Curso ensina o que fazer em caso de ataque a escolas
Em colégio alvo de atirador, volta às aulas inclui videomonitoramento, apoio psicológico e ações preventivas
Pouco depois de chegarem ao Colégio Estadual Helena Kolody, em Cambé, Norte do Paraná, logo no início da manhã de segunda-feira (26), dezenas de alunos, pais, professores e funcionários se postaram em frente ao portão principal da escola, onde fizeram um ato pela paz. Nos cartazes que seguravam, liam-se mensagens, como “Chega de violência” e “Queremos segurança”, além de manifestações de luto. As atividades estavam suspensas no colégio desde a segunda-feira anterior – 19 de junho –, quando a escola foi alvo de um ataque: um ex-aluno de 21 anos entrou no prédio com a desculpa de pedir seu histórico escolar e, pouco depois, disparou pelo menos dezesseis vezes contra os estudantes. Karoline Verri, de 17 anos, foi atingida e morreu no local. O namorado dela, Luan Augusto da Silva, de 16 anos, também foi baleado e faleceu, posteriormente, no hospital. Foi o sexto ataque com mortes registrado em escolas brasileiras desde o início de 2022.
A breve manifestação não foi a única novidade no retorno das atividades no Helena Kolody. O colégio recebeu reforço na segurança: além de uma viatura da Polícia Militar (PM) ter permanecido diante do prédio, a escola também passou a contar com a vigilância de uma empresa terceirizada. Além disso, a unidade faz parte de um projeto-piloto de videomonitoramento preventivo, anunciado pelo governo do Paraná. Ao longo da semana passada, as aulas foram substituídas pelo acolhimento a alunos, pais, professores e funcionários, feito por uma rede de psicólogos, assistentes sociais e defensores públicos. Segundo a Secretaria de Estado da Educação do Paraná (Seed), as aulas propriamente ditas serão retomadas gradativamente.
As ações não se restringiram ao Helena Kolody. Dois dias depois do ataque, o governo do Paraná começou a treinar 460 servidores – professores, pedagogos ou funcionários de escolas – para atuarem como monitores de segurança em suas respectivas unidades. A ideia é que eles ajam como “agentes multiplicadores”, ou seja, que compartilhem as técnicas aprendidas em seus respectivos colégios. Em dois dias por ano – definidos em calendário escolar –, todas as escolas públicas devem passar por simulações, com o objetivo de treinar professores e alunos a se portar em caso de ataques, de acordo com as orientações do curso de segurança. Antes, entre abril e maio, diretores dos 2,1 mil colégios estaduais do Paraná já tinham passado pela capacitação.
“Estamos abrindo várias frentes de atuação. Entre elas, [está] esse treinamento, com o objetivo de colocarmos um profissional como ponto-focal em cada escola, para fazer um trabalho preventivo, identificando casos de bullying, por exemplo, mas também coordenando a atuação em caso de algum evento grave, como ataques”, disse o secretário de Educação, Roni Miranda. “Vamos formar comitês para fazer as simulações dos procedimentos ensinados. Nós já fazemos isso com as brigadas escolares [de incêndio]. Já trabalhamos com a ideia de replicar isso, com essa multiplicação. Então, temos a expertise”, acrescentou.
Concebido e ministrado pela PM, por meio do Batalhão de Patrulha Escolar Comunitária (BPEC), o curso se concentra em oito horas. Essencialmente, as atividades correspondem a uma série de palestras, em que se levam em conta aspectos preventivos – como identificar casos de bullying – e de segurança das instalações – que consiste em recursos estruturais que as escolas podem ter para evitar invasões, como muros e grades. Em outra frente, a capacitação foca em dar conceitos que ajudem os servidores a agir no caso de invasor – chamado tecnicamente de “agressor ativo” – deflagrar um ataque contra a escola.
“O objetivo do agressor ativo é matar o maior número de pessoas no menor tempo possível. Por isso, a análise da situação é determinante. O servidor tem que ser rápido em avaliar todas as condições e, com base nisso, tomar sua decisão”, explica o cabo Jardel Barszcz, um dos monitores do curso. “Toda nossa orientação se baseia em protocolos de contenção do FBI”, acrescentou.
A avaliação se centra em três possibilidades de ação, a serem adotadas de acordo com as condições: “fuja”, “esconda-se” e “lute”. Se o servidor identificar uma rota de fuga segura, em que não haja contato com o invasor, a orientação é de que ele conduza os alunos para fora do colégio ou até algum local seguro. Se não há certeza do local em que o agressor se encontra ou se já se ouvem tiros, por exemplo, o professor deve optar pelo “esconda-se”: deve manter os alunos dentro da sala de aula, fazendo uma barricada e mantendo-os em silêncio até que se tenha certeza de que não há mais ameaças.
“Se o servidor não consegue avaliar de onde o agressor ativo está vindo, é indicado que fique na sala. O ‘fuja’ só deve ser adotado quando houver condições claras, porque fuga sempre é complicado. Pode ter algum estudante cadeirante ou dentro do espectro autista… Tem sempre o risco de alguém ficar para trás ou de cair, ser pisoteado. E não se sabe também se tem mais de um agressor dando cobertura”, apontou o cabo Jardel Barszcz. Um exemplo disso é o ataque ocorrido em 2019, na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, São Paulo. Armado com uma machadinha, um dos jovens invasores ficou em um corredor, atacando os alunos que estavam em fuga.
Segundo o protocolo, deve-se recorrer ao “lute” apenas em último caso, quando se está no mesmo ambiente que o invasor, sem possibilidades de fugir ou de se esconder. Neste caso, a orientação é que se lance mão de qualquer objeto para se defender ou atacar o agressor. “Mas isso é a última alternativa, quando o ataque pessoal já é iminente. Aí, você precisa lutar para salvar sua vida. É diferente de bancar o herói. Não orientamos ninguém a tentar desarmar ou imobilizar o agressor, se tiver condições de fugir ou de se proteger”, ressaltou o policial. No dia do ataque, o governador do Paraná, Ratinho Junior (PSD), chegou a dizer que o atirador tinha sido imobilizado por um professor que passou pelo curso. Posteriormente, no entanto, descobriu-se que o funcionário de uma clínica vizinha conteve o atirador, fazendo se passar por policial.
O treinamento também contemplou um módulo prático, em que foram feitas simulações de ataques. Os participantes foram divididos em grupos e alocados em diferentes salas de aula. Em seguida, um policial se passou por invasor. Nessas condições, os servidores foram orientados sobre como fazer uma barricada eficaz, utilizando o mobiliário escolar: a orientação é obstruir a porta, enfileirando carteiras até a parede oposta. O curso também está disponível em uma plataforma digital do governo do Paraná – e conta com mais de 12 mil acessos. “Foram usados até tiros de festim nesse treinamento, para reproduzir ao máximo as condições de um ataque. O ideal é, também, estabelecer pares, para que um cuide do outro”, ensinou Barszcz.
Os alunos do Colégio Helena Kolody não tinham passado por treinamento, mas os estudantes de uma das turmas aplicaram os protocolos corretamente, ainda que intuitivamente. Um vídeo gravado por um dos adolescentes mostra a turma agachada dentro da sala de aula, trancada por uma barricada de carteiras. É possível ouvir o som de um disparo e, em seguida, o atirador bate à porta, gritando: “Eu sei que tem gente aí! Pode abrir a porta ou vai morrer todo mundo!” Segundo consta, embora nervosos, os estudantes permaneceram em silêncio até o invasor desistir de arrombar a porta.
O Sindicato dos Trabalhadores da Educação Pública do Paraná (APP-Sindicato) faz, no entanto, ressalvas ao curso e à replicação das técnicas abordadas no treinamento. A secretária educacional da entidade, Vanda Bandeira Santana, vai além: ela destaca que as sucessivas terceirizações e seleção de professores via Processo Seletivo Simplificado (PSS) – em que os servidores são contratados pelo período de um ano, prorrogável por mais um – dificultam o estabelecimento de vínculo entre os profissionais e a comunidade escolar. Hoje, o Paraná tem mais de 60 mil professores na rede estadual, dos quais 25 mil PSS. No caso dos funcionários, são 15 mil servidores do quadro próprio do estado e 15 mil temporários. Na avaliação de Santana, tudo isso cria condições que dificultam ações preventivas e, em alguns casos, até repressivas.
“O terceirizado ou o PSS não desenvolvem vínculo com a escola. Nesse caso de Cambé, por exemplo, o ex-aluno disse que queria pegar o histórico [escolar]. Se o funcionário que o atendeu tivesse vínculo, teria condições de saber da história de vida daquele ex-aluno, se ele tinha algum problema escolar”, apontou. “Não vai ser um curso que vai resolver. Isso não é viável. O que é viável é pensar um projeto político de escola, pensar o currículo e criar condições para que a escola acolha os estudantes. É fundamental que tenhamos mais pedagogas, que são profissionais capazes de identificar os estudantes que estão passando por alguma situação que pode desencadear algum ato violento. É prevenção”, acrescentou Bandeira.
Um dos coordenadores da equipe de transição na área da educação, da gestão Bolsonaro para o governo Lula, o professor Daniel Cara também critica a terceirização, avaliando que ela provoca o “esvaziamento da unidade escolar, das ciências da educação e dos educadores”. “E uma escola fragilizada é uma escola incapaz de fazer frente ao ódio”, complementa. O especialista avalia que cursos e treinamentos podem ser uma boa estratégia, mas faz ressalvas: toda a comunidade escolar deve ser envolvida no debate. Segundo ele, o viés não deve ser prioritariamente repressivo e precisa ocorrer sem que a polícia seja “protagonista” do processo.
“A polícia tem um papel importante, mas não é superior ao dos educadores. Por exemplo, a polícia tem pouco a dizer sobre o central: como melhorar o clima escolar. Pelo contrário, por suas práticas violentas, em geral, a presença da polícia tensiona a escola. Sobre as ações de intervenção na ocorrência de ataques, os Estados Unidos dão uma boa prova de que [esses métodos] são pouco operacionais. Salvo raras exceções, servem para alimentar o clima de medo”, apontou Cara, professor da Faculdade de Educação da USP e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Com base nessa discussão e a partir da consulta de entidades, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação publicou, no fim de março, o Guia sobre prevenção e resposta à violência às escolas. O material traz recomendações e orientações com o objetivo de tornar o ambiente escolar mais seguro, a partir de ações preventivas. Parte, portanto, de uma perspectiva mais ampla. O material está servindo de base a dois cursos, que são elaborados por um grupo de trabalho instituído pelo Ministério da Educação para evitar ataques em escolas, a partir de um viés preventivo. Segundo a socióloga Miriam Abramovay, que integra o grupo do MEC, os cursos terão duração de 40 e de 150 horas e serão ministrados de forma exclusivamente online. Paralelamente, equipes do Ministério devem viajar aos estados, incentivando a adoção da cartilha nas escolas.
“Temos que estar preocupados com a capacitação dos professores, mas não [ensinar a] fecharem a porta e colocarem carteiras. É discutir o que é a violência escolar, por que ela existe, entender o que motiva os ataques, para, então, se prevenir. A cartilha nos dá alguns caminhos”, disse Abramovay, que também é coordenadora de programa da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. “Nós ainda não temos uma data, mas será o mais rápido possível. Temos urgência. E focaremos na prevenção, não na repressão”, ressaltou.
Ainda no dia do ataque ao Colégio Helena Kolody, o governador Ratinho Junior (PSD) reiterou medidas anunciadas em abril, quase todas focadas justamente na repressão. Entre as iniciativas, está a liberação de 20 milhões de reais para a compra de “equipamentos que reforcem a estrutura da segurança” das escolas. O governo também informou que vai colocar 5,6 mil policiais militares para atuar em trezentos colégios paranaenses considerados mais vulneráveis e com histórico de violência. As viaturas da PM que não estiverem em atendimento ficarão em frente às escolas, para reforçar a segurança.
O material divulgado pelo governo também informou que o estado vai dobrar o número de Colégios Cívico-Militares (CCM) no Paraná, com um investimento de 30 milhões de reais por ano. Hoje, o Paraná tem 194 escolas estaduais que fazem parte deste programa, além de doze unidades do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), do MEC. Além disso, Ratinho Junior mencionou o aporte de mais 8,4 milhões de reais para a implantação de sistemas de monitoramento em duzentas escolas. Outra iniciativa propalada pelo governo é o “botão do pânico”, que pode ser acionado pelos professores pelo Registro de Classe Online – um aplicativo de celular em que os professores registram a chamada e lançam as notas. Segundo Ratinho, o “botão do pânico” foi utilizado durante o ataque ao Helena Kolody e uma viatura da PM chegou ao colégio em três minutos.
A ênfase em medidas repressivas é discutida ao longo do Guia sobre prevenção e resposta à violência às escolas, publicado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação. O conteúdo lista como iniciativas que “não produzem respostas efetivas” algumas políticas, como policiamento dentro das escolas, monitoramento por câmeras de segurança e botão do pânico. “O central não é o instrumento de segurança, mas qual é a função dele dentro de um plano de segurança discutido pela comunidade escolar”, destacou Daniel Cara. “Além disso, o que pior pode ocorrer é você contratar ou adquirir um instrumento de segurança e sentir, sem muito critério, uma falsa sensação de segurança e ter inúmeros pontos-cegos em sua escola. Isso só torna tudo mais perigoso”, apontou.
“Todas as medidas repressivas que temos listadas são caríssimas, que faz com que empresas ganhem muito dinheiro, mas que não vão resolver o problema, como não resolveram nos Estados Unidos. Os Estados Unidos são o grande exemplo de como a repressão não resolveu”, avaliou Miriam Abramovay. “Não é com polícia dentro das escolas que vamos chegar a uma solução, mas pensando em políticas de longo prazo, que se foquem no porquê de esses ataques acontecerem”, disse.
Em dezembro do ano passado, o governo de transição publicou o relatório O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental, que tem servido como referência em ações preventivas desenvolvidas pelo MEC. O conteúdo correlaciona os incidentes à ascensão do ultraconservadorismo, como elemento incitador do ódio entre estudantes e responsável por enfraquecer e esvaziar o papel social da escola. Nesse contexto, o ódio assume um fator identitário, aglutinando jovens em torno de discursos raivosos contra grupos específicos.
“O ultraconservadorismo permite e até mesmo autoriza o discurso de ódio, especialmente o misógino, supremacista branco, neonazista, fascista, LGBTfóbico e capacitista. Em outras palavras, o ódio vai se tornando uma identidade. E avançou também para ser uma estratégia de pertencimento de um grupo: um grupo pautado na exaltação e prática da violência”, detalhou Daniel Cara.
“Vivemos quatro anos em que não podiam falar nas escolas, por exemplo, sobre educação sexual, sobre questões raciais e de gênero. Professores foram perseguidos, gravados e expostos. Houve um contexto de militarização e de incentivo de livre acesso às armas. Tudo isso fez renascer ideias extremistas, com um discurso que encontrou adesão em determinado tipo de juventude, a ‘juventude do quarto’, que é mais fechada e ligada a certos espaços da internet. Esses jovens foram cooptados, com o discurso de que seriam heróis, que não seriam esquecidos após a morte. Isso abriu a porta para os ataques. É com esses elementos que teremos que lidar”, disse Miriam Abramovay.
Apesar de as medidas anunciadas pelo governo terem caráter majoritariamente repressivo, o secretário de Educação do Paraná, Roni Miranda, também acredita que a escola precise ampliar o debate com toda a comunidade. Advindo da sala de aula – ele é professor de carreira do estado há dezoito anos –, ele pondera sobre a necessidade de aumentar a participação dos pais no processo de educação dos filhos e na supervisão do conteúdo que eles acessam pela internet. “Tem que saber o que o filho está fazendo, o que está conversando. Estamos falando de algo que supera a questão da privacidade dos adolescentes”, opinou.
Ao longo das duas últimas semanas, Miranda se dedicou quase exclusivamente aos efeitos do ataque ocorrido ao Colégio Helena Kolody. Enquanto tomava decisões, era impossível não se deixar afetar pelas consequências da tragédia. “Como professor e como diretor de escola, sempre presenciei casos de violência, mas nunca nessa escala. Na semana do ataque, eu fiquei extremamente abalado, porque sou professor. Quando falo do assunto, me emociono bastante”, disse, com voz embargada. “Eu acredito muito no trabalho preventivo, de conscientização e em uma sociedade que pregue mais tolerância, amor e respeito. A escola é e deve ser sempre um local seguro e de transformação”, concluiu.
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