Ilustração de Paula Cardoso
Cidades enfrentam ‘leilão’ por respirador
Com avanço da covid-19, preço de equipamento varia 60%, e municípios disputam produtos com atravessadores no interior da Bahia
Passava de uma hora da manhã quando a ambulância deu partida em Ipiaú, na região cacaueira da Bahia, a caminho de Salvador, a mais de cinco horas de distância. Na maca do veículo, a aposentada Renne Santos, 72 anos, diagnosticada na manhã daquele dia 27 de março com covid-19, apresentava uma crise respiratória grave. A viagem era urgente. Sem um respirador, aparelho que leva ar para os pulmões, os dela poderiam pifar a qualquer momento. A cidade tinha três respiradores, mas estavam em uso. Às pressas, organizou-se a transferência da idosa. Quando ela chegou ao Hospital Couto Maia, especializado em doenças infecciosas e transformado em referência estadual no combate ao coronavírus, em Salvador, tinha amanhecido. Um médico plantonista estranhou o aparato utilizado na viagem. “Não avaliei a paciente, mas pela fisiopatologia da doença, transportar um paciente entubado é muito mais seguro”, disse, sob condição de anonimato. Renne tornou-se mais um personagem da batalha diária que o coronavírus tem imposto às cidades do interior em busca de materiais e equipamentos para atender os pacientes.
Nas últimas semanas, empresas de equipamentos médicos têm oferecido aos municípios respiradores por um preço que varia de R$ 55 a R$ 90 mil – 63% de diferença. Virou uma espécie de leilão, e a cidade que paga mais leva o equipamento. A Secretaria de Saúde de Ipiaú tem recebido propostas de fornecedores sobre a compra dos aparelhos respiratórios. “As empresas fazem um jogo [na venda de materiais hospitalares]. Hoje, recebemos uma mensagem com uma empresa dizendo: ‘Vamos que o município está com dinheiro em conta.’. Eles tinham visto o orçamento da cidade e vindo falar com a gente com base nisso”, acusa Laryssa Dias, secretária de Saúde. “Existe uma investigação para oferecer o produto. É um jogo de quem dá mais”, completa.
A batalha de Renne Santos contra a covid-19 teve início nove dias antes, e resume um pouco da dificuldade de assistência médica nas cidades pequenas. Moradora de Itagibá, ela começou a se sentir mal e precisou ser transferida de ambulância até Ipiaú, a 4 km. O único hospital da história de 61 anos de Itagibá está fechado há quinze anos. O município tem dois Postos de Saúde da Família (PSF), um centro de saúde e um centro de especialidades médicas. A referência da região é o Hospital Geral de Ipiaú (HGI), na vizinha Ipiaú, de 46 mil habitantes. O HGI atende dezenove municípios dos arredores e pelo menos seis cidades dependem diretamente da unidade. Foi nele que Renne Santos deu entrada no dia 16 de março, com sintomas de infarto. A paciente era cardiopata e estava consciente, com suporte de um cilindro de oxigênio, à espera de um cateterismo – exame que detecta se há obstrução nas artérias do coração.
A família de Santos não quis dar entrevista. Naqueles dias em que a aposentada passou pelo HGI, o hospital tinha três respiradores na sala de estabilização, mas todos estavam ocupados. O quadro clínico dela piorou. No dia 23, veio a febre, e a falta de ar aumentou. Quatro dias depois, o Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen), em Salvador, confirmou a desconfiança da equipe médica depois de analisar amostras respiratórias enviadas pelo hospital. A paciente teve então que ser transferida para a capital. A diretoria do HGI informou que o quadro dela era estável e que a transferência cumpriu todos os requisitos, sem problemas no trajeto. Foi o primeiro caso registrado em Ipiaú. Pelos dados atualizados desta terça-feira (14), já são 12 no município, 759 na Bahia.
Ipiaú é um dos municípios que receberiam respiradores comprados pelo governo da Bahia de uma empresa chinesa, se a carga não tivesse sido retida ao aterrissar no Aeroporto de Miami, no dia 3 de abril. O fornecedor chinês cancelou, sem explicar, o contrato. O governo americano negou ter bloqueado a encomenda. Se o lote tivesse chegado, 200 iriam para o Ceará e 400 ficariam na Bahia. Destes, dois seriam destinados à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Ipiaú e outros dois ao HGI.
No dia 7 de abril, o governo baiano anunciou a compra de 600 novos respiradores, esperados para o próximo dia 20, afirmando que fará acordo com companhias aéreas e aviões particulares para retirar o material diretamente do fornecedor, na China, e garantir, assim, que a compra chegue ao destino. O Brasil tem cerca de 65 mil respiradores, de acordo com o Ministério da Saúde. A Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) informou à piauí que o estado tem 500 respiradores em estoque e outros 254 em manutenção, mas não informou em que municípios eles estão distribuídos.
O Hospital Geral de Ipiaú tem, hoje, seis respiradores, declarou à piauí o diretor Alex Miranda. Durante a internação de Santos, eram só três. Em 28 de março, dia seguinte ao deslocamento da paciente, a unidade inaugurou a ala da Síndrome Respiratória para receber, principalmente, eventuais pacientes com sintomas de covid-19. Dois aparelhos de anestesia foram modificados para funcionar como respiradores e um equipamento foi emprestado pela Fundação Hospitalar Aurelina Virgília Fair, em Ibirataia, a 16 km dali. Desde então, setenta pacientes precisaram das máquinas.
“A partir de fevereiro, a gente começou a se articular porque sabia que o vírus chegaria. Já planejávamos abrir a nova ala, mas isso não podia acontecer da noite para o dia”, afirma Miranda, o diretor do HGI. A expectativa era que a Unidade de Pronto Atendimento (UPA), fechada desde 2018 por falta de recursos financeiros e estruturais, estivesse em funcionamento a essa altura. Assim, o hospital deixaria de ser “porta aberta para casos suspeitos [de covid-19]”, complementa. Até que a retenção dos 600 respiradores nos Estados Unidos inviabilizou a estratégia.
Ipiaú aguarda os respiradores da nova leva que chegará da China. Mas será preciso esperar. “Existe essa dificuldade de compra dos respiradores. Nossa expectativa é que a gente consiga abrir a UPA o mais rápido possível e que eles cheguem. A ideia é que haja um centro de triagem e as pessoas só sejam transferidas para hospitais quando precisarem”, explica a secretária de Saúde. A aposentada Renne Santos morreu na tarde do dia 8, no Hospital Couto Maia, em Salvador. Foi a 17ª das 22 mortes registradas até a manhã deste terça-feira (14) provocadas pelo coronavírus na Bahia. Do total, metade aconteceu entre o interior e a Região Metropolitana de Salvador (RMS).
O telefone toca sem parar dentro da sala do setor de compras da Prefeitura de Ipiaú. Sentado numa cadeira giratória, Jones Galdino, 36, atende e faz ligações. São mais de sessenta chamadas diárias. Ele é o único responsável pelos processos de compras e cotações de materiais hospitalares e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) da cidade. Quando conversou com a piauí, por volta das 21h30 do último dia 7, mesmo dia em que o governo da Bahia anunciou a compra dos novos respiradores, Galdino acertava detalhes da ida de uma equipe a Feira de Santana, a 100 km de Salvador, para buscar 3 mil embalagens de álcool gel. A viagem estava marcada para as três horas da manhã, depois de uma semana de procura pelo produto. “Só a gente sabe o trabalho que tá sendo para conseguir material”, compartilha. Respirador, máscara, falta de tudo, e a demanda muda a cada dia. É necessária uma pesquisa sem intervalo por materiais de limpeza e EPIs, numa corrida para que a compra aconteça antes do estoque acabar. A máscara N-95 – considerada mais resistente – não é mais encontrada nos fornecedores, por exemplo. Antes do coronavírus, o suprimento das catorze Unidades Básicas de Saúde (UBS) era mensal. Agora, o reforço acontece até duas vezes por dia.
Galdino acorda geralmente à 6 horas e aguarda num ponto, em Jitaúna, onde mora, uma topique que o leva até Ipiaú. São 25 km de percurso. Às 7h40, ele é o primeiro a chegar na sala. Organiza os papéis deixados à mesa no dia anterior e atualiza as informações sobre a madrugada: se a Secretaria de Saúde deixou algum novo pedido de aquisição de materiais, se algum caso de coronavírus foi registrado no município, se algum material está em falta. Desde o dia 26 de março está em busca de um fornecedor que distribua máscaras cirúrgicas. Também não tem encontrado máscaras N-95, nem luvas. A quantidade requerida não foi informada. “Não temos”, responde a maioria das empresas, conta Galdino.
O trabalho solitário de Galdino tem sido como o de um investigador. As mensagens tocam no celular desde o início do trabalho até a hora de dormir. Ele procura fornecedores com estoque pela internet e recebe ligações e e-mails das empresas. Semanalmente, dois caminhões saem de Ipiaú para buscar materiais em cidades como Feira de Santana, Salvador e Vitória da Conquista. Para reduzir custos de transporte, alguns fornecedores têm exigido que os produtos sejam retirados pelos compradores. O assessor de compras também tem contato com companhias pernambucanas, paulistas e cariocas. “Preciso orçar o preço em três lugares, descobrir o mais barato e só depois iniciar o processo de compra”, explica. Mesmo após cinco anos como operador de telemarketing, em duas empresas de tecnologia em São Paulo, nunca fez tantas chamadas e pesquisas de compra e venda.
Num grupo de mensagens, dezenove secretários de Saúde de cidades vizinhas compartilham novidades sobre um fornecedor que tem estoque para envio ou pedem ajuda aos colegas. É comum haver disputa entre os municípios. “Se você procura um fornecedor agora todo mundo fica sabendo. Se um município fica sabendo que o fornecedor tem estoque, o outro vai atrás. Tem as empresas, hospitais privados…”, conta Galdino. Na noite em que conversamos, ele tinha oito processos de compra para terminar. Depois de finalizar os três orçamentos, envia um relatório para saber se a compra é permitida. “É comum que eles [empresas] prefiram vender na hora para a iniciativa privada. Eles falam: ‘Ou você confirma agora ou não te vendo”, diz. A lei nº 13.979, de 6 de fevereiro, autoriza a dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços e insumos da saúde durante a pandemia. Como é o único no cargo, Galdino ainda precisa se dividir entre as tarefas impostas pela pandemia e antigos problemas. Os casos de dengue, por exemplo, são um deles. “Tem o coronavírus, mas as outras coisas não deixaram de existir”, compartilha.
A compra de material para as unidades de saúde também lembra um leilão. De manhã, o produto é anunciado nos grupos de mensagens por um preço. À tarde, a mesma mercadoria já custa até três vezes mais. Na rotina de pesquisas e cotações, Galdino observa o sobe e desce dos valores. Na semana anterior à entrevista, estava à procura de óculos de proteção. Um fornecedor em Vitória da Conquista disse que não venderia o produto por R$ 2,95, como havia anunciado antes. “Ele tinha estoque e disse isso, mas falou que tinham empresas que iriam comprar por muito mais dinheiro”, alega. Poucos dias depois, um tubo de álcool gel que era vendido por R$ 17 de manhã passou a custar R$ 39 à tarde.
Para tentar fugir do leilão, Galdino inicia a busca por fornecedores maiores, em cidades grandes, e só depois afunila a busca para as menores. É uma estratégia para evitar atravessadores e um aumento ainda maior de preços. De vez em quando, liga para Isa Behrens, representante de Codisauto, fornecedora de equipamentos em Feira de Santana, em busca de socorro. Ela acorda de madrugada para conversar com distribuidores chineses. Às vezes, um intérprete participa da conversa e traduz o mandarim para o inglês. “Lá são umas 20 horas e aqui são umas duas da manhã. Com o pessoal daqui, começo umas 7 horas”, conta. O horário chinês é 11 horas adiantado em comparação ao do Brasil. “Os preços da China são imbatíveis, 90% da produção mundial é concentrada na China. É mais barato para a gente importar que comprar aqui dentro”, justifica.
A empresa onde Behrens trabalha fornece equipamentos como luvas e máscaras. Estão em busca, agora, de kits de testes rápidos de detecção do coronavírus. Na avaliação dela, não são os empresários os culpados pela alta dos preços, mas sim a crescente do preço do dólar quem infla os valores. Por isso, explica, a variação tão alta em questão de horas. “Se você não confirma rápido, pode ter aumento do dólar sim. Acham que é a gente querendo explorar. É uma lei da economia”, defende. O aumento também tem a ver com uma mudança na própria distribuição, segundo ela. Com o avanço da pandemia, algumas empresas deixaram de entregar os materiais para os compradores. “O frete está caro. Uma viagem que custava R$ 12 mil passou a custar R$ 32 mil”, calcula.
Representante comercial da EPI Soluções Empresariais, outra distribuidora de equipamentos no município de Lauro de Freitas, Cíntia Oliveira põe a culpa pelos preços exorbitantes nos atravessadores. “Isso se torna um leilão. Compram na nossa mão por um preço e vendem por outro maior”, defende-se. Desde a última semana, ela tenta comprar lotes de máscara PFF2 – mais resistente, como a N-95. Sem sucesso. O estoque está vazio. “Pegava essa máscara por R$ 1,90 e agora já está quase R$ 9. Quando a gente vai repassar, parece que quer lucrar muito”, justifica. Com a pandemia, o foco dos negócios na empresa mudou de engenharia para a área da saúde. “Tentamos nos abastecer ao máximo. É uma questão de demanda”, afirma.
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