Dívida: os primeiros 5 mil anos: o sofrimento humano em torno do endividamento
A obra pode ser lida não apenas como tratado iconoclasta, mas também como um bom livro de história cultural
Oito em cada dez brasileiros estão endividados. A maioria absoluta, por causa de pequenas quantias. Mesmo assim, em 2022, uma pesquisa do Serasa mostrou que 83% dos endividados tinham dificuldade para dormir, 62% sentiam o impacto do endividamento no relacionamento conjugal e 31% tinham parado de frequentar reuniões familiares. A dívida externa de países pobres continua colocando limites aos sonhos de indivíduos que tiveram a falta de sorte de nascer em países sob políticas de austeridade. Isso tudo porque, afinal, a ideia de que “é preciso pagar as próprias dívidas” é onipresente — o que é estranho, já que sabemos que nem todos precisam pagar suas dívidas. Na verdade, só alguns pagam.
Por isso, o antropólogo americano David Graeber – falecido em 2020, aos 59 anos – defendia que nada mais justo que passar uma borracha nisso tudo, tanto na dívida internacional quanto na do consumidor, e começar do zero. “Não só porque aliviaria muito o sofrimento humano, mas também porque seria um modo de nos lembrarmos de que o dinheiro não é algo inefável, que pagar as próprias dívidas não é a essência da moral, que todas essas coisas são acordos humanos”, escreveu. Em Dívida: os primeiros 5 mil anos, o antropólogo mostra que esse jubileu não seria inédito na história da humanidade. Na verdade, não seria nem raro.
Graeber participou do movimento Occupy Wall Street e foi um dos criadores do slogan “Somos os 99%”. Antes disso, organizou protestos contra o FMI em 2002. Dívida foi publicado em 2011 nos Estados Unidos, e traduzido no Brasil pela editora Três Estrelas em 2016, numa edição que se esgotou rapidamente. A mesma tradução, de Rogério Bettoni, foi republicada pela Zahar no fim de 2023. A nova edição inclui um prefácio inédito do economista francês Thomas Piketty, escrito em 2021, pouco tempo depois da morte de Graeber. “O prematuro desaparecimento de David em setembro de 2020 deixou um enorme vazio. ‘Antropólogo anarquista’, David era sobretudo um daqueles pesquisadores em ciências sociais que transcendem as disciplinas e os públicos”, escreve Piketty. Graeber também é autor do agora já famoso O despertar de tudo (Companhia das Letras), coescrito com David Wengrow e lançado depois de sua morte.
Em Dívida, Graeber segue uma tradição antropológica de questionar os fundamentos básicos da economia clássica – assim como fez Marcel Mauss em Ensaio sobre a dádiva (1925), que argumentou que sociedades totalmente estabelecidas na base do escambo jamais existiram. No entanto, Dívida pode ser lido não apenas como tratado iconoclasta, mas também como um bom livro de história cultural. Embora o título seja tão específico, o que se encontra ali é uma longa meditação sobre a humanidade. Graeber disseca a relação de seres humanos com a dívida desde vestígios deixados em 3500 a.C. pelos sumérios, até os dias atuais. O que ele nos mostra é que talvez nossas certezas sobre questões elementares de nossa humanidade – a busca pelo lucro, liberdade, interesse – estejam equivocadas.
A escrita de Graeber é direta, sedutora e bem-humorada. No prefácio, Piketty fala da “felicidade intelectual” que é ler Dívida pela primeira vez. Felicidade é um bom termo. O antropólogo faz uma pesquisa robusta se tornar absolutamente envolvente, apresentando formas mais criativas de olhar para o mundo. O grande trunfo de Graeber é fazer o leitor se dar conta que não há motivo para achar que vivemos do jeito que vivemos porque sempre foi assim – e nem para achar que sempre será assim. Ele nos lembra que “se a democracia tem algum sentido, esse sentido é a capacidade de todos concordarem em reorganizar as coisas de maneira diferente”.
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