Li Zhong (李钟),《披战袍斩病魔》Médicos se vestindo para combater o vírus 'mal' (2020) Republished from China and Coronashock (2020), Tricontinental: Institute for Social Research
A China na contramão
Como foi viver num país isolado do mundo durante dois anos de pandemia
Em Pequim, o aeroporto estava quase vazio na manhã de 26 de junho de 2020. As poucas pessoas no local pareciam saídas de um filme de ficção científica, com suas roupas brancas de proteção sanitária, máscaras, toucas, botas, óculos e luvas. A Covid se espalhava pelo mundo desde o início do ano, e a China havia adotado uma política de tolerância zero em relação ao vírus. Por ironia, em dado momento o sistema sonoro do aeroporto começou a reproduzir a canção La Vie en Rose, em arranjo de música ambiente. Não foi suficiente para desfazer o clima de apreensão e medo no local.
Os chineses viam os estrangeiros como possíveis portadores de Covid para dentro do país. A cada passo que eu dava, um daqueles vigilantes parecidos com astronautas soltava uma borrifada de desinfetante no ar, enquanto outros me entregavam formulários para preencher e dar entrada no país. Era minha primeira viagem à China. Eu havia embarcado em Brasília três dias antes (há uma diferença de fuso de onze horas a mais), deixando para trás um país onde o número de casos de infecção e morte por Covid crescia velozmente – e chegava agora em uma terra que parecia estar domando o vírus.
Até o dia 25 de junho, havia o registro de apenas nove mortes por causa da Covid em Pequim e de 4 624 em todo o país, segundo o governo chinês. Até hoje os números de vítimas na China, que tem 1,4 bilhão de habitantes, contrastam fortemente com os da maioria dos países: de acordo com informações oficiais, 24 mil chineses morreram por causa do vírus desde o início da pandemia, e 5,8 milhões foram infectados (no Brasil, até meados de agosto passado, o número de mortos passava de 680 mil e o de infectados superava 34 milhões). Estatísticas oficiais chinesas nem sempre são encaradas com confiança por especialistas, mas, vivendo lá, deu para ver que a realidade não parecia tão distante dos números divulgados. Na China, não conheci nenhuma pessoa com Covid ou que tivesse um conhecido contaminado pelo vírus.
Fui autorizada a entrar no país para me juntar ao meu marido, que é diplomata brasileiro e estava vivendo lá havia mais de dois anos. Ele viu a China entrar em regime de alerta quando apareceu a Covid, no fim de 2019. Depois, assistiu à relativa melhora da situação, com os controles rígidos criados pelo governo. Antes de minha viagem, em nossas conversas telefônicas, eu ouvia, incrédula, ele contar que em Pequim o clima era de “pós-guerra”: o pior já havia passado e uma relativa tranquilidade se espalhava pelo país. Enquanto isso, o Brasil e o mundo se desesperavam com o vírus letal.
Depois da burocracia no aeroporto, fiz um teste de Covid e fui levada com alguns estrangeiros para um ônibus, que, escoltado por um carro de polícia, nos conduziu até o hotel da quarentena. Na recepção, cerca de oito “astronautas” nos esperavam. Eles nos encaminharam aos quartos e lembro que fiquei assustada ao ver uma das portas vedada com aquele lacre amarelo e preto usado para circunscrever o local de um crime. Em outro dormitório, havia um monte de cadeiras empilhadas na frente da porta, para evitar que fosse aberta. A do meu quarto foi fechada normalmente, sem lacre, mas me alertaram de que não poderia sair. A porta só seria aberta para a entrega das refeições e retirada do lixo.
Assim que entrei, peguei o celular e me conectei ao wi-fi, que tinha um sinal fraquíssimo (o que foi uma grande decepção, pois eu tinha chegado à terra do 5G). Logo me deparei com o chamado Great Firewall, nome dado ao bloqueio em todo o território chinês de uma série de sites e serviços, como Google, WhatsApp, Instagram ou mesmo sites de notícias, como o do New York Times. É preciso se acostumar com o Baidu, o sistema chinês de buscas, ou contratar um caro serviço de rede privada virtual (VPN, na sigla em inglês), torcendo para que funcione bem. O serviço de VPN não é amplamente usado pela população por estar submetido a restrições e autorizações. Acessar sites bloqueados na China pode ser considerado um crime em alguns casos. Eu estava livre dessa punição por ter imunidade diplomática.
Como eu não dispunha dos aplicativos de wàimài (literalmente, “comprar de fora”, o delivery chinês), foi meu marido quem encomendou a primeira refeição que me trouxeram no quarto. Faminta, devorei o filé de porco empanado, acompanhado de repolho refogado, de uma saborosa mas estranha sopa azeda e, claro, de arroz frito. Encarei até uma cerveja Tsingtao quente, já que não é comum ter frigobar nos hotéis chineses. No país, as bebidas costumam ser servidas na temperatura ambiente ou quente, pois, segundo a medicina tradicional, ingerir líquidos gelados é nocivo para o sistema digestivo.
Acordei às 5 horas e telefonei à recepção do hotel para saber sobre o café da manhã. O recepcionista achou melhor disparar no fone uma gravação em inglês que dizia: “Seu café da manhã será servido às oito.” Na hora marcada, alguém bateu à minha porta para avisar que estava deixando a comida na entrada.
Servido em uma bandeja de plástico de cor vermelha com tampa transparente, o café da manhã consistia em um pão roxo cozido no vapor, vegetais em conserva, um ovo cozido, tangerina e um tubérculo que identifiquei como sendo raiz de bardana. Nada de café, para minha tristeza (sou viciada em café). Algumas horas mais tarde, meu marido me ligou dizendo que o resultado do meu teste dera negativo e que eu seria liberada para cumprir o restante da quarentena em casa.
Fui autorizada a deixar o hotel na companhia de meu marido. Ele não pôde entrar no lobby do hotel, e eu o encontrei na entrada, com o motorista da embaixada brasileira que iria nos levar de carro até nossa casa. Toda a minha circulação deveria seguir os requisitos estabelecidos pelo governo, e eu só poderia usar táxi ou transporte público depois da quarentena.
O plano urbano de Pequim é dividido em cinco áreas na forma de seis anéis consecutivos. O bairro onde morei, Dongcheng, fica no coração da cidade, na circunscrição do segundo anel. Próximo dali estão alguns importantes pontos turísticos, como a Cidade Proibida e a Praça da Paz Celestial, além do gigantesco condomínio de Zhongnanhai, onde vivem o presidente Xi Jinping e membros mais graduados do Partido Comunista. Por isso mesmo, era sempre nessa região que começavam as restrições sanitárias.
Como Dongcheng é parte da Pequim antiga, nossa casa ficava em meio aos hutongs, vielas labirínticas existentes desde a dinastia Yuan (1260-1368) e que resistiram às intensas demolições durante a era maoista. Quem vive lá tem a impressão de estar em uma cidade do interior, e esquece que está cercado por uma megalópole de mais de 21 milhões de habitantes (equivalente à população da Região Metropolitana de São Paulo).
Para que eu entrasse em minha casa foi preciso obter uma autorização da líder do comitê de moradores do bairro. Da mesma forma que em outras regiões ou condomínios, essa líder era uma pessoa filiada ao Partido Comunista e um misto de síndica e vigia de bairro, cuidando de assuntos relacionados a obras, segurança e saúde pública, o que passou a incluir, mais recentemente, as medidas contra a Covid.
Depois que entrei na casa, foi afixado na porta uma espécie de alarme na forma de uma caixinha retangular de cerca 15 cm, de plástico na cor branca, parecida com uma régua. Não disseram isto muito claramente, mas suspeitei que, se eu – ou meu marido, que foi obrigado a fazer quarentena comigo – saísse, haveria um disparo sonoro. A verdade é que não era preciso tanto, já que existia uma câmera na esquina, apontando diretamente para a minha casa (há câmeras de segurança instaladas por todo o país).
Durante a quarentena obrigatória, podíamos pedir comida no supermercado ou em restaurantes, e os entregadores deixavam a encomenda na porta, onde também colocávamos o lixo, e depois avisávamos a líder, que mandava recolhê-lo. Isso me fazia duvidar se o tal alarme tinha alguma função real ou se era apenas para gerar temor, caso a gente pensasse em abandonar a quarentena.
Duas vezes ao dia, eu tinha que enviar ao comitê do bairro minha temperatura corporal, por meio do WeChat (o WhatsApp chinês, mas com muito mais funções). Se tivesse algum sintoma, também deveria avisar. Felizmente, isso não aconteceu. Apesar do controle e da vigilância, a quarentena feita em casa demonstrava que o governo tinha certa confiança nas pessoas, pois eu não precisava, por exemplo, mandar uma foto do termômetro com minha temperatura. Minha palavra bastava.
Eu tinha mudado para uma cidade desconhecida para mim, e agora estava impedida temporariamente de conhecê-la. Enquanto esperava a quarentena acabar, passava parte do dia no pátio interno da casa, tentando captar dali alguns cheiros e ruídos do mundo lá fora. Por volta de onze da manhã e de seis da tarde, sempre chegava da vizinhança um aroma de pimenta, misturado com alho e óleo. Ouvia vendedores passando com seus carrinhos, tocando sinos e falando em mandarim (que eu ainda não entendia). Uma musiquinha ficou registrada no meu cérebro. Dizia: Qing Zhuyi daoche… Meses depois, quando avancei nas aulas de mandarim, entendi, um pouco decepcionada, o que significava aquela frase: “Cuidado, veículo dando ré.”
Ouvindo as pessoas na rua, descobri que havia na língua falada em Pequim um som parecido com o do português do lugar onde eu cresci, Herculândia, no interior paulista, e é típico do dialeto caipira: o chamado “r” retroflexo. A esquina em frente à minha casa era ponto de encontro de aposentados para jogar mahjong, um jogo tradicional chinês cujas regras variam de região para região e me lembrava o dominó. Muita gente faz apostas em dinheiro, embora seja proibido. Tampouco é permitido fazer churrasco ou soltar fogos, para evitar a poluição. Mas meus vizinhos sempre achavam um ângulo da calçada inalcançável pelas câmeras de vigilância para montar sua churrasqueira e assar seus espetinhos.
Quando saí de casa pela primeira vez, em 11 de julho, duas semanas depois de minha chegada, Pequim não registrava nenhum novo caso de Covid havia uma semana. Era comum passarmos um intervalo de dias ou semanas sem nenhuma detecção. Quando acontecia, era pontual (um ou dois casos) e ficava isolado. A circulação era permitida desde que se usasse máscara nos transportes públicos e nos locais fechados. Antes de entrar nos lugares, a pessoa devia apresentar um QR Code vinculado ao WeChat com informações sobre o seu estado de saúde e a sua identidade.
O estado de saúde da pessoa era classificado em três cores. A cor verde indicava que a pessoa não tinha sintomas de Covid nem entrara em contato com doentes – portanto, estava autorizada a circular livremente. A amarela, que precisava fazer um exame PCR para poder circular pela cidade. A vermelha, que estava obrigada a fazer quarentena de pelo menos quinze dias. Sem o sinal verde não era possível entrar em farmácias, restaurantes, teatros, hospitais e mesmo em parques. Até em táxis havia, às vezes, a necessidade de apresentar o QR Code antes da viagem. Durante o período de um ano e nove meses que vivi na China, meu código sempre se manteve na cor verde.
Ao sair à rua, eu me deparei com uma situação completamente diferente da vivida no aeroporto. As calçadas estavam cheias, bem como os bares e restaurantes. As pessoas pareciam comemorar ao mesmo tempo o fim do inverno e do período de tensão e medo por causa da Covid.
A primeira coisa que fiz foi um teste de PCR. Depois, fui a um restaurante para provar a verdadeira comida chinesa, bem diferente da do delivery. Foi estranho voltar a um restaurante depois de meses (pois, no Brasil, eu tinha evitado sair de casa desde os primeiros casos de Covid). Foi também um momento de felicidade. Guardo com carinho uma foto desse dia, em que apareço sorrindo, com uma taça de vinho branco na mão.
A quarentena obrigatória para viajantes continua até hoje. Com o tempo, os hotéis usados para isso foram se deteriorando por falta de cuidados e limpeza profunda. Também foi proibida a entrega de comida nos quartos das pessoas, só sendo permitidas as três refeições oferecidas pelos próprios estabelecimentos. Membros de uma mesma família começaram a cumprir o isolamento em quartos separados, e até crianças tiveram que optar entre permanecer fechadas, ou com o pai, ou com a mãe. Essa é a parte da realidade à qual tive acesso – a quarentena dos estrangeiros que chegam ao país. Eu nunca soube detalhes de como os chineses cumpriam a quarentena deles. Uma amiga chinesa me contou que sua mãe, funcionária do governo, teve o passaporte recolhido durante a pandemia.
Depois de alguns meses sem o registro de novos casos na cidade, muitos locais começaram a fazer vista grossa do código de saúde no celular. Mas, bastava uma nova ocorrência, e a regra voltava a endurecer, a concentração de pessoas em locais públicos diminuía e mais gente aparecia de máscara na rua.
Ao chegar à China, a minha impressão era de que todo aquele controle fazia sentido, pois ainda não existia vacina contra o vírus. Isolado do mundo, o país permitia que internamente as pessoas tivessem uma vida quase normal. Naquela época, a quarentena só era aplicada às pessoas vindas do exterior ou às raras que haviam pegado Covid. Quando conto a algum amigo ou familiar que morei lá entre 2020 e início de 2022, às vezes me dizem, com cara de pesar: “Deve ter sido difícil, né?” Na verdade, vivi este período de forma muito tranquila e com pouca limitação. Os baixos casos da doença e as fronteiras fechadas davam segurança para que eu pudesse viajar dentro do país: visitei 18 das 33 províncias, regiões especiais, regiões autônomas ou municipalidades (nomenclatura chinesa para definir as administrações locais). Mais complicado era deixar a China e depois voltar – o que sempre exigia nova quarentena.
Quando soa o alerta em alguma cidade chinesa, o governo logo coloca em prática a mais rígida e radical política de contenção à Covid do mundo. É uma situação que parece não ter fim, e as medidas adotadas vão na contramão das praticadas em todos os países, que se tornaram mais flexíveis depois da vacinação. O lockdown tem um significado bem mais duro na China do que em outros países. Depois do fechamento de uma cidade, o governo implanta ali um regime de represamento do vírus que se prolonga por semanas ou meses, com barreiras e vigilância contínua de policiais.
Devido ao forte controle no país, a população começou mais recentemente a manifestar certa rebeldia. Este ano, em Xangai – megalópole de mais de 26 milhões de habitantes –, idosos fugiram da quarentena e pessoas denunciaram abusos, falta de socorro e atendimento médico para grávidas em trabalho de parto e para pacientes com doenças crônicas. As consequências econômicas também são graves. Entre março e junho deste ano, o fechamento dos importantes polos de produção que são Shenzhen, Xangai e Wuhan gerou forte impacto no PIB, que aumentou apenas 0,4% no segundo trimestre de 2022, quando se esperava uma expansão de 1%.
Nutri por um tempo a expectativa de que a chegada da vacina e a ampliação do conhecimento científico sobre o vírus iriam aliviar as restritivas medidas chinesas. Não foi o que aconteceu. Enquanto no Brasil a vacinação estava dando um respiro aos cidadãos, na China continuou o controle estatal, que foi passando pouco a pouco do limite do razoável. O que era uma bolha de proteção tornou-se uma espécie de sufocamento. Até meados de agosto passado, o governo não mostrava disposição de acabar com a política de Covid zero, mesmo depois da série de vacinas existentes e de todos os países do mundo terem colocado de lado a quarentena de cidades.
São muitos os críticos dessa política chinesa, e não apenas os adversários políticos do governo de Xi Jinping. Em maio passado, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, classificou as medidas como “insustentáveis”. Até o principal especialista no vírus, o epidemiologista chinês Zhong Nanshan, disse recentemente na China que essas medidas eram insustentáveis no longo prazo.
Apesar dos sinais de que a economia na China não vai muito bem, Xi Jinping voltou a dizer, no fim de junho, que a política de Covid zero será mantida. “Nós preferimos ter temporariamente um baixo desenvolvimento econômico do que arriscar a prejudicar a segurança da vida das pessoas e sua saúde física, especialmente dos mais velhos e das crianças”, disse ele.
Durante dois anos, o governo bombardeou a população com a mensagem de que o exterior vivia um caos porque os governos pouco faziam contra o novo coronavírus e só a China estava segura, pois ali a Covid não circulava. Mudar a narrativa não é tarefa simples. A população se acostumou nos últimos dois anos a entender o vírus como um grande perigo. Por isso, a possibilidade de contrair Covid aterroriza os chineses. Além disso, essa política parece querer demonstrar que, se a China é o lugar de origem do vírus surgiu, ali também se encontrou a melhor maneira de combatê-lo.
Esse rigor, é bom lembrar, não foi aplicado logo de início. As primeiras contaminações ocorreram no final de 2019. Profissionais de saúde, como o médico Li Wenliang, logo chamaram atenção para a estranha pneumonia identificada em Wuhan, mas foram silenciados pelo governo. Meses depois, o próprio Wenliang morreu de Covid, fato que o Estado tentou esconder da população, gerando críticas nas redes sociais que desafiavam a censura. A verdade, porém, se impôs. O governo teve que reconhecer a doença e colocou em prática em Wuhan a primeira ação de sua tolerância zero com relação ao vírus: durante 76 dias, os 13 milhões de habitantes da cidade ficaram em quarentena.
O lockdown total de Wuhan começou em 23 de janeiro de 2020, em seguida o governo fechou as fronteiras do país e passou a controlar a circulação interna. Quem estava no exterior, mesmo com visto válido, foi impedido de voltar, como alguns estrangeiros que haviam viajado no feriado do Ano-Novo Lunar de 2020, festejado no fim de janeiro (e até agora eles não recuperaram seus pertences). As restrições para estrangeiros no país perduram, menos para os trabalhadores considerados essenciais pelo governo, e os poucos que conseguem entrar na China o fazem para se juntar a algum membro de sua família que está em missão diplomática ou porque são empregados de órgãos multilaterais.
Depois de Wuhan, o governo fechou outras cidades da mesma província de Hubei, como Huangshi e Qianjiang. Em fevereiro de 2020, Wenzhou, na província de Zhejiang, também foi fechada. Ao longo de mais de dois anos, as medidas chinesas contra a Covid foram endurecidas e afrouxadas várias vezes, motivadas seja pelo aumento pontual de casos em alguma cidade ou por causa da proximidade de eventos políticos de peso e grandes festividades.
Muitos chineses com os quais convivi em Pequim têm familiares em outras partes do país e estão há bastante tempo sem visitar a terra natal, uma vez que os grandes feriados coincidiram nos últimos três anos com o aumento de medidas restritivas. No final de 2020, por exemplo, quando as coisas pareciam sob controle, novos casos surgiram e o governo desencorajou as festas e viagens para celebração do Ano-Novo Lunar, que em 2021 foi comemorado em fevereiro. Normalmente, essa festa provoca uma das maiores migrações do mundo, com milhões de chineses fazendo as malas para visitar parentes. É também um dos poucos feriados a que os trabalhadores têm direito, pois quase não existem férias no país.
O clima de apreensão reduziu quando o inverno chegou ao fim. Entre março e abril, ocorreram as vacinações, e pareceu que a China caminhava para a flexibilização das regras sanitárias. Mas as medidas voltaram a ser endurecidas pouco a pouco. O acesso ao país tornou-se ainda mais difícil do que na época em que fui para lá, com restrições de conexão e a exigência de dois testes de Covid, antes do embarque e na conexão, em laboratórios autorizados. Isso inviabilizou uma série de rotas, sobretudo para os que vinham de países como o Brasil, de onde não há voo direto para a China. Se a pessoa, em algum dos trechos, testasse positivo, ela precisava retornar ao local de origem, se recuperar e só depois de um intervalo começar tudo de novo.
Além disso, o governo resolveu punir com o cancelamento de viagens as empresas aéreas cujos voos tivessem repetidos passageiros que testaram positivo para Covid ao chegar à China. Assim, viajar tornou-se cada vez mais difícil e mais caro. Embaixadas, missões estrangeiras e multinacionais passaram a diminuir o número de seus funcionários no país, e houve casos em que se aconselhou ao corpo diplomático não viajar com crianças e familiares.
Até os animais foram afetados pela política da Covid zero (assunto que me interessa pessoalmente, porque levei meus dois gatos para Pequim). Em setembro de 2021, espalhou-se pelas redes sociais da China e pela imprensa estrangeira a história de uma chinesa que foi colocada em quarentena em um hospital. Antes de sair, ela deixou comida suficiente para os gatos comerem durante um dia e pediu aos vizinhos que cuidassem deles até o seu retorno. Os animais, porém, foram sacrificados pelas autoridades locais, que disseram ter detectado “traços do vírus” nas superfícies da casa. A história chocou os chineses, pelo que se viu nas mídias sociais. Em vista disso, a comunidade brasileira na província de Cantão organizou uma rede de apoio aos pets, para o caso de alguém entrar em quarentena.
As escolas já abriram e fecharam inúmeras vezes. Normalmente, a direção da escola avisa no dia anterior, sem dar previsão de quando as atividades serão retomadas. Os pais se queixam da falta de continuidade no ensino e da forma como ocorrem os fechamentos. Ainda pior: estudantes universitários na China foram mantidos durante boa parte da pandemia trancados em seus dormitórios nos campi, com as aulas sendo dadas online, sob alegação de que isso evitaria o espalhamento do vírus.
Às vésperas do Réveillon de 2022, as regras para a circulação interna de pessoas em todo o país foram bastante endurecidas. Quem passasse por cidades de médio risco poderia ser impedido de voltar a Pequim, ainda que morasse lá e tivesse testado negativo. A apresentação do teste nos embarques, a essa altura, já era rotina, mas Pequim passou a exigir que a pessoa fizesse outro, 72 horas após o retorno à cidade. A simples compra de um analgésico se tornou motivo de dor de cabeça. Mesmo sem estar contaminada, a pessoa que precisasse de algum medicamento para febre, dores ou tosse – sintomas relacionados à Covid – devia fazer um teste. Se não o fizesse, teria o seu código de saúde bloqueado no celular. Um dia, tive uma crise de tosse alérgica por causa de pólen, mas desisti de comprar um xarope natural de pera para evitar o estresse de fazer o teste.
Depois vieram os Jogos Olímpicos de Inverno, entre 4 e 20 de fevereiro deste ano, na capital chinesa. Era um momento em que os olhos do mundo estariam voltados para o país e, claro, o governo queria demonstrar força. Foi então criada uma “bolha de segurança”, com quarentena e isolamento para todos que estivessem envolvidos nas competições. Havia regras estranhas. Uma delas determinava que os carros dos que participavam dos Jogos Olímpicos teriam uma identificação especial para que as pessoas seguissem seu trajeto, sem sair do carro, mesmo que o veículo tivesse sofrido um acidente. Eu estava na China durante a realização dos jogos e pensei em assistir a algumas das apresentações, mas depois de meses sem informações claras, entendi que o evento não seria aberto para o público em geral. Apenas convidados do governo que atendessem alguns pré-requisitos (como vários testes e até confinamento) poderiam ver algumas das competições.
Com o fim dos Jogos Olímpicos, o cenário não melhorou. Uma amiga estrangeira foi impedida, em março passado, de ir a uma festa de aniversário porque o comitê do bairro em que ela morava exigiu que aguardasse em casa um teste para Covid por ter estado em um restaurante que era local de risco. Mas ela nunca havia passado perto desse restaurante. Um amigo ficou mais de um mês em quarentena por ter resultados ora positivos, ora negativos. Outro amigo estrangeiro, um jornalista, foi testado e passou por um isolamento para participar de uma entrevista coletiva relativa às Duas Sessões, principal evento político do ano em Pequim, quando os órgãos legislativos se reúnem. Ao chegar na entrevista, descobriu que ela seria virtual, transmitida por um telão.
Muita gente duvidou que o governo fecharia completamente Xangai, a cidade mais populosa do país e a terceira do mundo, um dos mais importantes centros econômicos e a mais internacionalizada das metrópoles chinesas. Mas foi exatamente o que fez, decretando o lockdown durante 65 dias, entre março e maio deste ano, por causa da variante Ômicron. O cenário de controle rigoroso pareceu desproporcional ao risco real de alguém pegar Covid. Uma amiga brasileira que vive em Xangai me disse que ela, o marido e a filha torciam para que ninguém ficasse doente de qualquer outra enfermidade enquanto a cidade estivesse fechada. O medo deles era que, em caso de uma emergência médica, não pudessem sair de casa e muito menos ser aceitos em hospitais.
Desde o início da pandemia, as administrações locais apostaram em testagem em massa da população. Era comum passar por uma rua e ver centenas de chineses em fila indiana para serem testados. Eu mesma fui chamada, sem um motivo claro, para fazer três testes obrigatórios em momentos diferentes. Para evitar qualquer retaliação e colaborar com o bairro, sempre compareci. Um amigo jornalista em Xangai ouviu de uma agente de saúde que essa prática se tornou sem sentido, e até danosa, com a chegada da Ômicron. Na visão dela, reunir todos os moradores de um condomínio em um pátio para realização do teste de Covid era uma forma pouco inteligente de combater a doença, num momento em que estava em alta uma variante que se espalhava muito facilmente. Foi apenas durante o lockdown em Xangai que se autorizou o uso do autoteste, em alguns casos. Até então, essa prática estava interditada, para que o governo centralizasse os dados de saúde dos nacionais e estrangeiros.
Mais recentemente, foram adiados em um ano os Jogos Asiáticos, que seriam realizados neste mês de setembro na cidade de Hangzhou, famosa por abrigar várias empresas de tecnologia e outras grandes companhias chinesas, como o grupo Alibaba. O adiamento do evento esportivo, dois meses antes do previsto, é um indicativo de que o governo não espera que as coisas voltem ao normal no curto prazo.
Por causa da Covid, em julho passado havia milhões de pessoas confinadas em cidades chinesas, em diferentes regiões. O surgimento de novos casos promoveu nova testagem em massa em Xangai, fechamento de escolas e localidades em Xi’an, famoso destino turístico, e Lanzhou, no Oeste do país. O balneário de Beihai, na região autônoma de Guangxi, viu um aumento de casos, com média de quinhentas novas ocorrências por dia, o que deixou mais de 2 mil turistas trancados em um resort. Ao longo de julho, foram constatados milhares de novos casos diariamente. Em agosto, o balneário de Sanya, na ilha de Hainan, também foi afetado por medidas restritivas, assim como a região autônoma do Tibete.
Uma das principais formas de controle do governo sobre a circulação das pessoas é pela digitalização das informações e centralização dos dados. Isso se dá, sobretudo, por meio de programas que podem ser instalados em aplicativos de celular, como o WeChat (da Tencent) e o Alipay (do Alibaba). Cada província tem seu programa, e viajar de uma a outra exige das pessoas dispor no celular de mais de um aplicativo, com cadastros diferentes.
Sem esses programas, a vida de uma pessoa durante a pandemia é praticamente inviável na China. Ainda que ela tente burlar o sistema, colocando o celular em modo avião ou mesmo deixando de escanear os códigos, o governo, se quiser, tem outras formas de rastrear a sua circulação. Como, por exemplo, por meio dos pagamentos eletrônicos via celular, amplamente usados, a ponto de ser difícil, às vezes impossível, pagar com o cartão de crédito ou o bom e velho papel-moeda. As câmeras e os mecanismos de reconhecimento facial são outros aparatos de vigilância. Como eu residia em Pequim, o principal programa que eu usava era o kit de saúde de Pequim, disponível em inglês e em mandarim no WeChat. Nele, havia uma foto, os números do meu passaporte e telefone, o registro de todos os locais por onde passei, os meus últimos exames PCR e as datas em que tomei as três doses da vacina da Sinopharm.
Além do controle por via digital, há também a vigilância tradicional, muito acentuada no caso de estrangeiros. Nos hotéis que nos aceitam (não são todos), os documentos dos hóspedes são fotografados e enviados à polícia local. Certa vez, viajei para a cidade portuária de Tianjin, e os recepcionistas do hotel chegaram a ligar para meus amigos chineses perguntando sobre quanto tempo eu estava na China. O temor deles tinha origem em um boletim divulgado regularmente pela mídia estatal sobre novos casos de Covid, separando-os entre os “localmente transmitidos” e os “importados”. Como esse último termo é ambíguo, alguns chineses começaram a associá-lo com “estrangeiros”. Na verdade, a palavra “importados” se refere, sobretudo, aos chineses que voltam ao país, já que poucos estrangeiros podem viajar para a China. Ainda assim, tais reações estão muito aquém da xenofobia de Donald Trump e Jair Bolsonaro, que chamaram a Covid de “vírus chinês” e disseram ter sido fabricado em laboratório.
Em janeiro de 2021, viajei com amigos a Yunnan, um destino turístico famoso por causa de suas plantações de arroz e chá e das paisagens do platô tibetano. Logo depois de desembarcarmos, fomos parados no aeroporto por um homem sem qualquer tipo de uniforme ou identificação que queria saber quando havíamos entrado na China pela última vez. Como apenas eu tinha ingressado depois do fechamento das fronteiras, foi comigo que ele quis falar. Mostrei meu passaporte, com data de entrada no país, sete meses atrás, mas ele não se deu por satisfeito. Entendi que queria uma prova de que eu, ao chegar à China, havia feito quarentena. Apresentei, então, algumas fotos que tirei no hotel durante o isolamento. Mas só depois que exibi a cópia dos exames de Covid, com o carimbo vermelho da autoridade governamental, foi que o homem parou de nos importunar.
Pouco a pouco, me acostumei com essa desconfiança, e por ser estrangeira tentava redobrar o cuidado no uso da máscara, mesmo quando não a exigiam, escaneava os códigos nas entradas dos locais, inclusive os que não me pediam, e fazia testes de PCR, ainda que não fosse obrigatório. Vivenciei cenas que pareciam de filmes. Amigos e professores tinham medo de falar sobre política, e certa vez uma chinesa afastou o celular para poder me contar, quase sussurrando, que não iria se vacinar, porque não confiava no imunizante chinês. Além disso, não raro vizinhos vigiam uns aos outros e a delação de pessoas que descumprem regras é estimulada. Um casal de amigos me contou que policiais foram até a casa deles para saber por que haviam comprado um drone, pois não tinham autorização para usá-lo em Pequim, onde o espaço aéreo é fortemente vigiado. Os dois estavam de partida da China e queriam levar o equipamento para o Brasil.
Ouvi muitos brasileiros dizerem que a China só estava conseguindo controlar a pandemia porque o governo é autoritário. Morando lá, entendi que as coisas estão longe de ser tão simples. Mesmo não sendo uma democracia liberal, e apesar do controle rigoroso, o Estado chinês não consegue resolver tudo. Para algumas questões, o que existe são apenas sugestões dadas às pessoas, e cada um pode decidir se vai correr ou não determinados riscos.
Sempre desconfiei da eficácia do rastreamento governamental. Porém, em um domingo de maio de 2021, quase um ano depois da minha chegada, um funcionário da central de controle de doenças me ligou querendo saber se, nos últimos quinze dias, eu havia estado em Hefei, capital da província de Anhui. Eu estivera nessa província uma semana antes, para o casamento de amigos chineses, mas não tinha ido à cidade de Hefei. Mesmo assim, o atendente insistiu que o trem no qual eu viajara havia passado perto de um local em Hefei onde ocorreram casos de Covid, e pediu que eu realizasse o teste em certo hospital até as 20 horas daquele dia. O exame era opcional, mas achei melhor seguir as indicações para que meu código de saúde no celular não ficasse amarelo, o que poderia impedir minha entrada nos lugares. No dia seguinte, depois do teste, o resultado negativo apareceu automaticamente no aplicativo.
Quando vivi na China, havia duas opções de vacinas, produzidas pelos laboratórios Sinopharm e Sinovac, ambas aprovadas para uso emergencial pela OMS. Nenhum imunizante produzido no exterior podia entrar na China continental. A única exceção, que eu saiba, foi um lote de vacinas da Pfizer importado por embaixadas europeias e destinado exclusivamente a seus cidadãos.
A campanha nacional de imunização gratuita começou entre março e abril de 2021 nas cidades mais populosas e onde se concentram o poder e o dinheiro, como Pequim e Xangai. Primeiro, o governo vacinou agentes de saúde, membros das Forças Armadas e entregadores. Em seguida, pessoas que tinham entre 18 e 59 anos de idade. Depois da vacinação, exigia-se que a pessoa aguardasse trinta minutos, para verificar que não tivera nenhuma reação. A recomendação era de que, nas 24 horas seguintes, as pessoas evitassem bebida alcoólica, comida gordurosa e banho.
Quando contei a amigos chineses que meus avós, de 87 e 93 anos, já haviam sido imunizados contra a Covid, eles ficaram surpresos. Os idosos estavam fora do plano inicial de vacinação da China e, até hoje, o percentual de imunizados é baixo, em torno de 50% entre aqueles com mais de 80 anos. Desse grupo, apenas 20% tomaram a dose de reforço, segundo dados oficiais de março passado.
A China colocou as crianças, as pessoas com problemas de saúde e os idosos no fim da fila da vacinação. Neste caso, alegou que a eficácia dos imunizantes não havia sido comprovada para maiores de 60 anos. Isso tornou ainda mais difícil convencer depois os mais velhos de que as vacinas eram seguras. Diante da resistência de muita gente, o governo passou a oferecer incentivos para a vacinação. Na minha rua, com grande concentração de velhinhos, havia até oferta de ovos e ingressos para pontos turísticos da cidade. Apesar de, segundo dados oficiais, 89% dos chineses terem se vacinado, agora preocupa o governo a baixa adesão dos idosos ao imunizante, já que são eles os mais vulneráveis a complicações da doença.
A comunidade estrangeira teve acesso às primeiras doses em abril, em locais preparados especialmente para recebê-la. Em Pequim, eram galpões montados no distrito de Chaoyang, onde está a maior concentração de estrangeiros. Para nós, a imunização não era gratuita. Cada dose da vacina fabricada pela Sinopharm, como a que tomei, custava 95 yuans (pouco menos de 70 reais).
A população em geral se mostra desconfiada em relação a vacinas porque não são raros os escândalos envolvendo imunizantes na China, antes mesmo de a Covid entrar em cena. Percebi que, quando um chinês falava que não iria se vacinar por “problemas de saúde”, no fundo estava querendo dizer que não confiava no imunizante do país. Devia se lembrar de escândalos como o da empresa Changsheng, que em 2018 foi acusada de produzir imunizantes ineficazes para raiva, coqueluche, tétano e difteria. Seus diretores foram presos e os produtos, tirados do mercado.
Em dezembro de 2021, muitos amigos chineses ficaram preocupados ao saber que eu estava de mudança para Washington. Como a mídia estatal chinesa pintava um cenário de terror sobre a pandemia nos demais países (e havia motivo para isso), era como se, ao me mudar para os Estados Unidos, eu estivesse indo rumo ao corredor da morte. A verdade é que nem eu mesma tinha ideia do que encontraria fora da China, apesar de acompanhar o noticiário diariamente e conversar com amigos estrangeiros.
Cheguei a Washington em 27 de março de 2022, e minha primeira impressão foi que, durante os quase dois anos que morei na China, eu tinha vivido num mundo paralelo. Cerca de 1 milhão de pessoas haviam morrido nos Estados Unidos, e as contaminações beiravam os 90 milhões. Apesar dessa tragédia, não havia ninguém na capital federal me pedindo para colocar a máscara ao entrar em algum estabelecimento ou para escanear o código sanitário. Mais estranho ainda foi me deparar, durante a visita a uma cidade no Tennessee, com uma placa dizendo que era “proibido o uso de máscaras”, ao lado de uma mensagem saudando Donald Trump.
No início de abril de 2022, telefonei para uma amiga chinesa em Pequim, onde haviam acabado de impor uma nova série de restrições. Contei a ela que estava aprendendo a conviver com a ideia de ser contaminada pela Covid (o que aconteceu naquele mesmo mês). Perguntei como ela estava lidando com o novo fechamento, e minha amiga contou que tinha voltado ao trabalho remoto e que sua maior preocupação agora era com a saúde mental. Ela e outros amigos na China demonstravam cansaço. Fazer planos, por mais banais que fossem, era para eles uma missão desgastante. Mesmo os amigos estrangeiros que viviam lá haviam adiado o projeto de ter filhos, pois tinham medo de ficar isolados no país, sem poder contar com a visita de familiares.
Após as vacinas, a política chinesa da Covid zero parece não fazer mais tanto sentido como no início da pandemia, além do que se mostra insustentável do ponto de vista da saúde pública e da economia. Uma explicação possível para o país seguir nessa rota é de caráter político. A pandemia parece ter servido a um processo para o qual os analistas chamam a atenção desde que Xi Jinping chegou ao poder, em 2013: o fechamento cada vez mais intenso da China. Os tempos de abertura política e certa liberdade, com a chegada de Deng Xiaoping ao poder (1978-90), ficaram para trás. O país parece estar se voltando a um modelo mais focado na valorização do nacionalismo, dos símbolos pátrios e dos valores tradicionais – no caso, relacionados à história das conquistas do Partido Comunista. O governo tem estimulado até mesmo que empresas chinesas fechem capital em bolsas no exterior e abram em Hong Kong. Foram implementados movimentos regulatórios, sobretudo no setor educacional, restringindo a atuação de grupos estrangeiros nessa área.
Durante o governo de Hu Jintao (2003-13), com os avanços inimagináveis obtidos pela China, os jornalistas estrangeiros no país gostavam de dizer que estavam reportando sobre o futuro do mundo. Agora, andam desanimados com a série de restrições impostas pelo governo ao jornalismo independente. O relatório anual do Clube de Correspondentes Estrangeiros na China traz relatos nada animadores sobre as condições de trabalho nos últimos anos. Muitos veículos acabaram optando por transferir seus profissionais de Pequim para Hong Kong e, mais recentemente, para Taipei, em Taiwan, a fim de garantir a eles condições mais seguras de trabalho – apesar do clima de animosidade instalado no contexto da visita da presidente da Câmara dos Deputados norte-americana, Nancy Pelosi, à capital taiwanesa, no início de agosto, e da escalada de tensão entre os Estados Unidos e a China.
A redução da cobertura de imprensa é um dos fatores que deve elevar o desconhecimento sobre a segunda maior economia do planeta. É difícil prever o que pode acontecer após outubro e novembro deste ano, meses em que deve ser realizado em Pequim o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China para a escolha do novo secretário-geral, que também é o encarregado de comandar o país. Tudo leva a crer que Xi Jinping será reconduzido ao cargo.
A China está se tornando um gigante isolado do restante do mundo. Paradoxalmente, isso ocorre quando o planeta depende, de maneira crescente, da produção chinesa. Com a nova muralha invisível que vem sendo erguida, quem está lá dentro quase não vê o que acontece no exterior. E quem está do lado de fora têm uma visão cada vez mais turva da China.
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