Chefe da Receita revela os bastidores da tentativa de Bolsonaro de pegar as joias sauditas
Primeiro, houve uma pressão total. Depois, o silêncio absoluto
No dia 29 de dezembro de 2022, uma quinta-feira, o auditor André Luiz Gonçalves Martins, hoje delegado-adjunto da Alfândega da Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos, subiu os dois lances de escadas que levam à sala onde trabalha no Terminal de Cargas, e mergulhou em “um dia cheio, de extrema pressão, com desconforto”, como ele mesmo define. Assim que entrou, topou com o delegado Mario de Marco, com quem divide a sala e uma trajetória profissional – os dois ingressaram juntos na carreira, há dezessete anos, e sempre trabalharam por perto.
O colega já estava imerso em uma missão tensa e corrida desde o dia anterior, quando o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, enviara ao então secretário da Receita Federal, Júlio Cesar Vieira Gomes, um ofício heterodoxo. Pedia a liberação de um conjunto de joias retido em outubro de 2021 por fiscais do aeroporto quando a comitiva do governo voltava da Arábia Saudita. No documento que enviou à Receita, Mauro Cid pedia a “incorporação” das joias –– e avisava que enviaria um emissário para buscá-las.
Os chefes da Receita Federal no aeroporto de Guarulhos, então, tomaram duas providências.
A primeira foi receber o emissário do governo, o sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva, na área comum de atendimento. Quando chegou ao aeroporto, no dia 29, vindo de Brasília em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB), Moreira da Silva foi encaminhado para o setor reservado aos contribuintes na área de bagagem – e onde o atendimento inteiro conta com gravação de imagem e de som. Ali, o sargento de Bolsonaro tentou desembaraçar as joias dando carteiradas e alegando urgência. Ouviu do funcionário de plantão, Marco Antônio Lopes Santana, que não era possível liberá-las porque o documento necessário, o Ato de Destinação de Mercadorias (ADM), não estava pronto.
A segunda providência dos servidores transformou o dia 29 em uma barafunda. Eles, de fato, tentaram liberar as joias – desde que o processo cumprisse as normas destinando as joias ao patrimônio público. À luz da lei, as mercadorias das trazidas da Arábia Saudita poderiam ser desembaraçadas de duas formas, ambas muito simples. Em uma delas, o viajante que as trouxe para o Brasil teria que pagar o imposto sobre o seu valor e uma multa por tentar burlar a alfândega. Na outra, o governo teria que se declarar dono das joias e explicar, oficialmente, para qual de seus acervos elas iriam.
Como o ofício enviado por Mauro Cid falava em “incorporação”, os servidores da Receita entenderam que as joias iriam para o patrimônio público. Portanto, eles deveriam obedecer ao processo legal para que isso acontecesse. Quatro pessoas passaram o dia trocando figurinhas com outras áreas e queimando as pestanas para descobrir como fazer, àquela altura, a incorporação das joias aos bens da União, seguindo a lei à risca. Além dos delegados Mario de Marco e André Martins, participaram de perto José Roberto Mazarin e Fabiano Coelho, então superintendente e superintendente-adjunto, respectivamente, da Receita na 8ª Região Fiscal de São Paulo. Ao fim do expediente, os servidores conseguiram adiantar muita coisa, inclusive a disponibilização das joias no CTMA, o sistema de controle de mercadorias apreendidas na aduana – e foi preciso quebrar a cabeça para fazer isso porque, embora ainda estivessem guardadas no reforçado cofre da Receita, as joias formalmente já haviam passado para o Ministério da Fazenda (então ministério da Economia).
No fim da tarde daquela quinta-feira, no entanto, a área de logística apareceu com uma informação crucial: o ex-ajudante de ordens Mauro Cid não tinha competência legal para fazer o pedido da tal incorporação. O ofício deveria partir da Secretaria-Geral da Presidência. Os servidores, então, avisaram o governo de que era preciso um novo ofício e se preparam para, no dia seguinte, com o papel nas mãos, encaminhar e, quem sabe, até finalizar o processo.
Mas aí, conta o auditor André Luiz Gonaçlves Martins, as coisas ficaram “mais atípicas ainda”.
Sentado em sua mesa no gabinete da Receita Federal em Guarulhos, às vezes mexendo no distintivo, ele enumera a sequência do dia:
“O que posso falar é: no dia 29 houve movimento para devolver o colar ao gabinete da Presidência? Sim. Como foi feito? E-mail, pedido, ofício. Por que não foi entregue? Porque quem pediu não tinha competência para assinar, o bem não estava disponível e era preciso passos adicionais para que isso fosse incorporado ao patrimônio da União. Não foi incorporado no dia 29, mas ainda assim houve uma visita na tentativa de levar esse bem embora? Sim, houve. Para tentar liberar no dia seguinte, a Receita Federal, então, ficou aguardando o novo ofício do agente competente.” E completa: “Mas, no dia 30, o que aconteceu? Silêncio absoluto… Já não veio o pedido, não veio e-mail, nenhum movimento…”
Martins continua: “O estranho é isso: a pressão total e o excesso de velocidade no dia 29, com uma ansiedade não justificada para o propósito que era incorporar à União. E, no dia 30, o silêncio absoluto. Ok, tiveram um ano para vir fazer a importação do bem desde que ele foi retido e aparecem pedindo às pressas, por vias transversas. Mas para nós, servidores da Receita, daria no mesmo: era uma incorporação, então iria para a União. Aí corremos para fazer. Começamos na quarta e na quinta o movimento de incorporação. Mas, na sexta, o patrimônio público deixou de ter interesse….”
Naquela sexta-feira, dia 30, véspera do fim de seu mandato, como se sabe, Jair Bolsonaro pegou um avião da FAB e deixou o Brasil, rumo à Flórida.
Desde que o caso das joias das Arábias veio à tona, em reportagem publicada em março pelo jornal O Estado de S. Paulo, a equipe da Receita Federal de Guarulhos se declarou impedida de falar sobre o assunto porque tudo o que diz respeito aos bens retidos na Alfândega envolve o sigilo fiscal dos passageiros. Os servidores passaram a dar entrevistas falando apenas em tese sobre como funciona a seleção de viajantes que serão fiscalizados, a retenção de bens e os trâmites para liberá-los. De lá para cá, vazaram os vídeos do momento em que as joias foram apreendidas e da visita do enviado de Bolsonaro que tentou levá-las às pressas — e os próprios integrantes da comitiva, como o ex-ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, dando detalhes dos presentes que trouxeram da viagem ao Oriente Médio. Do sigilo, não sobrou nada.
Ainda assim, Martins não citou nenhum nome – nem de passageiros, nem de colegas da Receita, nem de integrantes do governo de Bolsonaro – durante duas horas de conversa com a piauí em seu gabinete. O cuidado, dessa vez, é também por causa do inquérito instaurado pela Polícia Federal para investigar o caso, que corre em sigilo. Os funcionários da Receita Federal que tiveram contato com o episódio já deram seus depoimentos. Um relatório sobre o caso produzido pelos funcionários da Alfandega de Guarulhos foi enviado ao Ministério Publico Federal e ajuda a embasar a investigação.
Os relatos dos servidores públicos com detalhes da pressão feita pelo governo federal para liberar as joias, seguida do desinteresse completo no dia seguinte, podem ser considerados um dos indicativos de que Bolsonaro pretendia incorporar os brilhantes ao seu acervo pessoal – e não ao da União. Em ofício enviado à FAB em que pedia urgência para o voo que levaria o sargento Jairo Moreira da Silva a São Paulo para tentar pegar as joias, o tenente-coronel Mauro Cid justificava que seria uma viagem “para atender demandas do senhor presidente da República.” Em julgamento realizado em 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que ex-presidentes só podem manter presentes de “caráter personalíssimo” e objetos de uso pessoal, como roupas – o que, claramente, não inclui um conjunto de joias de milhões de reais.
As joias das Arábias viraram, por assim dizer, um karma para alguns dos chefes ligados à Receita Federal do aeroporto de Guarulhos. Elas são velhas conhecidas de todos por ali. Quando foram apreendidas, em 26 de outubro de 2021, Mario de Marco era chefe da Divisão de Conferência de Bagagem (Dibag), Fabiano Coelho era o delegado da Alfandega e André Martins era auditor-fiscal da área (até poucos meses antes da apreensão, era ele o delegado). O dia da apreensão foi movimentado. “Lógico que é uma coisa diferente, um bem representativo chegando com um ministro de Estado. Então o colega se cerca de outros para aplicar a legislação”, lembra Martins.
O estojo de joias – com colar, par de brincos, anel e relógio de pulso, todos da marca suíça Chopard – foi encontrado na mochila de Marcos André Soeiro, então assessor do então ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque. Pilhado tentando entrar no Brasil sem declará-las, o passageiro chamou o chefe. Bento Albuquerque, que já havia passado pela área restrita de fiscalização, voltou e deu uma primeira explicação: as joias seriam um presente oficial para a primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Os fiscais explicaram que o ministro poderia, no auto de apreensão, declarar que era um presente do governo da Arábia Saudita para o governo brasileiro — e nessa modalidade de importação não seria necessário recolher impostos. Mas Albuquerque não quis fazer a declaração.
No dia 3 de novembro de 2021, uma semana depois da apreensão das joias, o Ministério das Relações Exteriores enviou à Receita um ofício pedindo as providências necessárias para liberação dos bens retidos. A Receita respondeu com uma nota executiva informando os passos para fazer a incorporação do presente à União, a partir da identificação do real proprietário – porque, até ali, continuava valendo a informação de que as joias seriam de Soeiro, com quem foram encontradas. O governo mandaria ainda vários pedidos para que a chefia da Receita liberasse as joias, mas o ofício seguindo essas instruções para fazer o pedido correto de incorporação jamais seria enviado.
“O que soa mal? A partir de uma orientação da Receita, um ano antes, ninguém se movimenta. Deixa passar um ano e, no apagar das luzes de um governo, faz uma movimentação muito forte para receber aquilo…”, diz o delegado-adjunto.
André Luiz Gonçalves Martins tem 60 anos, é casado com uma consultora educacional e mora com um filho do primeiro casamento e uma enteada. É formado em odontologia e administração de empresas. Fala com tanto ânimo da função e das normativas da Receita Federal que parece vocacionado para a coisa. Enumera a importância da Alfândega em casos como a liberação em tempo recorde das primeiras vacinas da Covid que chegaram ao Brasil, conta histórias em que os fiscais apreenderam mercadorias ilegais e evitaram pequenas tragédias emocionais – como o caso de um rapaz interceptado com uma mala cheia de medicamentos caríssimos usados em inseminações artificiais, mas não teriam efeito porque não foram mantidos sob refrigeração (“imagine o custo emocional de casais que fariam tratamentos e não conseguiriam engravidar”, diz.)
Nos dias seguintes às entrevistas sobre o caso das joias que não foram liberadas nem mesmo sob pressão de um enviado especial da presidência da República, Martins cumpriu sua rotina de ir almoçar com colegas no Terminal 1 do Aeroporto de Guarulhos, perto do prédio da Receita. Reconhecidos, eles foram elogiados por servidores de outros órgãos, por terem mostrado a importância da estabilidade do funcionalismo público para resistir às investidas. Martins refuta a ideia de que os fiscais da Receita, nesse caso, foram heróis. “Não teve alguém que tomou a frente e falou: ‘Aqui não, eu sou o máximo, aqui não tem isso’. Não é assim que a Receita Federal funciona e pensa. Nosso trabalho é todo na impessoalidade, baseado nas regras e normas, na troca de ideias entre colegas sobre o que e como fazer. Não achamos nada, só seguimos as normativas”. E completa: “É uma equipe que funciona dentro de um trabalho honroso e, de vez em quando, a gente consegue ser honrado pelo trabalho bem-feito. No fim das contas, por vias tortas, esse caso serviu para mostrar como é fazer o certo, para a lei aduaneira.”
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