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Comportamento nota dez

Filme sobre meninas skatistas na periferia de São Paulo é uma peça de liberdade

Eduardo Escorel | 29 set 2021_09h03
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Meu Nome É Bagdá, de Caru Alves de Souza, escrito por ela e por Josefina Trotta, tem algo reminiscente do extraordinário Zero Em Comportamento (1933), de Jean Vigo – no final do filme, quatro meninos amotinados fogem por cima dos telhados “rumo à liberdade”, escreveu Paulo Emílio na sua célebre biografia do diretor.

O filme de Caru também remete à busca da liberdade, guardadas as devidas diferenças da escola pobre do interior da França, no início do século XX, para as pistas de skate da Freguesia do Ó, na periferia de São Paulo, cem anos depois. No final de Meu Nome É Bagdá, são quatro meninas skatistas que ocupam a rua, apropriando-se do espaço, e deslizam no sentido da câmera a caminho da libertação.

A liberdade em jogo não é apenas a das personagens, mas também a da diretora, que inclui ao menos duas cenas que rompem a unidade de estilo: sem mais nem porquê, um repentista canta parecendo se dirigir para a câmera; depois, Bagdá surge de cabeleira e a briga no campo de futebol se torna um conflito coreografado, formando quadros vivos.

Cena do filme ‘Meu Nome É Bagdá’ – Foto: Divulgação

 

O prêmio de melhor longa-metragem da mostra Generation 14plus, dado a Meu Nome É Bagdá no Festival de Berlim de 2020, foi justificado pelo júri com exatidão: “Por unanimidade, escolhemos o filme vencedor: uma impressionante peça de liberdade, cheia de maravilhosas amizades, música, movimento e solidariedade. Era impossível não ficar impressionado com a protagonista, com as pessoas ao seu redor, e era também impossível esquecer o clímax glorioso e poderoso desse filme. Isso é prova de que a vida pode não fazer milagres por nós, mas podemos superar todos os obstáculos se seguirmos nossa paixão.”

A protagonista, no caso, é Grace Orsato, no papel de Bagdá, apelido da jovem skatista Tatiana, de 17 anos, que, ao ser interrogada brutalmente por um policial – “E aí? Você é homem ou mulher?” – responde: “Eu sou de menor.” A resposta, além de rejeitar a dicotomia proposta, alude ao premiado filme anterior de Caru, De Menor (2013), considerado aqui em 2015 uma “rara demonstração de sensibilidade e talento que se situa entre o que tem sido produzido de melhor entre nós nos últimos anos”, cuja qualidade repousa “na excepcional harmonia entre encenação, câmera e interpretações, com destaque para a atriz Rita Batata”, virtudes ratificadas em Meu Nome É Bagdá (com mil perdões pela autocitação).

No prólogo de Meu Nome É Bagdá, usando boné, Bagdá desliza suavemente pelo pátio e corredor do colégio, fazendo pequenas, e algumas mais complexas manobras. Parece flutuar. Mas, desde essa abertura de dois minutos, o olhar de Caru evita com habilidade a armadilha de ter uma visão idealizada. A destreza da skatista é entrecortada por flashes – na penumbra multicolorida da festa para lá de animada, com música no volume máximo e gritaria, casais felizes se beijam, até o momento em que Bagdá é forçada por um rapaz a beijá-lo. São faces coexistentes do mundo. Uma é o espaço da liberdade criativa em que jovens têm relações harmoniosas e se expressam demonstrando habilidade no skate ou se divertindo em uma festa; outra tem componentes de violência, inclusive erótica, próprias da realidade circundante.

Após o título do filme, o suave percurso de Bagdá visto no prólogo é retomado em outro tom. Para sair do colégio com o portão trancado, depois de jogar sua mochila por cima do muro, ela passa a pequena bolsa a tiracolo e o skate entre as grades, pula o muro e, do lado de fora, escreve “FODA-SE” com um pilot vermelho em letras maiúsculas grandes. O filme mal começou (transcorreram apenas 4min34seg) e fica definido que harmonia, violência e revolta compõem a vida de Bagdá.

A narrativa de Meu Nome É Bagdá alterna jovens andando de skate em pistas da cidade e cenas do cotidiano de Bagdá, sua mãe (Karina Buhr) e duas irmãs (Marie Maymone e Helena Luz – um talento notável de 9 anos na época da gravação). Não há progressão dramática no sentido usual. Situações fragmentadas se acumulam até a violência irromper de forma aguda duas vezes. É nas amigas skatistas que Bagdá encontra a solidariedade necessária para reagir à segunda dessas agressões e recuperar a alegria de deslizar pelas ruas.

A dimensão que o skate adquire na vida dessas meninas é explicada por Bagdá momentos antes de ela confrontar seu agressor: “Quando cê tá andando no skate, cê não consegue pensar em outra coisa. Cê tá pensando no seu pé, cê tá pensando no seu chute, cê tá pensando… Mano: o skate é a meditação do futuro.”

Cena de ‘Zero em Comportamento’ – Foto: Divulgação

 

Ao concluir suas considerações sobre Zero Em Comportamento, feitas na biografia de Jean Vigo citada acima, publicada em 1957, Paulo Emílio escreveu: “Quando refletimos que o resultado final é um filme cujo frescor não parou de crescer nos últimos vinte anos, poderíamos falar em milagre, se já não soubéssemos que ele se deve à autenticidade fundamental do roteiro, respeitada durante a filmagem por um Vigo sujeito ao controle de suas mais íntimas recordações; e à unidade profunda, obtida na montagem mediante o sacrifício da clareza ao estilo…”

Arrisco prever que, daqui a vinte anos, quem assistir ao filme de Caru constatará que, devido à sua “autenticidade” e às suas “íntimas recordações”, seu “frescor não parou de crescer”, razão suficiente para justificar o inesperado elo sugerido entre Meu Nome É Bagdá e Zero Em Comportamento.

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Tendo sido lançado, no Brasil, em 16 de setembro, Meu Nome É Bagdá estreou agora em Brasília nas salas do Cine Cultura Liberty Hall e continua em cartaz em São Paulo no Espaço Itaú Augusta, Espaço Itaú Frei Caneca e no CCSP. No Rio de Janeiro está nas salas do Espaço Itaú Botafogo e Estação Net. Coberto de louros em vários festivais mundo afora, Meu Nome É Bagdá vem de ser premiado como melhor longa-metragem de skate no 6º Festival de Filmes de Surf e Skate de Paris (23 a 26/9). Um prêmio tão inusitado quanto inédito para um filme brasileiro. O jornal L’Humanité definiu o filme como “a crônica colorida e clipada dos quatre cents coups“. Referência a Os Incompreendidos (1959) , de François Truffaut, que é devedor, por sua vez, de Zero Em Comportamento.

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Dia 3 de outubro, domingo, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró, Vanessa Oliveira e este colunista conversam com Caru Alves de Souza, Grace Orsato e Karina Buhr, diretora e atrizes de Meu Nome é Bagdá, no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. O acesso à conversa do próximo domingo pode ser feito através do link https://youtu.be/Jb712sGtOHs .

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