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    Maria, interpretada por Marcélia Cartaxo – Foto: Divulgação

colunistas

Desamparo nas telas

Cinema de primeira qualidade, A Mãe impede que esqueçamos casos de tortura e assassinatos praticados pela polícia

Eduardo Escorel | 16 nov 2022_09h03
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A estreia de um novo filme dirigido por Cristiano Burlan é sempre um evento marcante. Há uma semana (10/11), em cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro e outras quinze cidades brasileiras, foi a vez de A Mãe, inspirado em Antígona

O tema central dessa incursão premiada nos festivais de Gramado e Vitória é o desamparo patente na via-crúcis de Maria (Marcélia Cartaxo) – moradora do Jardim Romano, bairro no extremo Leste de São Paulo que ela percorre à procura de Valdo (Dustin Farias), seu filho desaparecido. Entre outras contribuições decisivas, agregam-se ao roteiro de Burlan e Ana Carolina Marino a da protagonista, além do elenco como um todo, e a do diretor de fotografia André S. Brandão. Essencial, porém, para o vigor de A Mãe é ser arraigado na experiência de vida do próprio diretor – criado na periferia da metrópole, seu irmão foi assassinado pela polícia com sete tiros pelas costas, no Capão Redondo; anos depois, sua mãe foi morta pelo namorado – perdas que abordou nos documentários Mataram meu Irmão (2013) e Elegia de um Crime (2018), comentados aqui em colunas anteriores. Ambos integram a Trilogia do Luto com outro documentário – Construção (2006), dedicado ao pedreiro gaúcho, pai de Burlan, que, nas palavras do filho, “faleceu de forma pouco esclarecida”.

Chama especial atenção A Mãe ter levado cinco anos para ser lançado no circuito comercial, depois de ser selecionado no Programa de Fomento ao Cinema Paulista em 2017. Esse tempo decorrido confirma a disfuncionalidade dos mecanismos fragmentados de financiamento da nossa produção cinematográfica, mesmo levando em conta o período da pandemia em que as salas de cinema ficaram fechadas. Conforme é notório, há apoios e incentivos que, por serem parciais e insuficientes para viabilizar a produção, em vez de um prêmio se tornam um castigo.

Considerando a reconhecida qualidade da produção anterior de Burlan, o prazo necessário para realizar A Mãe revela ter sido ainda mais aberrante sabendo que o diretor teve a ideia do filme em 2011 e o roteiro foi escrito em 2014, conforme ele disse ao crítico Bruno Carmelo em entrevista publicada no site Papo de Cinema (fevereiro de 2020). 

Tendo sido filmado em janeiro de 2020, A Mãe evitou por pouco as dificuldades decorrentes do decreto que reconheceu, em 20 de março daquele ano, o estado de calamidade pública resultante da pandemia, após a emergência sanitária no país ter sido decretada em 4 de fevereiro. Naquele momento, ainda foi possível fazer um filme de ficção, mesmo incluindo algumas sequências não ficcionais, ao contrário de a Trilogia do Luto formada por documentários.

Embora a narrativa seja realista, A Mãe contém cenas ambíguas, difíceis de situar como fantasia ou reminiscência, além de rupturas e inversões temporais instigantes. Desse modo, apesar de estar desaparecido, vemos Valdo cantar o rap Soldado Romano, de Dustin Farias, Janderson Maranata e Matheus de Sá; e o filme pode terminar com uma sequência esclarecedora, elidida por uma elipse entre o 23º e o 25º minuto, momento em que, na realidade, teria ocorrido de acordo com a ordem cronológica.

As liberdades de linguagem, presentes desde a travessia do Viaduto Santa Ifigênia, logo no início, vão se tornando mais frequentes à medida que o filme se aproxima do fim, aguçando a percepção do espectador que é levado a refletir sobre o que está vendo. As sequências não realistas contribuem para a inquietação que se instaura à medida que vai sendo confirmado quem é responsável pelo desaparecimento de Valdo.

Dustin Farias (no centro) interpreta o filho desaparecido Valdo – Foto: Divulgação

Conjugam-se desse modo, em A Mãe, invenção formal e denúncia da violência da polícia que amedronta moradores da periferia, a ponto de Débora (Débora Maria da Silva, líder do movimento ativista “Mães de Maio”) dizer a Maria: “A ditadura nunca acabou. A ditadura só vai acabar com o fim da Polícia Militar por que ela é muito presente dentro das favelas e da periferia.” Palavras que Burlan espelha na entrevista a Carmelo citada acima:

A ditadura, nas periferias das cidades brasileiras, continua existindo. A polícia militar da cidade de São Paulo, da qual a minha família foi vítima… é uma das mais letais do mundo. Agora [referindo-se a 2020], estes números voltaram a aparecer, mas desde os anos 1990, no Capão Redondo, eu vi diversos amigos assassinados, cujos corpos desapareceram, e continuam desaparecendo. Parece que isso foi naturalizado.

Além de ser cinema de primeira qualidade, A Mãe impede que uma das maiores chagas deste país seja esquecida – a prática perene de tortura e assassinatos pela polícia em delegacias, nas ruas e alhures.

*

Destaque (XVII):

“…não devemos projetar um Ministério da Cultura em 2023 que venha somente a atender às justas e necessárias demandas de artistas, produtores, técnicos e demais profissionais da área. Essa é uma função fundamental do ministério, mas seu papel pode, e deve, ser bem maior. A cultura – se percebida por essa força transversal – pode ser um dos nossos principais instrumentos para geração de riqueza, para promoção da cidadania plena e até mesmo para recuperação de um sentido de coesão social no país. Essa talvez até seja uma das grandes contribuições que o Brasil pode dar ao mundo hoje: a cultura como luz e motor de um novo modelo de desenvolvimento econômico e humano para o século XXI.” Miguel Jost, “Um Ministério da Cultura para o século XXI”, O Globo, 12.11.2022, p.3.

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