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    Edu Lyra, fundador e CEO da Gerando Falcões, ONG cuja missão é transformar a pobreza das favelas em peça de museu Foto:Flávio Sampaio/Divulgação

depoimento

Do tiroteio no barraco a gestor de 5 milhões de dólares

Fundador da rede de ONGs Gerando Falcões, Edu Lyra relata o que fará com doação milionária feita por filantropa americana

Edu Lyra | 12 maio 2022_09h50
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No dia 21 de janeiro deste ano, Edu Lyra recebeu a notícia de que a filantropa americana MacKenzie Scott faria uma doação de 5 milhões de dólares [25 milhões de reais] para a Gerando Falcões, ONG que ele fundou em 2011 com a missão de “transformar a pobreza das favelas em peça de museu”. Após passar por quase cinco meses de sabatina realizada por uma consultoria, Lyra foi informado de que a ONG havia sido aprovada para receber os recursos de Scott – ex-mulher do fundador da Amazon Jeff Bezos e dona de uma fortuna avaliada em 32,1 bilhões de dólares.

“Eu ouvi direito: 5 milhões de dólares?”, perguntou Lyra. “Pedi para repetirem três vezes para ter certeza”, conta o empreendedor de 34 anos nascido numa favela de Guarulhos, na Grande São Paulo. O anúncio foi feito publicamente no dia 23 de março, e o dinheiro foi depositado na última quarta-feira (04/05), sem obrigações ou contrapartidas vinculadas à doação. “Disseram que, se fui aprovado, é porque confiam que vou fazer a coisa certa.”

No relato a seguir, Lyra conta sobre as visitas que fazia ao pai no presídio, aos 7 anos de idade; a morte do melhor amigo assassinado por traficantes na adolescência; a amizade com o empresário brasileiro Jorge Paulo Lemann, dono de uma das maiores fortunas do país; e os planos do que vai fazer com o dinheiro da doação milionária.

(Em depoimento a Lia Hama)

 

Sou fundador e CEO da Gerando Falcões, ONG cuja missão é transformar a pobreza das favelas em peça de museu. Em setembro do ano passado, recebi um e-mail pedindo uma reunião com uma consultoria que atendia uma potencial doadora, cujo nome eles não revelariam naquele momento. Fui informado de que seria um processo confidencial e que, se eu topasse, passaria por uma sabatina. Caso eu fosse aprovado, saberia o nome da doadora. Se reprovado, jamais saberia. Eles me perguntaram se eu estaria disposto a passar por esse processo. Como não tinha nada a perder, respondi que sim.

Foi uma longa sabatina realizada em home office em plena pandemia. Na casa onde moro com minha esposa, Mayara, e minhas filhas, Lara e Luiza, no extremo Leste da cidade de São Paulo, participei de reuniões online, em português e inglês. Eu e minha equipe tivemos que apresentar os documentos da Gerando Falcões – incluindo balanço fiscal, demonstrativos contábeis e nosso plano de ação para os próximos dez anos. Eles nos pediram para explicar quais tecnologias usamos, como é nosso modelo de gestão, quem faz parte do nosso time e como cuidamos das pessoas impactadas pela ONG. Até então eu não sabia quem era a potencial doadora e qual seria o valor a receber se aprovado, mas estava determinado a ganhar. Engajei meu time nessa tarefa, principalmente nosso escritório internacional.

Um dia recebi um e-mail para participar de um call no qual, enfim, eu receberia a resposta. Foi quando fui informado de que havíamos sido aprovados, o valor seria de 5 milhões de dólares, e a doadora era uma filantropa americana chamada MacKenzie Scott, uma das mulheres mais ricas do mundo. Na hora, eu não acreditei. Pedi para repetirem três vezes o valor para ter certeza de que não estava sonhando.

 

Nasci numa favela em Guarulhos, na Grande São Paulo. Depois minha família se mudou para Poá (SP), sede da Gerando Falcões, ONG que fundei em 2011 com três amigos: Mayara Lyra (que se tornou minha esposa), Amanda Boliarini e Lemaestro. Hoje a Gerando Falcões é uma rede de ONGs, com impacto em quase 4 mil favelas de 25 estados brasileiros. O empresário Jorge Paulo Lemann é nosso maior doador de longo prazo, faz sete anos que ele nos apoia. Ele se tornou um amigo, um investidor e um treinador. É o cara que me ensinou que, se eu tivesse um sonho grande, atrairia gente grande para me apoiar. É uma relação de troca: eu o levei para visitar a favela e aprender sobre a realidade da periferia.

Cresci visitando meu pai, Marcio, no presídio. Ele foi preso por roubo a banco e cumpriu uma pena de três anos. Eu e minha mãe, Dona Gorete, dormíamos num barraco em Poá, com tiro correndo para tudo quanto é lado. Eu tinha medo de morrer, e minha mãe me colocava entre os braços dela e falava: “A bala pode me pegar, mas não vai pegar você.” Eu queria que o meu pai estivesse lá me protegendo, mas ele estava preso. Passei boa parte da infância vendo minha mãe chorar de saudades dele.

Aos 7 anos de idade, ver meu pai atrás das grades foi uma experiência dramática. Eu acompanhava minha mãe nas visitas e a via sendo revistada nua para entrar no presídio. Era humilhante e constrangedor. Mas ela é evangélica e nunca abandonou meu pai. Dizia que iria salvá-lo e faria de mim uma pessoa grande na vida. Eu não tinha livros em casa, então fui alfabetizado lendo a Bíblia. Quando meu pai saiu da cadeia, ninguém queria dar emprego a ele por ser ex-presidiário. Então ele fazia bicos. Eu o ajudava a descarregar caminhão e vender alface na feira.

O assassinato do meu melhor amigo, Tiago, aos 16 anos, foi outro episódio que deixou marcas em mim. Tiago era dois anos mais velho que eu, e fomos criados como se fôssemos primos. Brincávamos juntos, ele me ensinava muita coisa. Na adolescência, enveredou pelo caminho das drogas. Ele era usuário e, um dia, encontrou um revólver em cima do guarda-roupa do pai, pegou a arma e foi trocá-la por drogas. Os traficantes o mataram com o mesmo revólver. Ver meu melhor amigo no caixão, cheio de tiros, mexeu muito comigo. Quando um dos seus é alvejado, sua percepção da violência muda. Entendi que aquilo poderia acontecer com qualquer jovem da periferia como eu.

O assassinato do Tiago me fez querer mudar o curso da minha vida. Minha obsessão se tornou vencer a pobreza e ser motivo de orgulho para a minha mãe, que foi a minha salvação. Dona Gorete é a minha preta, a minha rainha. Ela deixava de comer para que eu pudesse me alimentar. Me criou trabalhando como diarista, limpando casas no Centro de São Paulo. Quando voltava para casa, ela me dizia: “Filho, não importa de onde você vem, o que importa é para onde você vai.”

 

A pobreza é uma bomba-relógio que explode. Eu trabalho para desarmar essas bombas-relógio e fazer com que as pessoas possam ter um futuro diferente de tantos jovens que são presos, como meu pai, ou assassinados, como o Tiago. No Brasil, uns partem muito à frente, e outros, muito atrás. Quem parte atrás tem menos oportunidade, menos emprego, menos renda e vira alvo fácil da violência. Com o dinheiro da doação da MacKenzie Scott, quero criar um grande case de superação da pobreza extrema e entregar uma tecnologia viável, que possa ser escalada para a transformação sistêmica das favelas em todo o país.

O primeiro passo será colocar 5 milhões de reais na Favela dos Sonhos, em Ferraz de Vasconcelos (SP), onde estamos implementando a chamada Favela 3D (Digna, Digital e Desenvolvida), com projetos de educação, cidadania e desenvolvimento da economia local. Contratei uma agência israelense para fazer a avaliação de impacto do projeto. Queremos provar que a Favela 3D pode ser uma solução para a superação da pobreza. Não podemos permitir que o Elon Musk colonize Marte antes de vencermos as desigualdades aqui embaixo. A sociedade tem que dar um basta à pobreza extrema. Toleramos por tempo demais o intolerável.

Olhando para trás, eu diria que o lugar de onde eu venho criou princípios, valores e força em mim. Muitas pessoas têm tudo e não fazem nada. Eu não tive nada, mas decidi fazer tudo. O meu tudo é usar a minha vida, a minha energia, os meus princípios e a minha experiência para dar a volta por cima. Sei que a pobreza é profunda, mas ela pode ser superada. Pau que nasce torto não está sentenciado a morrer torto.

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