Culpa – clausura e complexidade na tela
Graduados da Escola de Cinema da Dinamarca fazem filme exemplar em treze dias
Com o país voltado para a amplidão de Brasília, três dias antes da posse do novo governo estreou com aplausos da crítica, mas em poucas salas, outro filme nórdico confinado em espaço restrito e concentrado em apenas um personagem – Culpa, de Gustav Möller.
À vastidão do Planalto Central, primeiro se contrapôs a pequena ilha de Utoya, na Noruega, e agora se opõe a sala da Central de Emergências da polícia, na Dinamarca. Espaço amplo e luminoso, de um lado, clausura escura do outro. Na Presidência, um personagem simplório – diz o que lhe passa pela cabeça e se desdiz no dia seguinte. Na tela dos cinemas, por sua vez, uma jovem tentava se proteger do que ocorre à sua volta e, em Culpa, um ser humano complexo diz, bem-intencionado, o que convém, não o que pensa.
Apesar do despreparo do candidato, sobejamente demonstrado em sete mandatos de deputado e na campanha eleitoral, a maioria dos votos válidos o elegeu presidente da República, ignorando o seu passado. Uma vez eleito, milhões a mais foram encantados pelo autoproclamado “salvador da pátria” – 65% dos brasileiros acreditam que a situação econômica vai melhorar em 2019, de acordo com pesquisa Datafolha.
Enquanto isso, poucos deram atenção aos 72 minutos de agonia da jovem Kaja (Andrea Berntzen) em Utoya – 22 de Julho (comentado aqui em dezembro) – para ser exato, 1 616 espectadores, em quatro semanas, segundo o portal Filme B. Quantos aproveitarão a oportunidade de conhecer a fundo, e bem de perto, o policial Asger Holm (Jakob Cedergren) que, em Culpa, cumpre medida disciplinar enquanto tenta ajudar quem telefona para pedir socorro, durante uma longa e angustiante noite de trabalho que, no filme, dura 85 minutos?
Em vez do plano-sequência único de Utoya – 22 de Julho, acompanhando Kaja em tempo real durante o ataque a tiros do qual ela tenta se proteger, Möller preferiu filmar planos longos (entre cinco e 35 minutos) com três câmeras simultâneas, inspirado em Um Dia de Cão (1975), de Sidney Lumet. À medida que a filmagem de Culpa avançava – feita em treze dias e em ordem cronológica –, os planos iam se tornando cada vez mais longos para cansar de propósito o intérprete do personagem principal.
Möller consegue harmonizar, desse modo, tensão crescente e dinamismo visual – embora o foco de atenção seja centralizado no único personagem relevante em cena de corpo presente, quase sempre sentado em uma mesa usando fone de ouvido com microfone, Asger é visto de distâncias variadas e múltiplos ângulos criados na montagem.
Na tentativa desesperada de salvar a vida de Iben (Jessica Dinnage), uma das personagens de quem só ouvimos a voz, Asger passa a transgredir normas de procedimento de forma deliberada. Para tanto, substitui a sala principal do serviço de emergências, onde trabalha com três ou quatro policiais, por outra, adjacente. Isolado entre quatro paredes, sem ser ouvido por ninguém, tenta manter contato com Iben e toma medidas inusuais, além de continuar a atender telefonemas de outras pessoas pedindo ajuda. Em dado momento, Asger tem um acesso de fúria e quebra o único foco de luz do seu claustro. Por algum tempo, fica no escuro até ser iluminado de novo por uma solitária lâmpada vermelha.
À medida que o confinamento de Asger aumenta, seus antecedentes, motivações e perfil psicológico, vão sendo desvendados pouco a pouco. Sem chegar a serem explicitados de todo, revelam-se diferentes do que pareciam à primeira vista, em narrativa meticulosa, bem-construída pelo roteiro de Möller e Emil Nygaard Albertsen, e dosada com precisão pela montagem de Carla Luffe.
Nos minutos finais, após Iben ter dito que ele “é um homem bom”, convencido de que fracassou na tentativa de salvar a vida dela, Asger sai da clausura. Volta por um momento ao convívio da sala de emergências e vai embora, dando por encerrado seu turno de trabalho. Sozinho, de costas no fim do corredor, antes de abrir a porta para sair ele digita um número no seu celular, sem que se saiba para quem está ligando.
A redenção de Asger pode ser considerada o tema de Culpa, mas a conotação moral do título em português é equívoca, além de pouco atraente. A tradução fiel do original, Den Skyldige, seria Os Culpados, que pode ter sido evitado por existir uma minissérie de tevê homônima, lançada em 2013, ou para não se confundir o filme de Möller com O Culpado (Verfehlung), de Gerd Schneider, sobre um caso de pedofilia na Igreja Católica, exibido em 2015 na 39ª Mostra de São Paulo.
Ao adotar Culpa como título, porém, o distribuidor brasileiro atenuou o propósito declarado do diretor: “Somos todos culpados”, Möller disse. “Nós queríamos trabalhar com a percepção da culpa, do bem e do mal. […] Temos um protagonista que contraria as regras, e normalmente quando fazem isso em filmes, eles estão sempre certos. […] Nossa tendência é pensar que se alguém contraria as regras ele está certo. O filme também tenta questionar isso e inventar algo que é mais parecido com a vida real: e a vida real é super cinzenta.” (Entrevista completa aqui.)
Os principais integrantes da equipe que realizou Culpa, Möller inclusive, são graduados recentes da National Film School of Denmark (Escola Nacional de Cinema da Dinamarca). A exceção é Cedergren, ator de carreira estabelecida. O nível de excelência e o grau de reconhecimento atingido, incomum em primeiros filmes de ex-estudantes, eleva o padrão de exigência que passa a valer para novas produções com origem semelhante.
A trajetória de sucesso de Culpa começou no início de 2018, quando recebeu o Prêmio do Público nos festivais de Sundance e Rotterdam. No Brasil, foi exibido na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, no Festival Internacional de Cinema no Rio e no 6º BIFF – Festival Internacional de Cinema de Brasília, onde teve seus méritos reconhecidos ao receber o prêmio de Melhor Filme do júri oficial e do voto popular. Indicado como representante da Dinamarca para concorrer ao Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira, Culpa está entre os nove finalistas selecionados pela Academia para concorrer ao prêmio a ser anunciado em 24 de fevereiro.
Mesmo com essas credenciais de respeito, Culpa só foi lançado, no Rio e em São Paulo, na quinta-feira passada, quase um ano depois de estrear em Sundance. A demora pode ser resultado da intenção de criar boca a boca favorável a partir dos festivais brasileiros, e da eventual indicação para concorrer ao Oscar como finalista. Tática de alto risco que deu certo, mas relegou o filme a só ser lançado em data que parece inadequada, dada sua densidade, entre o Natal e o Ano-Novo.
Produzido com apoio do Instituto de Cinema da Dinamarca, Culpa é o que se pode chamar de um projeto muito bem-sucedido, mesmo sem estar entre os favoritos para ganhar o Oscar. Exemplar em vários sentidos, vem a calhar neste momento em que o modo de produção do cinema brasileiro poderá sofrer alterações.
Quanto ao governo em si que tomou posse nesta terça-feira em Brasília, o “que será, será”, como dizem os versos da velha canção de Jay Livingston e Ray Evans, cantada em O Homem Que Sabia Demais, filme de Alfred Hitchcock que recebeu o Oscar de Melhor Canção Original, em 1957.
Realidade e ficção se contrapõem outra vez – na Presidência há um homem que sabe de menos, enquanto no filme de Hitchcock o personagem principal, Dr. Benjamin “Ben” McKenna (James Stewart), sabia demais.
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