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    ILUSTRAÇÃO DE PAULA CARDOSO

anais da criminalidade

Começo para uma história sem fim

Como uma foto, um porteiro e um livro de registros complicaram ainda mais a investigação do caso Marielle

Allan de Abreu, Malu Gaspar, Thais Bilenky e Fernanda da Escóssia | 06 nov 2019_10h57
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Em 22 de janeiro de 2019, o celular do ex-policial militar Ronnie Lessa piscou: surgiu na tela uma foto do livro de visitas ao condomínio Vivendas da Barra, na Barra da Tijuca, no Rio, onde ele morava. Lessa estava em liberdade, mas já era suspeito de matar a vereadora carioca Marielle Franco, em 14 de março do ano anterior. A foto no celular, enviada pela mulher de Lessa, Elaine, mostra um registro manuscrito de que, na tarde do fatídico 14 de março, Élcio de Queiroz, também acusado pelo assassinato de Marielle, estivera no condomínio e pedira na portaria para ir à casa 58, onde morava o então deputado federal Jair Bolsonaro. A imagem poderia ser importante para a defesa da dupla Lessa/Queiroz, pois contradiz os termos da acusação do Ministério Público, segundo a qual quem recebeu a visita de Queiroz naquela tarde foi Ronnie Lessa. Ou seja, os promotores sustentam que o visitante foi à casa 65/66, a casa de Lessa. De lá, segundo a denúncia, os dois saíram para matar Marielle. O conteúdo da mensagem enviada por Elaine ao marido tumultuaria a já tumultuada investigação do caso Marielle.

Nesse meio tempo, porém, a foto com as informações do livro de visitas do condomínio ficou esquecida no telefone de Lessa – até os primeiros dias de outubro, quando as promotoras responsáveis pela investigação do assassinato tomaram conhecimento dela. Lessa e Queiroz sempre haviam negado ter se encontrado no condomínio no dia do crime. A foto reforçava essa versão: segundo a imagem do livro, Queiroz fora visitar Bolsonaro, não o comparsa.

Lessa e Queiroz foram presos em março deste ano, acusados pelas mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes. Por que demorou tanto tempo para as promotoras tomarem conhecimento da foto? Porque os peritos da Polícia Civil levaram sete meses – entre março de 2019, quando o telefone foi apreendido, e outubro – para conseguirem quebrar a senha do celular de Lessa. No dia 1º de outubro, a TV Globo teve acesso ao livro de registro de entradas e saídas do condomínio Vivendas da Barra, dando início a uma investigação feita pelos repórteres da emissora, segundo nota do diretor-geral de jornalismo da Globo, Ali Kamel, divulgada esta semana. Ao ser levada ao ar pela emissora, 28 dias depois, a investigação dos repórteres sobre quem Élcio Queiroz fora visitar naquele 14 de março traria ainda mais dúvidas sobre um inquérito policial que já colecionava mais perguntas do que respostas.

No dia 4 de outubro, Lessa e Queiroz mudaram suas versões pela primeira vez desde que foram presos e acusados pelo crime, em março de 2019. Admitiram, em audiência judicial, que estiveram juntos no dia do assassinato de Marielle, no Vivendas da Barra, e que, de lá, saíram para assistir pela tevê ao jogo do Flamengo contra o Emelec do Equador, num bar próximo. Continuaram a negar, porém, a autoria do crime. A reportagem da piauí assistiu aos depoimentos de Lessa e Queiroz, concedidos por videoconferência do presídio federal de Porto Velho, ao juiz Gustavo Gomes Kalil. Mais magros, eles demonstraram segurança nas respostas ao juiz. Ao final, Lessa mandou um beijo para a advogada, que assistia ao depoimento no Rio. 

Estimulado pela foto do livro de visitas do condomínio encontrada no telefone de Lessa, o Ministério Público obteve autorização judicial e  apreendeu o livro original da portaria do Vivendas da Barra no dia 5 de outubro. Dois dias mais tarde, o síndico do condomínio entregou voluntariamente à polícia, em um CD-ROM, as gravações das conversas mantidas entre a portaria e as casas dos moradores entre janeiro e março de 2018. Naquele mesmo 7 de outubro, o porteiro responsável pela anotação do dia 14 de março de 2018 foi ouvido pela primeira vez pela Polícia Civil e repetiu o que anotou: Queiroz procurou por “seu Jair” na casa 58, e o “seu Jair” atendeu. Indagado novamente no dia 9, o porteiro reiterou o depoimento anterior. Naquele mesmo dia, o governador do Rio, Wilson Witzel, encontrou-se com Bolsonaro durante uma festa de aniversário em Brasília e, segundo o presidente, disse a ele que seu nome fora citado nas investigações do caso Marielle. Witzel nega.

No dia seguinte, 10, o procurador-geral de Justiça do Rio, Eduardo Gussem, e a promotora do caso, Simone Sibilio do Nascimento, levaram o caso ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, onde tramitaria eventual investigação contra o presidente da República. Segundo nota encaminhada à piauí pela assessoria do Ministério Público, isso foi feito porque, “a partir do momento em que foi citada uma autoridade com foro de prerrogativa de função, nenhuma diligência que tangencie o depoimento do porteiro pode ser adotada até a manifestação do STF”. 

A versão de que um porteiro do condomínio citara Bolsonaro, levando o caso ao Supremo, começou a se espalhar pelas redações. Segundo Kamel, no meio da apuração, “uma fonte absolutamente próxima da família do presidente Jair Bolsonaro procurou a emissora para dizer que ia estourar uma grande bomba”, porque a investigação esbarrara num personagem com foro privilegiado. “Por que uma fonte tão próxima ao presidente nos contava algo que era prejudicial ao presidente? Dias depois, a mesma fonte perguntava: A matéria não vai sair?”, questiona Kamel na nota.

Em 29 de outubro, o Jornal Nacional, da Rede Globo, tornou público o conteúdo do depoimento de um dos porteiros do condomínio à Polícia Civil e ao Ministério Público. A reportagem destacou que, naquele 14 de março, dia do assassinato de Marielle, Bolsonaro não estava no Rio, mas em Brasília. 

Em 30 de outubro, Bolsonaro atingiu seu recorde diário de menções no Twitter durante o mandato presidencial, 1,6 milhão. Naquela manhã, como reação à reportagem do JN, o vereador Carlos Bolsonaro divulgou dois vídeos, o primeiro às 6h42 e o segundo às 9h26, ambos exibindo a tela do computador da administração do condomínio, com a relação de ligações telefônicas feitas da portaria do Vivendas da Barra. No primeiro vídeo, o áudio exibido confere com a duração em segundos que consta no nome do arquivo, conforme conclui perito aposentado da Polícia Civil do Distrito Federal ouvido pela piauí. Nele, Carlos toca o áudio da chamada entre a portaria e a casa de Ronnie Lessa, autorizando a entrada de Queiroz no dia 14 de março (https://twitter.com/CarlosBolsonaro/status/1189537947881746442). 

Já o segundo vídeo, com áudios feitos naquela mesma tarde da portaria para a casa 58 (de Jair Bolsonaro) e a 36 (de Carlos), é inconclusivo, porque Carlos editou o trecho inicial dos áudios, que não conferem com a duração que consta no nome dos arquivos  (https://twitter.com/CarlosBolsonaro/status/1189579300116279296).

O áudio com a chamada para a casa 58 tem 11 segundos, quando a planilha informa que demorou 29; e o áudio da ligação para a casa 36 tem 12 segundos, quando, segundo a planilha, deveria ter 27. Para o perito aposentado, há “incongruência” no vídeo. Mas ele ressalta que uma análise definitiva só é possível a partir da perícia do computador da portaria.

Procurado pela piauí, o Ministério Público não se pronunciou sobre os vídeos de Carlos Bolsonaro. Em nota, a assessoria do órgão informou apenas que “qualquer questão envolvendo o processo […] pode ser sanada em consulta aos autos junto ao Tribunal de Justiça”. O gerente do condomínio não foi localizado.

Os vídeos de Carlos Bolsonaro, o depoimento do porteiro, a demora em analisar os áudios das ligações da portaria e por que a foto do livro de visitas do condomínio foi parar no celular de Ronnie Lessa são alguns dos pontos obscuros que, nos últimos dias, complicaram a investigação sobre a morte de Marielle Franco e colocaram na berlinda a atuação do Ministério Público.

Somente depois que a Rede Globo divulgou o caso, no dia 29, é que o Ministério Público do Rio pediu perícia nas gravações que constam do CD-ROM entregues à polícia pelo condomínio – mas não no computador do Vivendas da Barra, onde constam as gravações originais. Com base no parecer da perícia, as promotoras do caso, Carmen Eliza Bastos de Carvalho, Simone Sibilio do Nascimento e Letícia Emile Alqueres Petriz, em entrevista coletiva, desqualificaram o depoimento do porteiro, dizendo que ele mentiu ao afirmar que Queiroz procurou por Jair Bolsonaro na portaria –  segundo os peritos, os áudios mostram que foi Lessa quem atendeu à chamada do porteiro naquele dia.

No entanto, ao deixar de analisar os arquivos do computador do condomínio, a perícia do Ministério Público ignorou a hipótese de algum arquivo ter sido apagado ou renomeado antes de ser entregue à polícia. O presidente Jair Bolsonaro, por sua vez, tumultuou ainda mais o caso ao  anunciar no sábado, 2 de novembro, que pegou os áudios da portaria antes que os arquivos fossem “adulterados”.

Para tornar o caso ainda mais complexo, o porteiro que anunciou a presença de Élcio Queiroz para Ronnie Lessa naquele 14 de março de 2018 não é o mesmo que deu depoimento implicando Bolsonaro. Revelada pelo jornalista Lauro Jardim em O Globo, a informação coincide com a dinâmica de funcionamento da portaria, segundo moradores: a cada turno de trabalho, o chefe do serviço é o encarregado de anotar as visitas no livro, enquanto um auxiliar interfona para as casas. Esse segundo porteiro deve ser ouvido pelo Ministério Público nos próximos dias.

Não está claro por que o chefe da portaria – que está de férias e mora na Zona Oeste do Rio, área de atuação da milícia – anotou no livro de visitas que Queiroz ia para a casa 58, se o visitante foi para outra residência. Várias hipóteses são consideradas: 1) o porteiro realmente ouviu isso de Queiroz, e portanto não mentiu; 2) o porteiro se atrapalhou no dia da visita e, para não admitir o erro, citou Bolsonaro no depoimento; 3) o porteiro foi pressionado por pessoas ligadas à milícia a citar Bolsonaro no livro e no depoimento com o objetivo de levar o caso ao Supremo Tribunal Federal, onde a tramitação é mais lenta do que na primeira instância.

Se o porteiro mentiu, ainda não se sabe o motivo. Mas há uma convergência de fatos nos primeiros dias de outubro, quando a foto do livro de visitas, guardada no celular de Lessa, caiu nas mãos da perícia. Foi aí que Lessa e Queiroz mudaram sua versão e admitiram ter se encontrado no Vivendas da Barra no dia do crime. É possível que já soubessem que a foto do livro do condomínio, mesmo com uma anotação questionável, indicaria o contrário e tumultuaria a investigação.

Para as promotoras, o porteiro mentiu. A atuação delas também tem sido criticada e foi contestada internamente no Supremo, já que o foro competente do inquérito que investiga a morte de Marielle é o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e não o órgão máximo de Justiça do país. Toffoli alertou os membros do Ministério Público sobre isso. A promotoria cometeu ainda um segundo erro ao não informar o procurador-geral da República, Augusto Aras, do caso.

Essa interpretação foi confirmada pelo especialista em direito administrativo Adilson Dallari, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “Elas [promotoras] extravasaram a competência delas, agiram de maneira que não é permitida pelas leis que disciplinam a atuação do  Ministério Público”, afirmou Dallari. Por ser, em seu entendimento, uma conduta funcional irregular, o Conselho Superior do Ministério Público poderá abrir um processo administrativo contra os integrantes envolvidos, o que poderia levar a absolvição, advertência, suspensão ou mesmo perda do cargo, a depender da gravidade atribuída aos servidores.

Para o professor, contudo, o mais grave é o vazamento de parte do inquérito sigiloso, que também deveria ser investigado, e os responsáveis, penalizados. Aras arquivou o caso quando este chegou à PGR e desmereceu o depoimento do porteiro que citava Bolsonaro. Nos bastidores do STF, porém, há cautela na interpretação de que o porteiro simplesmente mentiu.

O fato de Carmen Carvalho, uma das promotoras do caso, ter publicado fotos em apoio a Bolsonaro nas redes sociais, durante a última campanha eleitoral, conforme revelou o site The Intercept, trouxe ainda mais dúvidas sobre a conduta do Ministério Público. Carvalho acabou afastada do caso na sexta-feira, 1º de novembro. Para o professor Adilson Dallari, o afastamento “foi prudente, até para tirar o foco, e é medida cautelar recomendável nessas situações”.

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