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    Tubarão analisado pela Fiocruz: quantidade de cocaína encontrada é mais de cem vezes maior do que a detectada em outras espécies de peixes e mexilhões (Fiocruz)

questões narcoambientais

COCAÍNA EM TUBARÕES É SÓ A PONTA DO ICEBERG

Depois de encontrar drogas nos peixes, grupo da Fiocruz conduz novos estudos para mapear a contaminação na cadeia alimentar marinha

Bernardo Esteves e Allan de Abreu, do Rio de Janeiro | 26 jul 2024_18h40
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A cocaína presente em treze tubarões coletados no Rio de Janeiro por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) pode ser apenas a ponta de um iceberg. A droga ilícita que chamou a atenção da opinião pública quando o estudo foi noticiado é mais um sinal de que esses e outros peixes possivelmente estão contaminados por poluentes despejados diariamente nos mares. “Nesse estudo olhamos para a cocaína, mas deve ter uma série de outros contaminantes nos animais”, disse à piauí o farmacêutico Enrico Mendes Saggioro, líder do grupo que encontrou a cocaína nos tubarões. Outras drogas ilícitas, medicamentos, hormônios, microplásticos, metais pesados e diferentes compostos já foram identificados em organismos marinhos. “Estamos adoecendo os oceanos”, afirmou o pesquisador. 

O estudo da Fiocruz, publicado em julho na revista Science of The Total Environment, encontrou cocaína em todos os animais analisados pelo grupo de cientistas – dez fêmeas e três machos. Em apenas um deles não havia a benzoilecgonina, o principal composto resultante da metabolização da cocaína pelo organismo.

A cocaína já havia sido identificada em peixes e mexilhões, mas esta é a primeira vez em que foi encontrada em tubarões. Esses animais são considerados bons indicadores da qualidade do ambiente e frequentemente usados em estudos que avaliam a presença de poluentes no oceano. “Por se tratar de predadores que estão no topo da cadeia alimentar, a chance de encontrar contaminantes em seu organismo é maior”, disse Saggioro. Isso porque eles acumulam os poluentes absorvidos pelos organismos ao longo da cadeia.

Os animais testados pertencem à espécie Rhizoprionodon lalandii, conhecida popularmente como tubarão-bico-fino-brasileiro ou cação-rola-rola. Trata-se de um peixe de pequeno porte – os espécimes analisados tinham entre 46 e 73 centímetros de comprimento. Os animais foram capturados por pescadores na praia do Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, entre setembro de 2021 e agosto de 2023. Eles haviam sido coletados para testes de outros contaminantes em estudos conduzidos no laboratório de Saggioro, especializado na análise de indicadores da saúde ambiental. Os pesquisadores resolveram analisá-los para verificar se também havia cocaína em seus músculos e fígado, e se surpreenderam com os resultados. “Esperávamos encontrar a droga em alguns dos animais analisados, mas não em todos”, disse Saggioro.

A amostragem é pequena e não permite extrapolar as conclusões para outros animais. Saggioro contou que seu grupo decidiu publicar prontamente os resultados inéditos, mas já está conduzindo novos estudos para entender melhor os achados. Os cientistas pretendem testar outras espécies marinhas e analisar amostras de água para traçar um panorama mais abrangente da contaminação por cocaína no oceano. Querem também investigar no futuro a presença de outros contaminantes nesses organismos.

Como o tubarão-bico-fino-brasileiro passa todo seu ciclo de vida junto à costa, a cocaína encontrada nos tubarões vem provavelmente do Rio de Janeiro. A principal hipótese para os pesquisadores é a de que a droga tenha sido lançada ao mar com o esgoto – ela pode ter origem tanto na urina de usuários quanto no descarte de vestígios resultantes da manipulação e refino da cocaína em laboratórios clandestinos. O emissário submarino da Barra da Tijuca, bairro vizinho ao Recreio dos Bandeirantes, lança 1.200 litros de dejetos por segundo no mar, segundo a concessionária de saneamento Iguá. Além disso, o Canal de Sernambetiba, que recebe esgoto não tratado de comunidades da Zona Oeste, deságua na praia do Recreio, e pode estar na origem de parte da substância.

Para Saggioro, os resultados do estudo indicam que há muita cocaína circulando no Rio de Janeiro. O farmacêutico ressaltou que a molécula da substância pode se degradar na natureza, e que há uma série de barreiras que dificultam que ela seja incorporada aos tecidos dos tubarões. “Para a droga chegar até o animal, é preciso que tenha um grande volume circulando no ambiente”, afirmou o cientista.

Há, porém, outra hipótese. Os pesquisadores não descartam a possibilidade de que os tubarões possam ter ingerido frações de pacotes de cocaína destinados para o tráfico internacional e que foram parar acidentalmente no fundo do mar. Para integrantes do Núcleo Especial de Polícia Marítima (Nepom) da Polícia Federal fluminense, ouvidos pela piauí, essa é a principal tese, uma vez que o Recreio é relativamente próximo ao porto de Itaguaí, muito utilizado por narcotraficantes para enviar cocaína à Europa. Além disso, a praia onde foi feita a coleta dos tubarões está na rota dos grandes navios cargueiros que saem do porto de Santos e fazem uma parada na zona portuária do Rio, antes de seguir para outros continentes. 

No tráfico internacional de drogas por via marítima, não é raro a cocaína ser embalada em material impermeável e inserida por mergulhadores em um compartimento submerso no casco desses navios, chamado “sea chest”, que serve para captar água do mar e resfriar o maquinário da embarcação. Um trabalho arriscado, que pode render ao mergulhador cooptado pelo crime até 300 mil reais. Desde pelo menos o início dos anos 2010, há relatos de que mergulhadores inseriram carregamentos da droga nos cascos de navios em Itaguaí. 

Em julho de 2021, período próximo ao das coletas dos animais no Recreio, o Nepom da PF apreendeu 400 quilos de cocaína em um navio ancorado em Itaguaí que iria para Portugal. Entre 2021 e 2023, a PF e a Receita Federal apreenderam um total de 1,6 tonelada da droga em Itaguaí (a maior parte estava dentro de contêineres). Para os policiais federais, é possível que um grande carregamento dessa droga ocultada nos casos dos navios tenha se soltado e se espalhado pelo mar, próximo ao Recreio dos Bandeirantes, o que teria gerado a contaminação nos peixes.

A hipótese poderia ajudar a explicar a grande quantidade de cocaína identificada nos tubarões, que era mais de cem vezes maior do que a documentada por estudos anteriores em outras espécies marinhas.

Não se sabe qual foi o efeito da droga sobre os animais analisados pela equipe da Fiocruz. Nenhum estudo investigou como a cocaína age sobre tubarões, mas pesquisas feitas com o peixe paulistinha, usado como organismo modelo para estudos biológicos, dão pistas do que pode acontecer com os animais que ingeriram a substância. Os efeitos catalogados nesses estudos envolvem mudanças no ritmo cardíaco e na forma como nadam os peixes, conforme mostrou um trabalho realizado pelo grupo de Saggioro.

As quantidades de cocaína identificadas nos tubarões estão na casa dos milionésimos de gramas, bem menores do que as ingeridas por usuários da droga. Mas não se sabe qual é o efeito do consumo da carne dos animais expostos à substância. “Não temos como dizer se a saúde humana vai ser impactada, mas os resultados servem de alerta para o que estamos jogando nos mares e do que estamos nos alimentando”, disse Saggioro. 

O consumo de cação – nome popular com que é comercializada a carne de várias espécies de tubarão – é popular em diferentes regiões do Brasil. “O estudo reforça a mensagem de que não se deve comer carne de cação”, disse à piauí o ambientalista José Truda Palazzo Jr., que não teve envolvimento com o trabalho. “E isso não só porque a maioria das espécies disponíveis no mercado estão ameaçadas de extinção, mas também porque isso representa um risco potencial à saúde”, continuou Truda, que coordena um projeto de monitoramento dos tubarões da baía da Ilha Grande tocado pelo Instituto Brasileiro de Conservação da Natureza (Ibracon). “Os resultados confirmam algo que já sabíamos: como predadores de topo de cadeia, os tubarões são acumuladores da enorme quantidade de porcarias que estamos jogando no oceano através do nosso esgotamento sanitário.” 

O ambientalista disse ainda que servir carne de cação na merenda escolar, como fazem muitos municípios, é uma prática prejudicial para a saúde pública. “Quanto mais jovem se começa a ingerir a carne de cação, maior o potencial de você ter problemas de intoxicação, porque isso fica no organismo e não vai mais embora”, afirmou Truda.

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