Joanna Lima no laboratório de pesquisa - Foto: reprodução de redes sociais
“A ciência é mulher”
Da origem humilde no Piauí a uma bolsa de intercâmbio em Oxford, bióloga estimula garotas a investirem na pesquisa científica
Quando Joanna Lima escolheu sua profissão, a família não recebeu bem a ideia de a filha ser professora. A jovem se formou em biologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), mas pensou em desistir da graduação várias vezes. Quando apareceu a chance de participar de uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), a mãe da jovem teve que vender o carro para ajudar. Em menos de cinco anos, a garota que saiu de uma região pobre de Teresina foi selecionada para uma bolsa na Universidade de Oxford, sob coordenação do cientista Peter Ratcliffe – prêmio Nobel de Medicina em 2019. Lima participou do projeto que estudou as mutações no gene Von Hippel-Lindau syndrome (VHL), associado a um tipo de câncer renal. Mestra e doutora pela USP, Lima, 32 anos, segue como pesquisadora visitante em Oxford. Divide-se entre os laboratórios e sua conta no Instagram, na qual divulga conteúdos científicos. Seu objetivo é incentivar outras meninas e mulheres a ingressarem na pesquisa. “O futuro é cada vez mais feminino na ciência.”
(Em depoimento a Vitória Pilar)
Quando minha mãe saiu do Ceará para Teresina, eu ainda não existia. Ela me criou sozinha. Como ela era mãe solo, a gente não tinha condição financeira de pagar escola. Fui bolsista em escolas particulares, mas essas pequenas, de bairros menores. Na escola, eu não gostava de ciência. Nunca fui aluna destaque, aquela CDF. Nunca estudei muitas horas, sentava no fundão, tirava notas médias e fazia as atividades. Eu estava longe do brilhantismo. E o pior, eu não sabia o que eu queria fazer. No Piauí, como em muitos estados, você só é reconhecido se for médico ou advogado. Eu tinha certeza de que não queria nenhum dos dois.
Eu sabia que tinha habilidade com biologia. Prestei vestibular para química, na Universidade Estadual do Piauí (Uespi), e biologia, na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Passei nas duas, mas fui pra biologia. Para a minha família, o meu curso não foi bem aceito. Nenhuma família acha a melhor notícia do mundo que o filho vai ser professor. Eu sei que não é pela profissão, é pela remuneração.
Quando eu cheguei ao curso, eu não tinha dimensão do que era. Acabei estudando de tudo: animais, botânica, inúmeras disciplinas das quais eu não gostei. Nos dois primeiros anos do curso eu só pensava em desistir. Depois que paguei disciplinas mais próximas da biomedicina, eu comecei a me identificar. Na graduação, eu não tive nenhuma experiência com pesquisa, mas eu era cientista desde o dia em que nasci – só não sabia ainda.
A primeira vez que entrei em um laboratório foi para pesquisar sobre a rede de esgoto da cidade para a Agespisa (Águas e Esgotos do Piauí), empresa de abastecimento de água do estado. Eu ganhava em torno de 900 reais, que me ajudavam a pagar algumas contas de casa e o transporte de ônibus. Fui também professora em várias escolas públicas.
Um dia eu cheguei para minha mãe e falei: quero fazer o mestrado. Na minha família, ninguém sabia o que era ser mestre ou doutor. Foi quando eu saí de Teresina para São Paulo. Eu não tinha ideia do que ia fazer quando chegasse lá, mas eu fui conhecer a Universidade de São Paulo (USP). Queria me jogar no mundo. Eu não tinha nenhuma experiência concreta em laboratório, apenas as aulas que dei no currículo. Comprei a passagem, fiquei num hostel e fui mandando e-mail para os professores. De cinco docentes, uma me respondeu.
A professora Marília Seelaender, a quem sou muito grata, me recebeu na universidade e disse que a prova era dali a quatro meses. Pra eu ter experiência, podia trabalhar de graça no laboratório e estudar para a prova. Corri pra pedir ajuda à minha mãe. Servidora pública, ela vendeu o carro para eu conseguir me manter em São Paulo até o dia da prova. Nessa noite, fiquei sentada no sofá do hostel e pensei: “Meu Deus, eu não tenho escolha se não passar nessa prova.”
Fiz o teste e passei. Foi um alívio gigante. Foi mais doloroso passar no mestrado do que fazer intercâmbio para a Inglaterra. Minha vida de cientista começou ali. Deixei de ser a Joanna do fundão e me tornava pesquisadora. Naquela época, eu aprendi muita coisa. Eu tinha na minha cabeça que eu precisava me dedicar muito porque eu era do Piauí, porque eu era mulher, pelo sacrifício da minha mãe.
A primeira vez que eu fui pra fora do país foi à República Tcheca, para apresentar uma pesquisa sobre a perda de peso nos pacientes com câncer, chamada caquexia. Concluí o mestrado, entrei no doutorado e segui com essa pesquisa, até que a Marília disse que eu precisava ir pra fora. Fui para a Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, como bolsista. Eu não tinha o inglês bom, mas eles me deram muito apoio.
Passei dois meses por lá, quando depois eu apliquei para uma bolsa em Oxford. Eu soube que por lá tinha o melhor professor do mundo, na melhor universidade do mundo, para pesquisas sobre câncer. Quando eu passei, minha vida deu um giro. Foi um mundo novo experimentar um país com dinheiro para pesquisa – diferente do Brasil, que até hoje tem o mesmo valor de bolsa para mestrandos de quando eu entrei, em 2013. O salário de um cientista em Oxford talvez o Brasil nunca chegue a atingir.
Minha carreira deu um salto, mas meu maior reconhecimento foi quando o professor Peter Ratcliffe, ao receber o prêmio Nobel de Medicina em 2019, citou um resultado que tinha sido obtido por mim. Era um estudo sobre as mutações no gene Von Hippel-Lindau syndrome (VHL), associado a um tipo de câncer renal.
Nessa época, a gente tinha um grupo de cientistas mulheres. O meu ano estava acabando por lá. Ou eu arranjava um emprego ou eu voltava pro Brasil. O professor Peter me ofereceu uma vaga de cientista, e eu só voltei ao Brasil para apresentar minha tese. Eu ainda quero voltar para o Piauí, sinto falta. Mas eu não teria tido essa experiência por lá.
Eu desisti de ser professora na Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar) para seguir sendo cientista. Não me arrependo. Atualmente, através do Iinstagram, tenho conversado com as pessoas que desejam ir para fora fazer pesquisa. Há muitas meninas e mulheres cada vez mais interessadas em ocupar esses lugares. Oxford comemorou 100 anos que a primeira mulher entrou numa universidade. Nos laboratórios, há cada vez mais mulheres. A ciência é mulher. E o futuro é cada vez mais feminino na ciência.
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