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questões da vida no mar

Com a cara, a nadadeira e a coragem contra tubarões

Sem equipamentos especiais, bombeiro arrisca a vida para salvar quem nada entre predadores

Maria Júlia Vieira | 12 abr 2023_07h52
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Eram 11h20 do primeiro domingo de março quando tudo aconteceu. O sargento bombeiro Marcelo Fonseca, 41, estava no posto de observação 10, em frente à Igrejinha de Nossa Senhora da Piedade, e viu um tumulto na primeira quebra de onda. Poucos minutos antes ele tinha alertado, duas vezes, um jovem de 14 anos de que o banho de mar era proibido pela prefeitura por causa da ocorrência de ataques de tubarão naquela área de Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife. Por duas vezes ele tirou o garoto da água. Na terceira vez em que o jovem voltou para o mar, Fonseca viu acontecer o que temia: o adolescente, com a água na cintura, parecia estar sendo chacoalhado. O guarda-vidas já sabia o que iria encontrar. Pegou sua nadadeira, o rescue tube, espécie de boia que auxilia no resgate, e correu até o rapaz. 

Normalmente, os ataques acontecem em questão de segundos. Quando os bombeiros de plantão saem do posto de observação e chegam ao local do incidente, já há banhistas auxiliando no resgate. Naquele domingo, porém, a única pessoa que tentou ajudar foi o tio do garoto, que estava com ele na água. Fonseca tomou fôlego e entrou correndo no mar. Quando conseguiu chegar até eles, pegou o jovem nos braços e levou-o à faixa de areia para iniciar os primeiros socorros.O tubarão já havia ido embora. Isso acontece com frequência: atacam com as chamadas “mordidas exploratórias”, por curiosidade ou como mecanismo de defesa, e depois vão embora. 

Fonseca fez um torniquete para estancar o sangue da perna direita do garoto. O fêmur estava exposto, o tecido muscular arrancado, e o menino agonizava. Em poucos minutos, o SAMU chegou e finalizou o trabalho de primeiros-socorros iniciado pelo guarda-vidas enquanto aguardava o helicóptero do Grupamento Tático Aéreo (GTA). O adolescente foi levado ao Hospital da Restauração, passou por uma cirurgia de amputação da perna e, felizmente, sobreviveu. 

Bombeiro há quase 16 anos, Fonseca trabalha com diversos tipos de resgate. Retira corpos de pessoas afogadas ou soterradas. Mas aquele domingo foi atípico. “Foi a primeira vez que aconteceu comigo. Já passei por várias corporações, pelo incêndio, PH (pré-hospitalar) e sou mergulhador. Costumo fazer resgates de cadáveres em meio líquido e para isso minha mente já está preparada. Mas com o jovem foi bem mais complicado. Ele estava agonizando e isso acabou me assustando. Mexeu muito com o meu psicológico”, contou à piauí.

O bombeiro Marcelo Fonseca: “fui treinado para salvar”. | Foto: Maria Júlia Vieira

 

 

O ataque presenciado pelo guarda-vidas foi o segundo em menos de quinze dias na região metropolitana do Recife. Um dia depois do ocorrido, foi registrado outro incidente com pouco mais de 1 km de distância do anterior. Desde 1992, quando os ataques começaram a ser monitorados, foram registradas 67 ocorrências em 33 dos 187 km do litoral pernambucano. Destes, de acordo com o Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes com Tubarões (Cemit), quinze foram na região da Igrejinha Nossa Senhora de Piedade, onde Fonseca costuma dar plantão duas vezes por semana. 

Na piscina, no mar ou em cursos de mergulho pagos pelo Corpo de Bombeiros Militar de Pernambuco (CBMPE), o treinamento de salvamento na água é quase diário na rotina de Fonseca. Concursado, o recifense se interessou pela profissão por conta da estabilidade. Antes, entregava bebidas em sua bicicleta para comerciantes da região em que morava. Ganhava pouco, e o salário inicial de 2.200 reais como bombeiro lhe interessou. Hoje recebe 6.500 reais mensais. As entregas ficaram no passado, mas a bicicleta continua sendo seu meio de transporte favorito.

Fonseca trabalha em regime de plantão 24h/72h, ou seja, trabalha um dia direto e folga três. Em seus dois expedientes semanais, pedala 26 km até o serviço. Nas folgas, faz exercícios sozinho e concilia os horários para se dedicar aos cinco filhos,  à esposa e à graduação em Educação Física, iniciada recentemente. Nos dias de plantão, utiliza a piscina do batalhão e treina resgates de afogamento. Nenhum deles, contudo, ensina a lidar com os ataques. O guarda-vidas afirma não ter medo de mar ou de tubarões, mas, quando menciona o ataque que presenciou, roga a Deus que seja o último. “O trabalho da gente é resgatar vidas, não é lutar com tubarão”, brinca.

Pernambuco é o estado brasileiro com o maior número de incidentes entre humanos e tubarões. De acordo com o Cemit, as espécies já monitoradas no trecho urbano do Grande Recife são o tigre e o cabeça-chata, comuns em águas tropicais e temperadas. Apesar de serem considerados potencialmente agressivos, os tubarões são míopes e não figuram na lista de animais mais letais aos seres humanos. 

A recorrência de ataques na região tem muitas causas. Em sua tese de doutorado, intitulada A problemática de incidentes com tubarões em Pernambuco, Brasil, o engenheiro de pesca Jonas Rodrigues analisa os principais motivos dos ataques. São eles: a topografia do litoral pernambucano, formando um canal profundo depois dos arrecifes (rochas), o que facilita a passagem dos animais; correntes marítimas de retorno, que facilitam o caminho dos tubarões até lá; e interferências ambientais em mangues e áreas ribeirinhas para a construção de centros urbanos e obras como o Complexo Portuário de Suape. 

“A área do Complexo Portuário de Suape […] está localizada em uma das maiores regiões de estuário do estado de Pernambuco, onde quatro grandes rios desaguam, além de outros rios de menor porte. Regiões de estuários são de extrema importância para espécies aquáticas, tanto marinha, como de água doce, e a modificação desses ambientes gera impacto sobre a fauna e flora local, sendo a perda de habitats uma das maiores fontes de desequilíbrio ambiental”, escreve Rodrigues em sua tese.

Para o pesquisador, a construção do porto ignorou a fauna e a flora do local onde foi implementado e não considerou a possibilidade de surgirem incidentes com tubarões. Outra coisa que atrai os bichos é a pesca de arrasto de camarão, realizada principalmente no litoral do município de Jaboatão dos Guararapes, onde aconteceram a maioria dos ataques. Para cada quilo de camarão capturado, 5 kg de fauna marinha são aprisionados e posteriormente descartados no mar – o que representa um banquete para os tubarões. Rodrigues afirma ainda que a alta turbidez da água (alta quantidade de partículas em suspensão, deixando a água pouco transparente) se soma à rebentação das ondas para fazer com que “os tubarões confundam os seres humanos como uma presa do hábito alimentar”. Outro estudo, publicado em 2008, também associa o aparecimento de tubarões a fatores como o descarte de chorume, esgoto sanitário e resíduos de um matadouro próximo ao Rio Jaboatão, o que também afetaria negativamente o estuário onde os animais se reproduzem.

Entre 2004 e 2014, a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), em parceria com a Secretária de Defesa Social do Estado (SDS), desenvolveu o Projeto de Pesquisa e Monitoramento de Tubarões no Estado de Pernambuco (Protuba). Nessa década, os pesquisadores, a bordo do barco ‘Sinuelo”, capturavam os tubarões, marcavam-nos e soltavam para entender o trajeto que percorriam no mar. O convênio foi finalizado em 2015, e o barco que fazia o monitoramento dos animais foi visto abandonado em Brasília Teimosa, na Zona Sul do Recife. 

 

Antes dos três ataques que aconteceram entre fevereiro e março deste ano, não havia previsão de retorno da parceria entre o governo e as universidades. As placas de sinalização de zona de perigo na orla e na faixa de areia estavam apagadas, e os únicos profissionais de salvamento na praia eram os guarda-vidas do corpo de bombeiros. Poucos dias depois dos incidentes, o governo de Pernambuco anunciou um investimento inicial de 2 milhões de reais para ser aplicado em ações de prevenção aos incidentes com tubarões e retomou a parceria entre Cemit e UFRPE, que, junto com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e a Universidade de Pernambuco (UPE) se tornou membro científico do comitê que estuda o assunto.

Semanas após os ataques, trecho da praia de Piedade permanece com intenso monitoramento e poucos visitantes | Foto: Maria Júlia Vieira

 

À piauí, o Cemit afirmou que tem investido em ações de “ampliação do patrulhamento aéreo, reforço na atuação das prefeituras envolvidas, incremento do efetivo de guarda-vidas, reposição e conserto das placas de sinalização, com previsão de novos modelos”. 

De fato, quem voltou à praia depois dos primeiros ataques viu novas placas e bandeiras sinalizadoras de perigo, além de monitoramento do local feito por helicópteros, jet skis, quadriciclos, bombeiros civis, militares e guarda municipal. A mensagem é clara: é proibido banho de mar e prática de esportes náuticos. Difícil mesmo é convencer os banhistas, pois muitos têm a praia como a principal fonte de lazer. Mas, por falta de educação ambiental e até certo negacionismo, não conseguem mensurar o risco para si e para os profissionais de resgate. 

Apesar do investimento anunciado pelo governo, os bombeiros envolvidos nos salvamentos ainda não contam com equipamentos ou treinamentos específicos para os casos de incidentes com tubarões. O único EPI usado diretamente na interação homem-tubarão deixou de ser usado: o dispositivo, chamado de “shark shield”, era preso na perna dos bombeiros, criando um campo magnético que impedia ou pelo menos dificultava a aproximação dos tubarões. De acordo com o Cemit, a tecnologia se tornou obsoleta. Porém, no início de março, o coronel Robson Robert, presidente do órgão, havia mencionado o alto valor do equipamento e da sua manutenção. Por enquanto, para realizar os salvamentos, os guarda-vidas só contam com nadadeiras, boias de resgate conhecidas como rescue tube e o elemento mais importante do ofício: coragem. Muita coragem.

“Na hora da adrenalina eu não penso na minha vida. Depois do salvamento é que lembro do perigo”, conta Fonseca, que fez do lema da corporação o seu mantra pessoal: “vidas alheias e riquezas a salvar”. Quando fala em sua profissão, o guarda-vidas brincalhão enche os olhos de água. Rememora os resgates e os contatos com as vítimas que sobreviveram. Até hoje, Fonseca não perdeu ninguém para o mar ou os tubarões. E se acostumou a, mesmo enquanto toma “aquela cervejinha” com os amigos em dias de folga, ficar alerta a qualquer assovio ou movimentação estranha no mar. 

“Uma vez eu estava na praia de Gaibu, me divertindo com minha esposa, e eu vi um casal se aproximando do trecho da corrente de retorno. Quando percebi que eles iam cair na vala, corri primeiro que os guarda-vidas de plantão. Porque eu vivo isso. Eu fui treinado para salvar.” E é nisso que pensa todos os dias, quando pedala em sua bicicleta azul sem saber bem qual será o trabalho do dia – se um afogamento, um resgate de cadáver ou um tubarão.

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