confessar a existência da nossa música com o nome próprio era igual àquele que ainda hoje chama de caboclo aos mestiços de africanos, que somos quase todos nós, desde Rui Barbosa e Santo Dumont – com muita honra pela parte que me toca, com todo o olho verde que tapeia em mim o grito de protesto de uma avó mineira e assaz morena, da mesma terra da avó do grande inventor.”
Ernesto Nazareth, continua, foi “manancial de novidades”- Ai ladrãozinho, Apanhei-te cavaquinho, Bambino. Nazareth enlouqueceu e foi internado no hospício, onde não tinha um piano para tocar e, na sua loucura, continuava compondo.
Clique aqui para ouvir Apanhei te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, com Turíbio Santos
Sinhô, continua, é a maior figura entre os que já haviam morrido na época: “Ele foi o criador de um ritmo próprio. E as suas produções constituem um patrimônio precioso da música da cidade. Mulato disfarçado, esguio e boêmio, era um extraordinário valor.”
Sobre a discriminação que o violão sofreu, Orestes conta que “a mentalidade retrógrada que dominou o Brasil até o segundo Império considerava o violão um instrumento degradante. Houve mesmo contra ele uma legislação especial. O chefe de polícia Vidigal, ao remeter, certa vez, a um juiz ouvidor desta cidade, um rapaz ‘acusado de serenata’, assim escreveu, no respectivo ofício: ‘E se V. Exa. ainda tiver sombras de dúvidas quanto à conduta do réu, queria examinar-lhe as pontas do dedos e verificará que ele toca violão.”
O fragmento sobre o gato, o samba e a cuíca é um dos momentos fascinantes do livro. O gato, “um boêmio nostálgico e sensual”, epicurista, pois dorme de dia e sai à noite, “síntese da vagabundagem inteligente”, cantado por Baudelaire, vivia tranquilo, passeando pelas madrugadas, em liberdade, pelas casas, ruas e praças até que veio o samba e, com o samba, a cuíca, e para a cuíca o malandro descobriu que o melhor couro é o do gato. E assim, tragicamente, acabou seu gozo e sossego.
Voltando o olhar para trás, Rio das serestas, flauta, cavaquinho e violão, Orestes destaca três figuras: Catulo Cearense, Geraldo Magalhães e Eduardo das Neves. Este último tinha um tom patriótico em sua poesia: A Europa curvou-se ante o Brasil / E clamou parabéns em meigo tom./ Brilhou lá no céu mais uma estrela. / Apareceu Santos Dumont” (A Conquista do ar ou A Europa curvou-se ante o Brasil)
A conquista do Ar – com Eduardo das Neves
Em Catulo da Paixão Cearense, Orestes critica a linguagem rebuscada mas reconhece o seu valor: “Não se pode negar, entretanto, que ao auto de Lira dos salões, muito devem a modinha e o violão.”
Sobre a música do passado – modinhas, valsas e serestas -, comparando-as a então nova música, o samba, Orestes diz: (elas) “Não saíam do lirismo. O samba é mais plástico. É filosófico, trocista, amoroso, familiar, pedagógico, científico, estatístico, jurídico, vingativo, generoso, aclamador, irônico e sentimental”. O jeito de cantar modinhas e serestas sofria grande influência da ópera: “Antigamente o melhor cantor era o que gritava mais. A serenata estacionava numa esquina, em torno a um combustor de gás, de chama amarelada e trêmula e, quanto mais demorava no agudo a tensão das veias do cantor, maior era o entusiasmo das janelas que se abriam, e nas quais surgiam, ao lado das líricas de tranças e papelotes, os pais austeros e as matronas obesas, de matinée, porque gordura foi beleza nos tempos que estou a evocar.” Com a força que faziam para cantar alto e sustentar os agudos, os cantores acabavam por engolir parte das letras ou torná-las incompreensíveis, pois “ o essencial era dilatar as artérias e gritar. Os ouvintes apanhavam algumas palavras. O resto, adivinhavam. Garantiam a música no ouvido e pediam cópia do berreiro para estudar.(…) Na ópera, a garganta ou arrebenta, ou vence os fagotes, os oboés, as requintas e os bombos de trovão.”
E era outro o jeito de cantar a nova música: “Os cantores de hoje não acordam ninguém. Embalam o sono. São as “vozes veladas, veludosas vozes de que nos falava o autor dos Broquéis”. Então era isso: a voz agora não acordava, mas embalava, ninava, acariciava o ouvinte. Tinha maior delicadeza, menos emoções violentas e mais ternura, sedução e graça. Lembremos que estamos em 1933. E se a gente pensar na Bossa Nova, vamos ver que há uma linha de sutilização do canto, de maior sensibilidade que vai sendo traçada pela a canção brasileira, até chegarmos ao canto falado de João Gilberto. Na época que Orestes escreveu este texto já havia despontado Mário Reis, mas Orlando Silva ainda não. Daí sua ausência neste livro.
Uma outra característica dos novos tempos é o advento do rádio e a mudança na percepção auditiva do ouvinte, que não quer mais só ouvir a melodia mas também entender as palavras, que geralmente contam uma estória de amor. “E quem escuta essas revelações das almas diminui o volume do som do aparelho e quase adormece num esmorzando de samba canção…”
Francisco Alves, para ele o maior cantor do Brasil, é “dono de uma voz que vai morrer com ele, porque não há fôlego, não há escola, não há estudo que dê aquele forro de veludo existente na garganta do cantor de Meu companheiro, Deusa, Lua Nova e Voz do violão…”. “…pois, quando ele abre a boca, a alma carioca sai pela sua boca como um delírio, como um narcótico, uma voz que tem cristais e nuances de ocarinas; um gorjeio humano, impressionante e comovedor.”
Dentre as mulheres artistas, Orestes elege Aracy Cortes: “Zilda de Carvalho Espíndola, a morena dulçorosa que nos palcos é Aracy Cortes, não tem, no momento, na interpretação do samba, concorrente que se lhe possa igualar. Com a suavidade da sua voz, com seu tempero de mel e ametista, está isolada na sua fulguração.” Aracy veio do circo, foi para os teatros e aí brilhou.
Linda Flor, de Henrique Vogeler, com Aracy Cortes
Jura, de Sinhô, com Aracy Cortes
Mario Reis no samba é criador, diz Orestes. Com elegância e bossa, é “um esteta sincero”, e rompeu com as convenções ao cantar desse jeito manso e falado, “cantando o samba numa blandícia que fez escola, e na perfeição de uma pronúncia clara e eternecedora a todos conquistou.”
Novo amor, de Ismael Silva com Mário Reis
Formosa, Nássara,J. Ruy, com Mário Reis e Francisco Alves
Diz Orestes: “Noel Rosa, figura de relevo. Só ele daria um curioso livro de análise do samba e de uma personalidade singular”. Noel genial, aqui, agora tematizando os dois lados da mentira: a mentira que engana e faz mal e a mentira necessária. Poeta da vila, filósofo do samba e da vida, o genial Noel Rosa.
Bom, vou ficando por aqui, pois se for falar do samba e do livro de Orestes, hoje eu não vou terminar. Orestes, grande letrista, com o brilho das estrelas e dos anúncios luminosos escreveu seu nome na canção popular brasileira.
Arranha-céu, Orestes Barbosa, Silvio Caldas, com Silvio Caldas
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí