A nova sede da Funai em Atalaia do Norte (AM) - Foto: Arquivo pessoal
Dois colombianos visitam a Funai
Em Atalaia do Norte, visitantes perguntam por servidor e questionam motivo da morte de Dom Phillips; com medo por sua segurança, funcionários registram boletim de ocorrência
Depois do almoço e antes da chuva diária, dois jovens entraram na sede da Funai em Atalaia do Norte (AM) falando portunhol e procurando por Iltercley Chagas Rodrigues. Era sexta-feira, 1º de julho de 2022, e o funcionário que buscavam não estava no prédio. Ilter, como costuma ser chamado, é o chefe da Divisão Técnica da Fundação Nacional do Índio na região do Vale do Javari, mesma área onde o indigenista e funcionário afastado da Funai Bruno Araújo fora assassinado três semanas antes. Na recepção, a dupla de visitantes conversou com a estagiária. Ela disse que Ilter não estava e perguntou como poderia ajudá-los. Os dois visitantes não deram seus nomes, muito menos mostraram documentos. Disseram apenas ser colombianos – um da vizinha Letícia, outro da capital, Bogotá – e educadores. Tampouco explicaram para qual instituição trabalhavam. Conversaram por 10 minutos, tempo suficiente para a estagiária sentir cheiro de álcool no hálito de um dos interlocutores. Um deles pediu para ir ao banheiro nos fundos da casa, e, na saída do lavatório, ambos subiram as escadas até o segundo andar, onde trabalham os técnicos da Funai. Uma funcionária pediu que eles aguardassem na varanda. Eram 15h02.
Caminhando pelo estreito corredor de paredes verdes, o autointitulado educador que andava à frente usava óculos tipo Ray Ban e vestia camiseta azul-clara com o desenho de uma motocicleta sobre a qual se lia “Custom”. Calçava tênis cinza sem meias e bermuda da mesma cor. No braço direito, uma extensa e elaborada tatuagem descia do bíceps até o punho. Ele sorria.
Logo atrás, com boné Nike de aba reta, o segundo educador parecia mais desleixado ou, talvez, adaptado aos 32°C e 80% de umidade relativa do ar. De camiseta regata cor de vinho, bermuda azul-escuro e chinelos de dedo, seguia o companheiro com um meio-sorriso nos lábios. Ambos pareciam confiantes e relaxados. Ambos tinham barba, rala.
No andar de cima do prédio, a dupla foi recebida por outro funcionário da Funai. A ele os colombianos revelaram seu desejo de obter autorização para entrar numa área de acesso proibido, por ser terra indígena e morada de uma dezena de etnias não contactadas. Pediram mapas. Indagados pelo funcionário sobre a localização exata de onde pretendiam ir, não souberam dar nenhum detalhe, nem o nome das comunidades que tinham intenção de visitar. No meio da conversa, perguntaram ao funcionário sobre “o jornalista inglês” e o motivo pelo qual ele fora assassinado. Referiam-se a Dom Phillips, morto a tiros em uma emboscada junto com Bruno Pereira na mesma região em que os colombianos queriam adentrar. O funcionário respondeu que só sabia o que tinha saído na imprensa. Os dois partiram.
Mas não desistiram de descobrir como entrar na área indígena. Foram até a sede da Univaja, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, com a qual Bruno Pereira colaborava desde que se licenciou da Funai, em outubro de 2019. Lá, foram atendidos por indígenas do lado de fora do portão. Do mesmo modo, os colombianos se apresentaram como professores e pediram informações sobre como entrar na terra indígena.
Depois da visita, os indígenas, assustados, contaram a coordenadores da Univaja o que tinha acontecido. Na Funai, a notícia também logo se espalhou. Quando um funcionário que não estava no prédio no momento da visita chegou, perceberam que deviam tomar alguma providência. Foram até a delegacia da Polícia Civil e lá receberam a orientação de registrar um boletim de ocorrência, o que foi feito. A Polícia Militar também foi avisada. As autoridades prometeram fazer diligências para encontrar os suspeitos, mas não formalizaram nada.
Os servidores da Funai em Atalaia, em seguida, redigiram um relatório descrevendo a visita suspeita e o abandono em que voltaram a se encontrar em suas atividades diárias. Segundo eles, “a situação de insegurança voltou a se instalar entre os servidores após o brutal assassinato”, pois “nenhuma medida prática foi tomada com vistas ao incremento de segurança desta equipe, o que se constata pela situação narrada de livre trânsito de pessoas suspeitas em suas instalações”. Os funcionários da Funai relatam que ainda não receberam nenhuma orientação das instâncias superiores e voltam a reivindicar com urgência a adoção de medidas que garantam “a segurança e a integridade física e psicológica” dos servidores. O relatório foi obtido pela agência Fiquem Sabendo, especializada na obtenção documentos públicos com base na Lei de Acesso à Informação. O boletim de ocorrência registrado na delegacia também foi obtido pela Fiquem Sabendo.
Nem um mês inteiro se passou desde o sumiço de Bruno Pereira e Dom Phillips, em 5 de junho. Nos primeiros dias, durante as buscas pelos corpos, Exército, Marinha, Polícia Federal, Polícia Militar, Bombeiros e Polícia Civil mandaram representantes para a região. Jornalistas de diversos veículos, nacionais e estrangeiros, também foram acompanhar as investigações in loco.
As autoridades se reuniram em Manaus em 15 de junho para uma entrevista à imprensa na qual disseram ter localizado restos mortais de Dom e Bruno enterrados no meio da mata. Com a confissão do homicídio por suspeitos que tinham sido presos, a Polícia Federal apressou-se em encaminhar o caso para um final abrupto. Em nota, afirmou que não havia indícios de mandantes nem de organizações criminosas por trás do crime.
O pronunciamento gerou revolta, porque a própria PF já adotou como método de investigação na Amazônia a abordagem sistêmica dos crimes cometidos na região. O Ministério Público Federal também montou (e desmontou) uma força-tarefa para operar por lá. Investigações e pesquisas diversas mostram que o crime na Amazônia é organizado, operado a partir de diversas capitais brasileiras e de fora do país também, num emaranhado de delitos (corrupção, lavagem, fraude, ameaças, extração de madeira, pesca e caça ilegais e violência física). Facções criminosas nacionais criaram ramificações locais. O Vale do Javari faz fronteira com o Peru e está muito perto da Colômbia. Os rios são as principais vias de escoamento de produtos ilegais. Três dias depois da entrevista, a PF fez circular a informação de que não mais descartava a existência de mandantes do assassinato de Pereira e Phillips, mas o assunto deixou o noticiário.
Da mesma forma, os agentes de segurança deixaram Atalaia e arredores. Os servidores da Funai voltaram a trabalhar desprotegidos. Ameaças são constantes na região. Um pedido por segurança privada no prédio da Funai foi aprovado por Brasília, mas até agora nada foi feito, o processo segue o ritmo da burocracia, e não o da urgência da situação.
A visita dos colombianos aumentou ainda mais o clima de medo em Atalaia do Norte. No documento enviado à coordenação da Funai, os funcionários explicitam: o servidor se sentiu intimidado. As polícias Civil e Militar de Atalaia disseram que fariam diligências para procurar os suspeitos. E disseram aos servidores da Funai para, “qualquer coisa”, voltarem a acionar as autoridades em caso de uma nova visita. Mas eles temem que seja tarde demais.
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Os documentos foram tarjados pela Fiquem Sabendo para proteger a identidade dos servidores da Funai
Foi repórter da piauí. Na Folha de S.Paulo, foi correspondente em Nova York e repórter de política em São Paulo e Brasília
Foi presidente da Abraji e co-apresentador do Foro de Teresina. É colunista de política do Uol.
Jornalista e professora da Uerj. Foi editora da piauí, editora de Política do Globo e repórter da Folha de S.Paulo. Autora de Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento (Ed.FGV, 2021).
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