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    Macacos, a peça, começou a ser elaborada em 2014, quando Clayton assistiu a torcedores do Grêmio gritando ofensas racistas contra o goleiro Aranha, do Santos. “Pensei: as pessoas fazem isso mesmo sendo filmadas? Que liberdade é essa que elas sentem?" Foto: Divulgação

vultos da dramaturgia

“Eu só tinha um sonho, um batom e uma bermuda”

Como Clayton Nascimento transformou uma ofensa racista num monólogo que encheu teatros no Brasil e no exterior

Gilberto Porcidonio, do Rio de Janeiro | 23 jul 2024_10h54
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Clayton Nascimento é um autor de bagagem. Atua, dirige, escreve, prepara elencos e ainda estuda na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), onde conduz, como parte de seu mestrado, uma pesquisa sobre dramaturgia e corporalidade negra. No ano passado, aos 33, tornou-se o mais jovem brasileiro a vencer o Prêmio Shell de Teatro, um dos mais tradicionais do setor. Recentemente, faturou o prêmio de Melhor Ator da Associação de Produtores de Teatro (APTR).

Clayton Nascimento é um autor com bagagem. Enquanto procura uma nova casa para morar, está rodando o mundo com a turnê de seu monólogo, Macacos. A peça acabou de passar por Chicago, onde ficou em cartaz entre 18 e 20 de julho, depois de ter sido encenada em sete cidades brasileiras ao longo de oito anos. Há poucas semanas, passou por Amsterdam, com casa lotada (o que também aconteceu em Santiago). Os próximos destinos são Portugal, Rússia e Uruguai (o título é traduzido em cada país. Para os americanos, chama-se Apes; para os uruguaios, Monos).

“Estou pensando onde é que eu vou morar, afinal. Não sei se eu continuo em São Paulo, onde tenho uma vida já estabelecida, ou aqui no Rio, onde ainda estou me estabelecendo”, disse Clayton à piauí, sentado no camarim do Teatro Riachuelo, no Centro do Rio. Era começo de abril, duas semanas depois de Macacos ter sido encenada pela última vez na temporada. Foi uma sessão extra, solicitada pelo público depois que todas as outras esgotaram. Enquanto esteve em cartaz no Rio, a peça vendeu nove mil ingressos.

“Mas estou à beira de vir de vez”, concluiu Clayton. “O Rio foi e está sendo muito bom para mim. As pessoas são acolhedoras e minha arte foi muito bem aceita aqui.” Ao seu lado, enquanto fala, estão uma mala (enorme) e uma bolsa (idem). O ator paulistano acabara de chegar ao Rio para passar uns dias e caçar imóveis.

A boa vontade de Clayton com o Rio se explica, de fato, pela recepção que os cariocas deram à peça. No monólogo, que pode durar até três horas (e chegou a durar quatro, numa apresentação especial durante a Festa Literária das Periferias, a Flup, em 2023), o ator, descamisado e rabiscado de batom, discorre, em um fluxo de consciência, sobre episódios de racismo ocorridos desde a fundação do Brasil até meses atrás. Os relatos são protagonizados por famosos – Elza Soares, Machado de Assis – e ele próprio. Incluem também casos de mortes violentas, como a de Eduardo de Jesus Ferreira, menino de 10 anos assassinado pela Polícia Militar com um tiro na cabeça enquanto brincava na porta de casa, no Complexo do Alemão, em abril de 2015. A mãe de Eduardo, Terezinha, sempre participa da peça. Sobe ao palco por alguns minutos, homenageia o filho e fala de sua busca por reparação. No ano passado, o advogado João Pedro Accioly estava na plateia e, terminado o monólogo, procurou Terezinha para conversar. Tornou-se seu representante legal. Um mês depois, conseguiu fazer com que a investigação da morte fosse desarquivada pelo Ministério Público do Rio.

Na Flup, quando pisou no palco, Terezinha teve efeito visível sobre os espectadores. Muitos se abraçaram emocionados, alguns choravam, outros sorriam. Ali, aos pés do Morro da Providência, era como se a peça assumisse explicitamente não ser apenas uma encenação, mas também uma resposta concreta às mazelas da escravidão.

O ator carioca Lucas Popeta, que assistiu a uma das edições de quatro horas do monólogo, diz que Macacos transformou sua percepção sobre arte. “Ali, eu vi um conteúdo que eu jamais tinha aprendido na escola ou na faculdade.” Popeta ministra um curso sobre o legado do Teatro Experimental do Negro (TEN), companhia de teatro fundada em 1944 pelo ator, economista e ex-senador Abdias do Nascimento. “O que mais me chamou a atenção foi a forma como o Clayton construiu toda essa narrativa. Hoje venho seguindo um caminho muito inspirado no dele.”

 

Em Jabaquara, Zona Sul de São Paulo, Clayton Nascimento teve uma infância tranquila. Filho do encanador Crispim e da manicure Maria do Carmo, dois piauienses que se mudaram para a periferia paulistana na década de 1980, o menino gozou de liberdade para brincar na rua, num tempo em que a internet ainda engatinhava. “Tinha um grupo com muitas meninas e meninos, e qualquer coisa animava a gente: subir em árvore, comer ameixa, almoçar na casa dos amigos, andar de patins, jogar vôlei usando uma corda como rede…”, ele conta. Era, contudo, uma criança tímida, que passava boa parte do tempo lendo. “Eu não ficava até muito tarde na rua.”

Certo dia, despontou um tiroteio em Jabaquara, e a mãe de Clayton morreu de preocupação porque o filho estava do lado de fora, brincando. Preocupada, passou a procurar alternativas para ocupar o tempo do menino. Ouviu de uma cliente que ela deveria matricular Clayton em aulas de teatro, e assim fez. Ele tinha 8 anos de idade quando chegou à Casa do Teatro, no bairro do Itaim, agraciado com uma bolsa de estudos concedida pela diretora da instituição, Lígia Cortez. Quando saiu, tinha 23.

Clayton gostou tanto de atuar que também passou a frequentar o Célia Helena Centro de Artes e Educação, escola de referência em teatro, localizada no Jardim Paulista. Na hora de prestar vestibular, não hesitou em escolher as artes cênicas. Foi aprovado na Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo (USP).

Só então, no campus da faculdade, no Butantã, Clayton se deu conta de um fato elementar sobre si mesmo: era negro. “Na periferia tem muita gente preta, então eu não sabia que era preto, eu apenas estava junto dos meus. Quando entrei na USP, pensei: ‘Eita, aqui é muito diferente.’ Nos dois primeiros anos de graduação, percebi que não conseguia fazer amigos, e eu sou um homem que adora se comunicar, conversar, dançar, comer, beber”, ele diz. “Um dia, fui comer um hot dog que uma tia estava preparando, e falei ‘e aí, tia, tudo bem? Quero um com isso, com aquilo…’ Percebi que, quando terminei de falar, ficou um grande constrangimento na fila. As pessoas pensando: ‘quem é esse cara?’ Isso só porque eu estava batendo papo com ela, que era uma pessoa mais parecida e próxima de mim do que todo mundo ali.”

Depois dessa experiência inaugural, Clayton passou se informar sobre o movimento negro. O assunto, dali em diante, tornou-se recorrente em conversas com amigos e familiares. “Meu pai dizia: ‘Negros vêm ao mundo duas vezes: quando nascem e quando se tornam pretos.’ Senti que eu tinha nascido pela segunda vez.”

Numa noite de quinta-feira, em agosto de 2014, Clayton ligou a tevê do quarto onde morava, no Conjunto Residencial da USP. Estava passando uma partida das oitavas de final da Copa do Brasil, disputada por Grêmio e Santos. Nos minutos finais, o jogo foi interrompido porque torcedores gremistas gritavam injúrias racistas contra o goleiro do time adversário, Aranha. Em coro, chamavam-no de macaco. 

“Eu nunca tinha visto isso acontecer antes – esses xingamentos que agora a gente vê toda semana, todo mês”, lembra o ator. Aranha prestou queixa numa delegacia no dia seguinte. Vídeos dos torcedores foram exibidos nos telejornais e circularam pela internet. Um dos frames focava o rosto de uma mulher, Patrícia Moreira, que se tornou símbolo daquele gesto criminoso. Ela foi flagrada gritando de forma cadenciada: “ma-ca-co.” Como punição, o Grêmio foi eliminado da competição. Moreira e outros três torcedores gremistas foram indiciados por injúria racial.

“Pensei: as pessoas fazem isso deliberadamente, mesmo quando estão sendo filmadas? De onde vem essa legitimidade? Que liberdade é essa que elas sentem? É uma liberdade histórica, e preciso estudar onde ela nasceu”, relembra Clayton. Essas perguntas forçaram o ator a mergulhar numa pesquisa da qual resultaria o texto de Macacos. Inicialmente, a peça se chamava Rapsódia de um Homem Negro, mas Clayton optou por um nome mais simples e direto ao ponto. Queria, além disso, traçar a história desse xingamento. Por que os racistas falam tanto em macacos?

Clayton concluiu, em sua pesquisa, que a palavra se popularizou como ofensa nos tempos da França Equinocial, no século XVII. Os franceses tentavam se apoderar de partes do Brasil, sobretudo do Maranhão, e, nesse processo, sequestraram negros e indígenas para exibi-los na Europa, enjaulados, como figuras exóticas do além-mar. O tratamento bestial que essas pessoas recebiam faziam-nas serem comparadas com macacos, diz o ator. Há, contudo, outras explicações. A mais aceita é a de que, com o avanço dos estudos sobre a evolução das espécies e a descoberta de que o homem descende do macaco, a associação com o símio virou marcador de inferioridade. Teóricos do racismo, que proliferaram entre o final do século XIX e começo do século XX, apontavam supostas semelhanças entre o cérebro de pessoas negras e o dos primatas. Nenhuma dessas teorias sobreviveu ao teste do tempo, mas a ofensa segue viva. (Há poucos dias, no Rio de Janeiro, um casal foi filmado imitando macacos numa roda de samba no Centro da cidade. O caso está sendo investigado pela Polícia Civil.)

A palavra tornou-se o eixo central da peça de Clayton, que estreou em setembro de 2016, num festival de teatro independente em Copacabana. Naquele primeiro momento, o monólogo era curtíssimo: tinha apenas 15 minutos de duração. Com o tempo, foi ganhando musculatura. Entraram novas cenas, muitas delas inspiradas em histórias reais. Clayton passou a encenar, por exemplo, um trauma que viveu em 2018, quando ainda estava na faculdade. Uma noite, esperava por um ônibus na Avenida Paulista quando foi acusado agressivamente por um casal de tê-los assaltado. Clayton conta que, seguro da própria inocência, esperava que os pedestres o ajudassem, mas ninguém moveu uma palha, embora a rua estivesse movimentada. O ator foi agredido pelo casal e terminou, ele sim, roubado por seus algozes.

 

Macacos nunca recebeu patrocínio e, durante anos, ficou restrita ao circuito alternativo paulistano. O ponto de virada foi 2022. Passada a pior fase da pandemia, os teatros começavam a se reerguer. Clayton, depois de bater em muitas portas, conseguiu vencer um edital do Centro Cultural São Paulo, localizado no bairro da Liberdade. O monólogo passou a ser assistido por um público mais amplo e ganhou notoriedade. Tornou-se livro, lançado naquele mesmo ano pela editora Cobogó.

A dificuldade financeira deu à peça um aspecto austero, que nunca foi abandonado. Quando concebeu o monólogo, Clayton não tinha dinheiro para comprar elementos cênicos. “Eu só tinha um sonho, um batom e uma bermuda”, ele lembra. “Quando me dei conta de que eu teria dificuldade para contratar um figurinista, optei por me vestir do simples da minha periferia, do jeito que você vê a molecada correndo na rua.” No palco, o ator veste apenas uma bermuda de tactel. É um recurso eficiente – faz com que os espectadores criem empatia por aquele jovem negro descalço e quase despido, figura ambígua, que por vezes causa medo nas ruas das grandes cidades, mas encanta quando dança passinho em vídeos publicados nas redes sociais. A bermuda e o peito descoberto emulam, intencionalmente, uma estética periférica.

Clayton conquistou, em 2023, o Prêmio Deus Ateu de Teatro & Artes por sua interpretação em Macacos. Foi também indicado na categoria Melhor Dramaturgia, Espetáculo e Direção, e venceu o Prêmio Shell. No ano anterior, já havia sido coroado como Melhor Ator pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). O monólogo, mais do que láureas, angariou um séquito de admiradores, entre os quais os atores Neusa Borges, Renata Sorrah, Antonio Pitanga e Fernanda Montenegro.

“A nossa grande dama, a Fernanda, me disse algo que eu guardo muito no coração: ‘Que bom que você é brasileiro. Por favor, faça teatro até ficar velhinho.’” De Antonio Pitanga, uma das maiores referências para jovens atores negros no Brasil, Clayton diz ter ouvido: “‘Eu vivi toda a minha vida pra conseguir assistir um jovem preto arrancando os grilhões em cena sem deixar de entregar qualidade técnica.’”

Manuela Dias, autora da novela Amor de Mãe e da série Justiça, ambas produzidas pela TV Globo, tornou-se amiga de Clayton depois de assistir ao monólogo, no ano passado. Conta que ficou “embasbacada e em êxtase”. “Clayton é uma ode viva a tudo que mais importa e queremos como sociedade. Muito talento lapidado à perfeição com estudo e perseverança incansáveis”, ela diz, entre outros elogios rasgados.

 

A temporada mais recente de Macacos foi a maior de todas e fez Clayton famoso. O ator se viu, de uma hora para outra, disputado para entrevistas de tevê. Foi citado até mesmo em um discurso de Lula, em março, durante o evento de lançamento do Plano Juventude Negra Viva, em Brasília. O programa reúne políticas para reduzir a violência e inserir socialmente os jovens negros, que são principais vítimas de homicídios no país. “A exemplo de tantos artistas negros do Brasil, Clayton transformou a dor em arte”, disse Lula.

O ator, aproveitando a boa fase, tem engordado o portfólio. Participou do filme Selvagem (2021), de Diego da Costa, e de quatro séries: Dois Tempos, do Disney Plus, As Five, da TV Globo, Carcereiros e A Caverna de Petra, ambos da Globoplay. Interpretou, no ano passado, Caíto Figueroa Roitman, personagem noveleiro da novela Fuzuê. Paralelamente, tem trabalhado como preparador de elenco no seriado Rota 66, da Globoplay, e no filme Erva de Gato, de Novíssimo Edgar. Já havia desempenhado essa função na série Histórias Impossíveis, da Globo. Também foi contratado como roteirista e diretor do especial Falas Negras deste ano, da TV Globo, que sairá no dia 20 de novembro, feriado da Consciência Negra. Essa última experiência, diz Clayton, tem sido um agradável reencontro com a palavra escrita.

“Fazia tempo que eu não sentava para escrever. Também quero transformar o livro Macacos em uma segunda edição, pois muitas cenas novas foram entrando”, explica Clayton. “É raríssimo você ser autor, ator, diretor, ajudar a produzir, fazer desenho de luz com a equipe, ser o seu próprio espetáculo, então permiti que todas as cenas que quisessem nascer, nascessem. Acho que vou demorar muitos anos para voltar a dirigir e interpretar um monólogo meu. Preciso gastar todas essas cenas agora.”

A temporada internacional de Macacos ainda não tem data para terminar. Terezinha, mãe do menino Eduardo de Jesus Ferreira, viajou junto. Clayton adapta o texto a cada país, de modo a contemplar a história local. Em abril, contou à piauí que pretendia cutucar o passado colonialista dos europeus. “Muitas das nações que vou visitar tentaram colonizar a nossa. A Holanda, por exemplo, tentou se apossar do Brasil várias vezes, sobretudo do nosso Nordeste. Quero dividir isso com os holandeses.” Em junho, terminada a passagem por Amsterdam, ele disse à reportagem que o texto foi bem recebido, cutucadas inclusas. “As pessoas dizem que europeu não interage em cena, mas eles interagiram super. Riram, se emocionaram. Pensei que fosse ser hostilizado, mas me surpreendi.”

Antes da turnê, Clayton só havia saído do Brasil uma vez, para uma curta temporada de Macacos no Chile. Planeja voltar do exterior com gravações em vídeo – não diz bem o quê – que exibirá para autores periféricos em começo de carreira. “É para que eles saibam que podem conquistar o que eles quiserem com a arte deles.” 

O ator preconiza a ideia de que é preciso democratizar não apenas oportunidades, mas também as experiências boas da vida, sistematicamente negadas aos negros no Brasil. “É raro as pessoas me perguntarem sobre coisas boas, sobre minhas perspectivas. Mas os negros são pessoas felizes. Têm, muitas vezes, dificuldades, mas não são pessoas destruídas”, argumenta Clayton. “Sonhar é de graça e faz muito bem para a psique humana. A gente tem que ensinar a molecada a sonhar sem pudores.”

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