Disputa política em Belford Roxo atinge time de futebol e escola de samba

A partida de futebol mais importante da história da Sociedade Esportiva Belford Roxo aconteceu em um domingo nublado de dezembro de 2023. O clube da Baixada Fluminense disputava em casa a final da Série B2 do Campeonato Estadual masculino, a quarta divisão do futebol profissional do Rio de Janeiro. Naquela tarde, os xingamentos da torcida local tinham dois alvos: o São Cristóvão, adversário da decisão, e o próprio prefeito de Belford Roxo, Wagner dos Santos Carneiro, o Waguinho (Republicanos), que não estava presente.

A arquibancada do estádio Nélio Gomes juntou moradores do bairro, vereadores de oposição e seus assessores. Só depois das ofensas ao prefeito é que os locais provocaram a torcida visitante, formada por duas dezenas de adeptos reunidos ao redor de um surdo de marcação desafinado. No oitavo minuto do segundo tempo, Alemão, camisa 8 do São Cristóvão, recebeu um bom passe na entrada da área, chutou a bola com a perna esquerda e acertou no espaço entre a trave e o goleiro. Foi o gol do título.

A diretoria do Belford Roxo não sentiu tanto pelo vice-campeonato, pois a ida à final já garantira ao clube o acesso à Série B1, a terceira divisão. A dor maior viria dias depois, quando dirigentes chegaram ao estádio e viram duas placas com anúncios da desapropriação daquele terreno. Além de receber os jogos do Belford Roxo, o espaço é a sede de uma escolinha de futebol que tem cerca de seiscentas crianças matriculadas. A prefeitura informou que construiria no lugar do complexo duas escolas, uma bilíngue e outra para crianças com deficiência.

Pelas contas de Rodrigo Gomes (MDB), vereador e presidente do time, esse era o terceiro ato de perseguição do prefeito Waguinho contra a sua família, tradicional na política da cidade. Antes, a Inocentes de Belford Roxo, escola de samba cujo dono é o pai de Rodrigo, Reginaldo Ferreira Gomes, fora desapropriada de um ateliê e perdera o direito de ensaiar para o Carnaval na avenida onde desfilou durante anos.

Reginaldo Ferreira Gomes, Rodrigo Gomes e o ex-prefeito de Belford Roxo Adenildo Braulino dos Santos são réus na Justiça do Rio de Janeiro por suspeita de improbidade administrativa. Em 2018, um inquérito do Ministério Público do Rio de Janeiro apontou que, em 2015, durante a gestão de Braulino dos Santos, a prefeitura repassou 500 mil reais à Inocentes de Belford Roxo sem autorização legislativa. Os Gomes eram secretários municipais e, segundo a Promotoria, “teriam se valido de sua influência política para obterem o repasse”, sem “a adequada prestação de contas das verbas”. Pai e filho afirmam que a transação foi feita com autorização legislativa e que não houve ilegalidade.

A piauí procurou a Prefeitura de Belford Roxo por telefone e enviou perguntas por e-mail, mas não obteve resposta. Em nota divulgada em dezembro, a prefeitura afirmou que a escola para educação especial a ser construída no terreno do estádio cobrirá a alta demanda do município, que atualmente tem apenas um colégio desse tipo. A municipalidade disse ainda que não compactua com nenhum tipo de perseguição política.

As eleições de 2022 não poderiam ter sido melhores para Waguinho, que foi reeleito prefeito em 2020. Sua esposa, Daniela Carneiro (União Brasil), conhecida como Daniela do Waguinho, foi a deputada federal mais votada do estado, com 213.706 votos, o equivalente a quase metade dos votos válidos de Belford Roxo (o município tem 483.087 habitantes, segundo o Censo de 2022 do IBGE). O governante flertou com Jair Bolsonaro (PL), mas decidiu apoiar Lula (PT) na disputa presidencial, e o comício do candidato petista na cidade da Baixada Fluminense, no segundo turno, foi um sucesso. A costura do importante apoio a Lula envolveu a promessa cumprida de ter Daniela no alto escalão do novo governo federal, e assim ela foi nomeada ministra do Turismo.

Em 3 janeiro de 2023, logo que assumiu o ministério, a Folha de S.Paulo revelou que Daniela teve a seu lado, na campanha de 2018, um miliciano condenado a 26 anos de prisão por homicídio e por chefiar associação criminosa, Juracy Alves Prudêncio, acusado de comandar o Bonde do Jura. E também teve o apoio da mulher de Jura, a vereadora Giane Prudêncio, nas eleições de 2018 e 2022. Em junho de 2017, Jura foi nomeado para trabalhar em uma secretaria da Prefeitura de Belford Roxo e, com isso, teve sua saída da prisão autorizada durante o horário de expediente. Na ocasião, a assessoria de Daniela soltou uma nota dizendo que ela não tinha relação com nomeações da prefeitura e que “apoio político não significa que ela compactua com qualquer apoiador que porventura tenha cometido algum ato ilícito”. 

O noticiário político dava como certa a saída de Daniela do governo, mas isso só aconteceu sete meses depois, em julho, e por outro motivo: a pressão do Centrão por sua demissão e pela nomeação de outro quadro do União Brasil, Celso Sabino.

Nessa mesma época, a força de Waguinho começou a se esvair dentro de seus domínios. Aliados de primeira hora se distanciaram depois que o prefeito anunciou o apoio ao sobrinho Matheus Carneiro como pré-candidato a prefeito de Belford Roxo em 2024. A oposição diz que Waguinho descumpriu um acordo firmado há anos com o deputado estadual Márcio Canella (União Brasil). Canella, que fora vice-prefeito na chapa de Waguinho nas eleições de 2016, era o nome para sucedê-lo. 

“Ele não cumpre acordos. Sempre fui o candidato à sucessão”, afirma Canella, em conversa na sede fluminense do União Brasil, partido do qual é vice-presidente estadual. O deputado, que se sente traído, não se abstém de criticar Waguinho em todas as oportunidades que tem e avalia ser melhor do que o agora adversário na articulação política. “Respeito a decisão [dele], mas vamos para as urnas”, diz. Aquele segundo turno de 2022 consolidou o racha: Canella apoiou Bolsonaro enquanto Waguinho estava com Lula. 

Em Belford Roxo, depois do rompimento, metade da classe política seguiu Canella, entre eles a família dona do time de futebol e da escola de samba da cidade. Em fevereiro de 2023, Ferreira Gomes foi exonerado do cargo de secretário de Habitação e Urbanismo porque assumira, um dia antes, a presidência da executiva municipal do MDB a contragosto do prefeito. O filho Rodrigo, então secretário municipal de Esporte e Lazer, pediu exoneração. 

O jogo de uniformes do Belford Roxo então mudou. O azul e o vermelho permaneceram, mas o logotipo do governo municipal saiu. “No mundo do futebol, muitos enxergam o Belford Roxo como mais um time de prefeitura, mas o prefeito nunca deu o apoio devido. O Belford Roxo é um clube da cidade”, afirma Rodrigo Gomes.

Dentro da Câmara Municipal, treze vereadores se aliaram à oposição – entre eles Rodrigo Gomes – e doze permanecem na situação. Os do contra se intitulam Grupo dos Treze. Nas redes sociais, posam para fotos de braços cruzados e enfileirados, como em um pôster de super-heróis, divulgam montagens contrárias a Waguinho e abusam de hashtags como #G13 e #BlocoParlamentarIndependente. A polarização escalou em dezembro, quando uma eleição para a Mesa Diretora terminou em troca de sopapos entre membros da prefeitura, vereadores de oposição e seguranças da Câmara, que tentavam apartar o tumulto. O próprio prefeito entrou no plenário, aos gritos.

A reportagem entrou em contato com vereadores aliados ao prefeito, mas não obteve resposta.

O enredo da Inocentes de Belford Roxo para o Carnaval de 2024 foi definido ainda no primeiro semestre de 2023. A ideia era contar a história do município litorâneo de Armação dos Búzios, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro, famoso por praias, argentinos e Brigitte Bardot. O presidente da agremiação, Ferreira Gomes, diz que o prefeito de Búzios, Alexandre Martins (Republicanos), ficou empolgado e prometeu ajudar, mas depois parou de responder mensagens e atender ligações. “O Waguinho é presidente estadual do Republicanos, e o prefeito de Búzios é do mesmo partido dele. Parece que houve uma pressão, criou-se um mal-estar, e ele não quis mais nos atender. Como vou falar de uma cidade em que os gestores não querem nem ouvir o que temos a dizer?”, questiona Gomes.

Procurada pela piauí, a Prefeitura de Búzios disse em nota que não recebeu nenhum contato oficial por parte da escola e que o prefeito tomou conhecimento do enredo por meio das redes sociais. Mas os próprios perfis oficiais da municipalidade anunciaram, em julho de 2023, o enredo da Inocentes de Belford Roxo para o Carnaval de 2024. “O nosso município está honrado com tal homenagem e agradece o carinho da agremiação da cidade de Belford Roxo. Búzios vai dar samba”, diz uma publicação à época.

A Inocentes desistiu de Búzios em agosto, e repensou o Carnaval. No próximo dia 9 de fevereiro, a agremiação desfila na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, pela segunda divisão, a série Ouro, com o plano B de enredo – vai falar sobre os comerciantes informais da capital fluminense. 

O julgamento de um desfile de Carnaval é feito a partir de nove quesitos. Quatro são aspectos musicais — avaliam se o canto está uníssono, se os componentes desfilam com fluidez em relação ao samba, se a bateria está afinada — e outros cinco são aspectos cenográficos e artísticos — o capricho das fantasias, carros alegóricos e demais adereços. Na Inocentes de Belford Roxo, à exceção do canto, todos os quesitos foram afetados pela disputa política. 

No dia 28 de julho, a secretaria municipal da Fazenda notificou a escola de samba para que ela desocupasse um ateliê utilizado para o armazenamento e confecção de fantasias. A agremiação tem um barracão na zona portuária do Rio de Janeiro, mas o espaço extra ajudava. 

A prefeitura afirmou, em nota publicada à época, que no entorno do ateliê foram construídos condomínios residenciais e que estuda a construção no local de um complexo educacional e de uma área de lazer.

Para Ferreira Gomes, a ordem de desapropriação tem explicação. Dois dias antes, ele publicara no Instagram a foto de uma reunião com Márcio Canella. Na legenda, tratava Canella como “nosso” deputado. 

O presidente da Inocentes, assim como o filho, diz contar nos dedos os episódios em que entende ter sido boicotado. Segundo ele, foram três vezes. Depois da desistência de Búzios e da desocupação do ateliê, a escola enviou um pedido à prefeitura para reservar as noites de terça-feira na avenida principal da cidade para realizar os ensaios de rua. Mas o pedido ficou sem resposta. O município disse que nenhum pedido de liberação daquela via para ensaios foi protocolado pela Secretaria de Ordem Pública. Houve cobrança da agremiação e na segunda tentativa veio a resposta: a escola recebeu autorização para ensaiar, mas em outro ponto da cidade, no Bairro das Graças, local onde a iluminação é fraca e a segurança é insuficiente, na avaliação da diretoria.

A solução encontrada foi sair de Belford Roxo. Do outro lado da rodovia Presidente Dutra está o município de Mesquita, onde a agremiação, autorizada pela prefeitura, encontrou uma avenida para ensaios. “Não perdemos componentes com essa mudança. O povo está chateado, mas aguerrido”, diz Ferreira Gomes.

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